🔓 O riso sufocado

Pelo ineditismo e por suas muitas qualidades, “Fragmentos de Aristófanes”, de Karen Amaral Sacconi, deveria ser adotado em escolas e universidades
O dramaturgo grego Aristófanes
25/12/2020

A preservação das obras da Antiguidade clássica constitui a exceção, não a regra. Relativamente pouco resta hoje da produção literária de gregos e latinos: muitos autores são meros nomes, muitos textos, meros títulos — e não podemos sequer adivinhar a quantidade de obras que desapareceram sem deixar vestígios.

Muita coisa começou a sumir já na Antiguidade. O suporte material mais usado então, o papiro, não era lá muito durável, e apenas as obras que despertavam o interesse de gerações quase ininterruptas de estudiosos e escribas, e que por isso eram regularmente copiadas, tinham alguma chance de ultrapassar a barreira do tempo. Cerca de 17 séculos separam a queda de Troia da queda de Roma, quase dois a mais do que os que separam a queda de Roma da queda das Torres Gêmeas. Temos por vezes a impressão de que Homero e Virgílio, tão distantes de nós, eram quase contemporâneos, mas estavam tão distantes um do outro quanto nós de Chrétien de Troyes, senão mais. Era de se esperar, portanto, que autores como Ateneu de Náucratis ou Agostinho de Hipona conhecessem a literatura grega dos períodos arcaico e clássico, de certa forma, quase tão mal quanto nós. Para eles, ela já era fragmentária.

Dentre as obras que se perderam, a que mais lamento é o Margites, um poema cômico de extensão ignorada, que narrava as várias e frustradas tentativas, por parte de familiares, amigos e sacerdotes, de se fazer que a personagem-título, um parvo virgem endinheirado, consumasse o matrimônio com sua jovem e impaciente esposa. A obra foi elogiada por Aristóteles, que via nela o modelo narrativo das comédias.

Comédias como as de Aristófanes, de quem temos hoje 11 peças integrais — uma a menos do que as que chegaram, no século 3 d.C., a Símaco (que ainda pôde ler Navios Mercantes). Os responsáveis (involuntários) pelo desaparecimento das demais teriam sido os sisudos gramáticos alexandrinos, que apenas procuravam nas peças aristofânicas a validação de alguns usos léxico-gramaticais do aticismo literário então em voga, sem achar a menor graça de suas piadas. A se julgar pelo que nos diz Plutarco (no século 1-2 d.C.), que reclamava da obscuridade e do excesso de referências das comédias antigas, já na Antiguidade Aristófanes deixara de ser hilário. Os eruditos de Alexandria fizeram com seus versos um trabalho amplo e competente de edição textual e de anotação de referências mítico-historiográficas, mas se limitaram a um número bastante reduzido de comédias. Das demais eles pinçaram palavras e expressões com as quais criaram um corpus fragmentário, espalhado por léxicos, antologias, citações em escólios e obras filosóficas, etc. Isso, ao menos, é o que indica Karen Amaral Sacconi na introdução de sua simpática e erudita brochura, Fragmentos de Aristófanes.

A edição e a tradução de fragmentos literários não chegam a ser comuns nem mesmo em países com mais longas e sólidas tradições filológicas e editoriais; no Brasil, fora do âmbito da filosofia (os chamados Pré-Socráticos) e da poesia lírica (principalmente Safo), são raríssimas. O livro de Sacconi, portanto, que deriva de sua tese de doutoramento e traz, traduzidos, todos os 589 fragmentos de Aristófanes que podem ser atribuídos a comédias específicas, é uma gratíssima surpresa.

Tal como a tese, o livro principia com uma narrativa da transmissão dos textos aristofânicos e da formação do corpus fragmentário, e com uma análise de suas principais fontes (os lexicógrafos, Pólux, Ateneu, Fócio, escoliastas anônimos, etc.), incluindo os papiros encontrados nas areias do Egito. Sacconi a seguir apresenta seus critérios de tradução (feita a partir da edição grega de Kassel e Austin), traz listas de siglas e símbolos e dos títulos das peças, e introduz com brevidade necessária cada uma das comédias. A diagramação, característica da coleção, é clara e relativamente elegante. Pena apenas que tenham ficado de fora os dois capítulos da tese em que a autora analisa em detalhes duas das comédias fragmentárias (Geritades e Convivas), e que oferecem muitas e interessantes informações acerca de enredos, personagens e temas caros a Aristófanes. Peguemos, das duas, Geritades, peça apresentada em 408 a.C., da qual nos restam cerca de trinta e cinco fragmentos (156 a 190, mas talvez também 128, 591, 595, 596, 598, 623, 696, 720 e 1005).

Sabemos que nela se encenava uma catábase, uma descida ao mundo dos mortos, empreendida por três poetas cadavéricos, representantes dos três gêneros dionisíacos (por serem declamados ou encenados em festivais dedicados a Dioniso): o comediógrafo Sanírion, o tragediógrafo Meleto e o ditirâmbico Cinésias. Escolhidos por uma inespecífica assembleia por causa de seu aspecto doentio, os três partem rumo ao Hades numa missão cujo objetivo, infelizmente, desconhecemos. Estariam eles atrás de algum poeta morto (Ésquilo, talvez), capaz de dar renovado ânimo à poesia dos vivos? Buscariam pela Poesia (ou pela Poesia Antiga), personificada e deificada? Ou teriam partido à procura de Geritades (o “Filho do Declamador”), a enigmática personagem-título?

Sacconi aponta vários paralelos entre esta peça e As rãs, na qual assistimos também a uma catábase e onde Ésquilo e Eurípides, já falecidos, se enfrentam num certame poético. Tanto numa como noutra encenava-se o embate entre os poetas novos (a tríade de esfomeados, Eurípides), que Aristófanes, conservador como quase todos os cômicos, apresenta como ruins e corruptos, e os poetas antigos (Ésquilo, basicamente), considerados nobres e imortais. Trata-se de um embate recorrente, similar ao que opôs há meros 100 anos os modernistas aos parnasianos. Além disso, em Geritades abundavam as referências gastronômicas: os versos insossos e intragáveis dos “rapazolas” precisam ser temperados com sal e vinagre para serem digeridos, enquanto os famélicos poetas-embaixadores alimentam-se no submundo de ingredientes poéticos para ganhar viço e vigor.

Geritades é apenas uma das 33 comédias fragmentárias coletadas nestes Fragmentos de Aristófanes. O leitor talvez se frustre inicialmente com o livro, já que muitos dos fragmentos não passam de meras palavras que pouco ou nada nos dizem acerca das tramas ou personagens (o 327 limita-se ao termo “panificação”, o 328, a “pininho”), e que não têm a menor graça. Teria sido muito melhor, concordo, se todas estas peças tivessem nos chegado inteiras, mas, como escrevi noutro texto, a leitura de fragmentos proporciona um prazer detetivesco a quem se debruça sobre eles. Como Sherlock Holmes ou Poirot, podemos nos divertir atrás de pistas, em busca dos fatos e de seus agentes, e elaborar narrativas particulares que, ainda que não possam ser comprovadas (mas não estamos num tribunal), nem por isso deixam de estar corretas.

Como helenista, teria preferido que Sacconi tivesse incluído o texto grego ao menos dos versos cômicos, facilitando seu cotejo com a tradução. Mas tal falta não diminui em nada os méritos do volume, que tem a grande vantagem de trazer não apenas os fragmentos, mas também o contexto em que eles aparecem citados. Pelo ineditismo e por suas muitas qualidades, penso que estes Fragmentos de Aristófanes deveriam ser também adotados em escolas e cursos universitários. Agora é esperar pelo segundo volume (haverá segundo volume, não?), com os fragmentos de localização incerta e dúbios e, se possível, com ao menos uma pequena seleção dos testemunhos antigos sobre Aristófanes e sua obra.

É pena que as edições impressas da Classica Digitalia, mesmo quando publicadas em parceria com a Annablume (não é o caso dos Fragmentos), não sejam tão fáceis de serem encontradas no Brasil. Mas, nesta época de pandemia, há uma enorme vantagem: livro e tese estão disponíveis para download gratuito, respectivamente nos sites da Imprensa da Universidade de Coimbra e da USP.

Fragmentos de Aristófanes
Karen Amaral Sacconi
Editora Universitária de Coimbra
304 págs.
José Leonardo Sousa Buzelli

Estudou Cinema na ECA/USP e na London Film School, e Literatura no IEL/Unicamp, onde se doutorou com uma tese sobre Murilo Mendes. Editou e traduziu os Fragmentos de poesia épica e cômica da Grécia Antiga & vidas de Homero (Odysseus Editora, 2019).

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