O rio de Heráclito

Em "Não há amanhã", Gustavo Melo Czekster enfoca o problema básico da existência: seu sentido
Gustavo Melo Czekster, autor de “Não há amanhã”
30/09/2017

É sintomático que no último conto de Não há amanhã, de Gustavo Melo Czekster, o leitor se depare com essa frase, que dá desfecho à obra: “medo de que a vida não tenha porra nenhuma de sentido”. Ao se chegar nela, já se solidificou a ideia de que a problemática do sentido de existir seja o eixo do livro.

Partindo-se dessa premissa, encontra-se uma unidade temática que não necessariamente anula as particularidades e temas transversais das partes que constituem o todo.

Contudo, o título da obra intriga: não sendo ele um título de algum conto, apanhado a esmo para nomear a obra, na falta de outro melhor, passa uma noção equívoca do que se há de encontrar nessas páginas. De início, sugere a ideia de fugacidade da vida, intensificada por um ceticismo que realmente se faz presente; por outro lado, pode-se pensar numa urgência vitalista de viver, que oblitera da consciência a preocupação com o amanhã.

Nenhuma das hipóteses acima conflui organicamente as partes, pois o amanhã se segue após a perplexidade da epifania, ou insight, embora não com a mesma roupagem ordinária.

Então, talvez, seja disso que trata Não há amanhã: a existência e seu ponto de ruptura, que então transfigura o amanhã; o rio de Heráclito, em suma.

Espaço e tempo
Os contos do livro, em sua ficção, transcendem o espaço e tempo, enfocando desde a Rússia de princípios do século até o Brasil contemporâneo. De início, chama atenção a volatilidade entre a existência e o “sono” (o da morte e o literal) nos contos Não morto, apenas dormindo e Efemeridade. No primeiro em especial, no drama de um senhor solitário recluso e esquecido, a zona limítrofe entre o existir e não-existir (“despertar” e “adormecer”, no conto) se apresenta intensamente embaralhada:

Sentou-se no mesmo sofá e ligou a televisão, onde crianças alegres corriam (…) com gritos que logo se transformaram em guinchos, elas estão queimando (…) e então começaram a explodir, uma após a outra, até que ele sentiu a quentura crescendo no colarinho da camisa (…) e gritou quando explodiu, saindo de dentro do sono com um pulo. Outro sonho, outra morte.

Entre essas duas margens, um rio que flui continuamente, e a “angústia de estar vivo e morto ao mesmo tempo” — como lemos em Efemeridade — representa o drama primordial que entretece o todo.

Vem daí a insana conduta da seita do conto Os que se arremessam que apregoa haver mais vida num instante de risco deliberado a ela do que em anos de uma existência ordinária. Existência na qual o ser humano, impelido e oprimido pelas diversas demandas que as instituições sociais promovem (família, emprego etc.), se “fragmenta”, numa sucessão de personas que não logram realizar-se numa síntese, como se depreende em Os problemas de ser Cláudia.

Não é só aqui que se antevê a influência pirandeliana. Em Cinco (ou infinitos) fragmentos em busca de, brinca-se com a conceituação existencial e estética do escritor siciliano, ao mesmo tempo em que se discute, em meio a uma polifonia que também não se harmoniza em uma síntese, o sentido de viver.

Talvez a resposta para a criação esteja na reprodução deste ato, mas no âmbito da arte, onde um homem vai além dos limites de uma existência monocórdia. Conquanto essa seja uma possibilidade nos contos Neve em Votkinsk e O fogo no homem, como alcançar a plenitude e, simultaneamente, estreitar o abismo existente entre o que foi criado e seu público, seja este um outro artífice, como o ilustre compositor Rubinstein (Neve em Votkinsk) ou a simples esposa de um pintor (O fogo no homem)?

Resta então ao homem assumir o papel inverso, imergindo nos diversos signos ocultos nas profundezas do dia a dia, onde um banco (O sentido) ou um relógio e seu controle arbitral do tempo (Um sonho de relógios) ou ainda o mesmo tempo em seu pleno domínio, materializado na suspensão do movimento ao redor (O silêncio), revelam algo além, adormecido nas retinas do cidadão comum. Todavia, o despertar desses signos no universo da obra provoca mais perguntas que respostas, logo não podem aquietar o ser que permanece em perpétua busca dentro da finitude de sua existência, caso do vagante de A discursividade dos parques que, com seu pequeno caderno, vai tomando notas do que o meio ao redor tem a lhe comunicar.

No que diz respeito a tais signos (fendas eventuais por onde se pode antever as réstias de uma verdade maior), é por meio de sua natureza que o leitor poderá perceber uma ordem enigmática que move as engrenagens do mundo. Em A revolução como problema matemático, ela se materializa numa equação capaz de prever as agitações sociais; em Thermidor, no desvanecimento de tudo ao redor por um exercício de se “desligar do corpo”, ela se revela através de uma experiência individual e difusa etc.

O sentido, porém, é apenas tangenciado. Este, como o fruto de Tântalo, mais se distancia quanto mais a busca é empreendida. No fim, a busca é o que resta, e só nela há consistência.

Um risco
Trinta histórias compõem a obra, num total de 150 páginas; o leitor pode depreender disso que Czekster opta, em grande parte, por uma extensão condensada e desenvolvimento enxuto, e não estará errado (embora não seja a tônica dominante do livro). Isso não deixa de representar um risco no âmbito capcioso da narrativa curta. Se Cortázar estava certo, e o conto deve vencer o leitor por nocaute, talvez não seja absurdo acreditar que a dificuldade aumenta exponencialmente à medida que a extensão da fábula seja encurtada, numa proporção de ordem inversa.

Nesse particular, sente-se um desnível entre representantes dessa categoria (cuja extensão, em média, não ultrapassa duas páginas). Contos como o que dá início à obra realizam-se bem, enquanto outros, como Moscas e diamantes e Pelo vale dos sonhos, prestam-se mais ao gênero poesia em prosa.

Aliás, no que tange a esse aspecto formal, percebe-se uma variedade expressiva, seja na extensão dos contos ou em seu foco narrativo, seja na estratégia de sua abordagem ou nas influências assumidas.

Sobre esse último ponto, sente-se ressoar na obra os ecos da prosa introspectiva do século passado bem como a prosa fantástica cortazariana e borgiana. Esta última em especial se intensifica a partir do conto Thermidor até o final do volume, o que por vezes dá ao leitor a sensação um tanto incômoda de que o autor paga excessivo tributo ao genial argentino. Mas não há como negar que mesmo contos caudatários a essa influência como A revolução como problema matemático (em que o ambiente kafkiano se mescla à “literatura apócrifa” borgiana) e Mercúcio deve morrer manifestam uma verve e energia autoral invulgares. No segundo exemplo especificamente, um ensaio-narativa sobre uma peça protagonizada pelo adorável bon vivant shakespeariano, a segurança da escrita se conjuga a uma celebração da inteligência e espirituosidade, levadas a termo — como em toda a obra — por uma prosa equilibrada, parcimoniosa em metáforas e marcada por uso inusitado de adjetivos: “noite de constrangidas nuvens”, “sorrisos solares”, “dentes espreitantes” etc.

De modo geral, em que pese o conjunto irregular, Não há amanhã é obra consistente que revela um autor de grande inventividade e erudição, conquanto cioso de suas referências literárias. O trunfo da obra é apresentar uma expressão multifacetada, de modo que o leitor não bocejará entre um conto e outro, pelo contrário: há de refletir muito. Não é pouca coisa.

Não há amanhã
Gustavo Melo Czekster
Editora Zouk
160 págs.
Gustavo Melo Czekster
É formado em Direito pela PUCRS e mestre em Letras, Área da Literatura Comparada, pelo Instituto de Letras da UFRGS. É autor do livro O homem despedaçado (2011).
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

Rascunho