O nosso submundo

Em "A Bíblia do Che", Miguel Sanches Neto percorre os labirintos da corrupção brasileira
Miguel Sanches Neto autor de “A Bíblia do Che”
31/12/2016

Inúmeras são as possibilidades de leitura de uma obra literária. No caso do mais recente romance de Miguel Sanches Neto, A Bíblia do Che, duas perspectivas possíveis de compreender o livro são aqui elencadas. A primeira assinala algumas características de romance policial que há no livro. A segunda — que suscita reflexões no leitor — relaciona-se à abordagem que a obra faz da corrupção como expressão da realidade política nacional.

Simultaneamente thriller policial e narrativa que dissecam os bastidores da corrupção brasileira, o romance faz da investigação do paradeiro de uma suposta Bíblia que pertencera a Ernesto Che Guevara o mote para mergulhar no Brasil da “rede de crimes que envolve governo, construtoras, dinheiro sujo de campanhas e caixa dois”.

Na epígrafe, dois versos de Murilo Mendes (“Por que achar o fio do labirinto?/ O importante é viver dentro dele”) talvez ofereçam a explicação das várias formas de apreciar este romance, pois se constata que não é tão fácil assim encontrar as saídas (ou respostas) que supostamente há na obra. Parafraseando o poeta, o leitor vai se deparar com enigmas cuja decifração não é o mais importante.

A Bíblia do Che pode ser compreendido como um romance policial no qual elementos históricos possuem relativa importância. De forma bastante sintética, pode-se afirmar que possui os ingredientes de uma narrativa policial e de suspense ambientada no Brasil atual, cujo pano de fundo vem a ser a possível passagem de Che Guevara por Curitiba, em meados da década de 1960.

De acordo com informações do romance, o líder revolucionário mais famoso da América Latina não só teria passado por Curitiba disfarçado como padre, mas também estaria de posse de uma Bíblia na qual teria feito algumas anotações. Décadas depois, em tempos de revolucionários e hippies de shopping center, esse livro com supostos apontamentos de Che acaba transformando-se num cobiçado souvenir do ícone da revolução cubana.

A trama começa pela busca da Bíblia desaparecida. Entra aí a figura do ex-professor universitário Carlos Alberto Pessoa, estranha e ambígua personagem que já havia aparecido em A primeira mulher, outro romance policial de Sanches Neto. O ex-professor é contratado por Jacinto Paes, um operador financeiro — eufemismo de um tipo de atividade que consiste em intermediar transações fraudulentas entre políticos e empresários no Brasil — para localizar a Bíblia que teria pertencido a Che.

A princípio, o trato entre Jacinto e Carlos Alberto parece ter como objetivo a procura por uma obra desejada por colecionadores. O combinado entre os dois é levado a sério:

Três semanas depois de contratado, eu sabia muitas coisas sobre Che, mas nada a respeito da Bíblia. Nenhuma referência a ela. Isso não me angustiava e até era propício para o trabalho. Como, além de encontrar a Bíblia, eu também deveria delinear um texto sobre o Cristo guerrilheiro, aproveitava para fazer uma pesquisa aberta.

Guinada radical
Tudo isso, porém, sofre uma radical guinada. A morte do operador dá lugar à entrada de Celina, a misteriosa e jovem viúva, na vida quase reclusa de Carlos Alberto. A paixão entre os dois é fulminante. A busca pela Bíblia de Che continua, doravante financiada por esta mulher. Aos poucos, o misantropo detetive se vê envolvido numa teia formada de crimes, gente endinheirada, a sujeira e a corrupção contumazes da política brasileira.

Boa parte dos acontecimentos concentra-se em Curitiba, sobretudo no centro decadente da cidade e adjacências — habitat onde Carlos Alberto mora e circula tentando atar os fios de uma trama cada vez mais complexa. Perseguições, mistérios, trocas de identidade e outras peripécias movimentam o livro. O foco dos acontecimentos se desloca de Curitiba para Porto de Cima, em Morretes, passa por Campo Grande, entra em Corumbá, com direito a uma viagem do casal apaixonado no Trem da Morte até Santa Cruz de La Sierra. Enfim, Celina e Carlos Alberto vão parar no vilarejo de Alto Seco, um dos últimos lugares onde Che Guevara estivera.

Em tempos de investigações da Operação Lava Jato, o romance amplifica algumas ressonâncias sobre a corrupção que grassa por todos os setores da vida brasileira. Não significa que a obra tenha o fito de fazer denúncias ou algo do gênero. Os acontecimentos de A Bíblia do Che aprofundam as discussões sobre corrupção que ocorrem concomitantemente nas órbitas da política e da sociedade brasileiras.

Interessantemente, a trama tem seus principais acontecimentos em Curitiba, agora República de Curitiba, a cidade que tem sediado as investigações das grandes falcatruas montadas por grandes empresários e políticos do alto escalão nacional. Às vezes, algumas menções a pessoas ou fatos ultrapassam o universo ficcional e fazem alusão às notícias sobre “as sangrias do dinheiro público” que diariamente circulam nos jornais.

Parece que realidade e ficção andam de mãos dadas nesta obra. Três semanas após ter sido contratado, Carlos Eduardo surpreende-se com a manchete de um jornal: “CARRO DE LOBISTA POLÍTICO QUEIMADO EM CAMPO MAGRO”, levando-o a supor que o corpo carbonizado encontrado no porta-malas seja “Provavelmente Jacinto Paes, o dono do veículo, que está desaparecido”. Não se trata de spoiler, mas o operador financeiro simulou tudo. Comentários na internet sobre o romance aventam que a personagem Jacinto Paes possa ter sido inspirada em José Janene, deputado federal de Londrina ligado ao Mensalão, que supostamente teria forjado a própria morte.

O romance permite que o leitor se aperceba do quão contaminado pela corrupção está o país. O próprio herói da narrativa — ou melhor, o anti-herói Carlos Alberto — não é um modelo de honestidade ou de postura ética. Ele mesmo confessa ao leitor que deixou de ser professor por conta de um processo de assédio sexual na universidade onde trabalhava. Além disso, durante toda a trama, ele sempre está oferecendo propina a um ou outro que cruzam o seu caminho e tenham alguma informação relevante para seu trabalho investigativo, ou, noutras ocasiões, suborna o próximo por mera força do hábito.

Jeitinho brasileiro
Convém observar que não só Carlos Alberto oscila entre as esferas da ordem e da desordem, empregando artimanhas malandras para alcançar seus objetivos. Na realidade, todas as personagens da narrativa possuem essa mesma característica dúplice da malandragem e do afamado jeitinho brasileiro, modos muito nossos de navegação social, segundo os estudos do antropólogo Roberto DaMatta. Sob esse ponto de vista, a atuação dessas personagens mostra que a corrupção é um câncer que está enraizado na medula da sociedade brasileira.

Sonegar impostos, dar propina a alguém visando a vantagens, receber favores em trocas de ações ilegais, etc., são, seguindo o raciocínio de Roberto DaMatta, pequenas práticas diárias da “[…] junção do ‘pode’ com o ‘não pode’ […] que produz todos os tipos de ‘jeitinhos’ e arranjos que fazem com que possamos operar um sistema legal que quase sempre nada tem a ver com a realidade social”. No mesmo patamar desse desvio à ordem, há também a malandragem, “[…] um modo ambíguo de burlar as leis e as normas sociais mais gerais”. Nesse sentido, o romance espelha muito bem o comportamento pendular entre a ordem e desordem de nossa sociedade.

Dentro das duas perspectivas até aqui expostas, é possível perceber que A Bíblia do Che seduz o leitor, de um lado, por ser um texto fluido e movimentado como deve ser um bom romance policial e, por outro, por apresentar uma tessitura narrativa que faz emergir do dia a dia o grotesco da corrupção que mancha o Brasil de alto a baixo.

Na amálgama de ambas as óticas é que se compreende a profundidade deste romance, visto que aponta para a reflexão sobre a questão de nossa cultura identitária. Nesse sentido, é quase impossível que cada um de nós não se projete um pouco em Carlos Alberto, o detetive narrador do romance, embora ele não seja uma personagem caracterizada pela ética e pela heroicidade.

Aliás, todas as personagens possuem uma natureza dúplice, oscilando entre a ordem e o jeitinho, entre a cordialidade e a hierarquia, entre o desvelo pela lei e o desejo em subvertê-la. Eis aí reflexão que percorre todo o romance: dessa hesitação no modo de ser e de agir do brasileiro, a corrupção brota e torna-se uma espécie de instituição que medeia todas as relações sociais — mácula vergonhosa e lamentável identidade que caracteriza o Brasil.

A Bíblia do Che
Miguel Sanches Neto
Companhia das Letras
288 págs.
Miguel Sanches Neto
Nasceu em Bela Vista do Paraíso (PR). É escritor e professor do curso de Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Colaborou com A Gazeta do Povo, Nicolau, Bravo!, entre outros periódicos. Publicou cerca de trinta livros, entre romances, poesia, contos, crônicas, ensaios literários e obras infantojuvenis. Autor, entre outros, de A segunda pátria, A máquina de madeira, A primeira mulher, Hóspede secreto e Chove sobre minha infância.
Marcos Hidemi de Lima

É professor de Literatura Brasileira na UTFPR de Pato Branco (PR). Autor de Dança de palavras e sonsMulheres de GracilianoVárias tessituras. Escreve crônicas semanais para o Diário do Sudoeste, jornal de Pato Branco.

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