A preservação das obras da Antiguidade clássica constitui a exceção, nĂŁo a regra. Relativamente pouco resta hoje da produção literária de gregos e latinos: muitos autores sĂŁo meros nomes, muitos textos, meros tĂtulos — e nĂŁo podemos sequer adivinhar a quantidade de obras que desapareceram sem deixar vestĂgios.
Muita coisa começou a sumir já na Antiguidade. O suporte material mais usado entĂŁo, o papiro, nĂŁo era lá muito durável, e apenas as obras que despertavam o interesse de gerações quase ininterruptas de estudiosos e escribas, e que por isso eram regularmente copiadas, tinham alguma chance de ultrapassar a barreira do tempo. Cerca de 17 sĂ©culos separam a queda de Troia da queda de Roma, quase dois a mais do que os que separam a queda de Roma da queda das Torres GĂŞmeas. Temos por vezes a impressĂŁo de que Homero e VirgĂlio, tĂŁo distantes de nĂłs, eram quase contemporâneos, mas estavam tĂŁo distantes um do outro quanto nĂłs de ChrĂ©tien de Troyes, senĂŁo mais. Era de se esperar, portanto, que autores como Ateneu de Náucratis ou Agostinho de Hipona conhecessem a literatura grega dos perĂodos arcaico e clássico, de certa forma, quase tĂŁo mal quanto nĂłs. Para eles, ela já era fragmentária.
Dentre as obras que se perderam, a que mais lamento Ă© o Margites, um poema cĂ´mico de extensĂŁo ignorada, que narrava as várias e frustradas tentativas, por parte de familiares, amigos e sacerdotes, de se fazer que a personagem-tĂtulo, um parvo virgem endinheirado, consumasse o matrimĂ´nio com sua jovem e impaciente esposa. A obra foi elogiada por AristĂłteles, que via nela o modelo narrativo das comĂ©dias.
ComĂ©dias como as de AristĂłfanes, de quem temos hoje 11 peças integrais — uma a menos do que as que chegaram, no sĂ©culo 3 d.C., a SĂmaco (que ainda pĂ´de ler Navios Mercantes). Os responsáveis (involuntários) pelo desaparecimento das demais teriam sido os sisudos gramáticos alexandrinos, que apenas procuravam nas peças aristofânicas a validação de alguns usos lĂ©xico-gramaticais do aticismo literário entĂŁo em voga, sem achar a menor graça de suas piadas. A se julgar pelo que nos diz Plutarco (no sĂ©culo 1-2 d.C.), que reclamava da obscuridade e do excesso de referĂŞncias das comĂ©dias antigas, já na Antiguidade AristĂłfanes deixara de ser hilário. Os eruditos de Alexandria fizeram com seus versos um trabalho amplo e competente de edição textual e de anotação de referĂŞncias mĂtico-historiográficas, mas se limitaram a um nĂşmero bastante reduzido de comĂ©dias. Das demais eles pinçaram palavras e expressões com as quais criaram um corpus fragmentário, espalhado por lĂ©xicos, antologias, citações em escĂłlios e obras filosĂłficas, etc. Isso, ao menos, Ă© o que indica Karen Amaral Sacconi na introdução de sua simpática e erudita brochura, Fragmentos de AristĂłfanes.
A edição e a tradução de fragmentos literários nĂŁo chegam a ser comuns nem mesmo em paĂses com mais longas e sĂłlidas tradições filolĂłgicas e editoriais; no Brasil, fora do âmbito da filosofia (os chamados PrĂ©-Socráticos) e da poesia lĂrica (principalmente Safo), sĂŁo rarĂssimas. O livro de Sacconi, portanto, que deriva de sua tese de doutoramento e traz, traduzidos, todos os 589 fragmentos de AristĂłfanes que podem ser atribuĂdos a comĂ©dias especĂficas, Ă© uma gratĂssima surpresa.
Tal como a tese, o livro principia com uma narrativa da transmissĂŁo dos textos aristofânicos e da formação do corpus fragmentário, e com uma análise de suas principais fontes (os lexicĂłgrafos, PĂłlux, Ateneu, FĂłcio, escoliastas anĂ´nimos, etc.), incluindo os papiros encontrados nas areias do Egito. Sacconi a seguir apresenta seus critĂ©rios de tradução (feita a partir da edição grega de Kassel e Austin), traz listas de siglas e sĂmbolos e dos tĂtulos das peças, e introduz com brevidade necessária cada uma das comĂ©dias. A diagramação, caracterĂstica da coleção, Ă© clara e relativamente elegante. Pena apenas que tenham ficado de fora os dois capĂtulos da tese em que a autora analisa em detalhes duas das comĂ©dias fragmentárias (Geritades e Convivas), e que oferecem muitas e interessantes informações acerca de enredos, personagens e temas caros a AristĂłfanes. Peguemos, das duas, Geritades, peça apresentada em 408 a.C., da qual nos restam cerca de trinta e cinco fragmentos (156 a 190, mas talvez tambĂ©m 128, 591, 595, 596, 598, 623, 696, 720 e 1005).
Sabemos que nela se encenava uma catábase, uma descida ao mundo dos mortos, empreendida por trĂŞs poetas cadavĂ©ricos, representantes dos trĂŞs gĂŞneros dionisĂacos (por serem declamados ou encenados em festivais dedicados a Dioniso): o comediĂłgrafo SanĂrion, o tragediĂłgrafo Meleto e o ditirâmbico CinĂ©sias. Escolhidos por uma inespecĂfica assembleia por causa de seu aspecto doentio, os trĂŞs partem rumo ao Hades numa missĂŁo cujo objetivo, infelizmente, desconhecemos. Estariam eles atrás de algum poeta morto (Ésquilo, talvez), capaz de dar renovado ânimo Ă poesia dos vivos? Buscariam pela Poesia (ou pela Poesia Antiga), personificada e deificada? Ou teriam partido Ă procura de Geritades (o “Filho do Declamador”), a enigmática personagem-tĂtulo?
Sacconi aponta vários paralelos entre esta peça e As rĂŁs, na qual assistimos tambĂ©m a uma catábase e onde Ésquilo e EurĂpides, já falecidos, se enfrentam num certame poĂ©tico. Tanto numa como noutra encenava-se o embate entre os poetas novos (a trĂade de esfomeados, EurĂpides), que AristĂłfanes, conservador como quase todos os cĂ´micos, apresenta como ruins e corruptos, e os poetas antigos (Ésquilo, basicamente), considerados nobres e imortais. Trata-se de um embate recorrente, similar ao que opĂ´s há meros 100 anos os modernistas aos parnasianos. AlĂ©m disso, em Geritades abundavam as referĂŞncias gastronĂ´micas: os versos insossos e intragáveis dos “rapazolas” precisam ser temperados com sal e vinagre para serem digeridos, enquanto os famĂ©licos poetas-embaixadores alimentam-se no submundo de ingredientes poĂ©ticos para ganhar viço e vigor.
Geritades é apenas uma das 33 comédias fragmentárias coletadas nestes Fragmentos de Aristófanes. O leitor talvez se frustre inicialmente com o livro, já que muitos dos fragmentos não passam de meras palavras que pouco ou nada nos dizem acerca das tramas ou personagens (o 327 limita-se ao termo “panificação”, o 328, a “pininho”), e que não têm a menor graça. Teria sido muito melhor, concordo, se todas estas peças tivessem nos chegado inteiras, mas, como escrevi noutro texto, a leitura de fragmentos proporciona um prazer detetivesco a quem se debruça sobre eles. Como Sherlock Holmes ou Poirot, podemos nos divertir atrás de pistas, em busca dos fatos e de seus agentes, e elaborar narrativas particulares que, ainda que não possam ser comprovadas (mas não estamos num tribunal), nem por isso deixam de estar corretas.
Como helenista, teria preferido que Sacconi tivesse incluĂdo o texto grego ao menos dos versos cĂ´micos, facilitando seu cotejo com a tradução. Mas tal falta nĂŁo diminui em nada os mĂ©ritos do volume, que tem a grande vantagem de trazer nĂŁo apenas os fragmentos, mas tambĂ©m o contexto em que eles aparecem citados. Pelo ineditismo e por suas muitas qualidades, penso que estes Fragmentos de AristĂłfanes deveriam ser tambĂ©m adotados em escolas e cursos universitários. Agora Ă© esperar pelo segundo volume (haverá segundo volume, nĂŁo?), com os fragmentos de localização incerta e dĂşbios e, se possĂvel, com ao menos uma pequena seleção dos testemunhos antigos sobre AristĂłfanes e sua obra.
É pena que as edições impressas da Classica Digitalia, mesmo quando publicadas em parceria com a Annablume (nĂŁo Ă© o caso dos Fragmentos), nĂŁo sejam tĂŁo fáceis de serem encontradas no Brasil. Mas, nesta Ă©poca de pandemia, há uma enorme vantagem: livro e tese estĂŁo disponĂveis para download gratuito, respectivamente nos sites da Imprensa da Universidade de Coimbra e da USP.