O futuro já ultrapassado

Um modelo literário obsoleto marca o novo romance da italiana Elena Ferrante, que mergulha em descrições miúdas e inúteis
01/05/2021

Segundo alguns leitores, neste aguardado romance de 2019, Elena Ferrante retoma os mesmos temas da célebre Tetralogia napolitana. Alguns veem nisso perda da agudeza criadora; outros a aplaudem por ser fiel a temas que lhe são caros. É sempre difícil descolar uma obra do lastro de outras que a antecedem com grande sucesso. Daí certas concessões da crítica, sobretudo aqui, com uma escritora que se constrói como a “personagem” intangível de si mesma — tese de Fabiane Secches, sua principal estudiosa brasileira e colunista do Rascunho.

Há, assim, duas maneiras de se analisar este romance: comparando-o com a famosa tetralogia ou lendo-o apenas por suas eventuais virtudes. Opto pela segunda alternativa, pois não li as obras anteriores — talvez por excessiva fama, talvez por não gostar de mistérios biográficos bem urdidos.

A vida mentirosa dos adultos vem em primeira pessoa clássica — do alto, onisciente, como memória. A narradora-protagonista se debruça sobre o relato de sua puberdade dos 13 aos 16 anos. Vivendo uma infância protegida, mas liberal (classe média pós-guerra, entre 1950-1960, não há precisão), mergulhará no mundo indefinido da adolescência, já anunciada na menstruação e na turgidez de seios fartos.

Sob clássica estratégia narrativa, em progressão cronológica simples, a narradora se olha a partir do passado. Narrando, quer reconstituir seu ingresso na idade adulta pelas reflexões com que analisa a si mesma na adolescência. Muitos escritores, nos séculos 19 e 20, recorreram a esse expediente: se tal momento se impõe, urge escrever.

(…) escapei para longe e continuo a escapar também agora, dentro destas linhas que querem me dar uma história, enquanto, na verdade, não sou nada, nada de meu, nada que de fato começado ou se concretizado.

Deve-se dizer que, a despeito do apego passadista à tradição formal, há um interessante vigor moderno na escrita de Ferrante. Numa antecipação (spoiler?) quase brutal desse mundo passado, Giovanna começa:

Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia.

“Está ficando a cara de Vittoria” (…) O nome Vittoria, na minha casa, soa como o de um ser monstruoso que mancha e infecta os que toca.

Aturdida pela puberdade, a menina se vê colada à persona da tia desconhecida, de quem só ouvira dizer que era muito feia e má. Urge, então, conhecer o tosco bairro fabril onde vivem a grosseira irmã com a família que o pai desprezou, ao tornar-se um intelectual respeitado em círculos elegantes da cidade. Giovanna vai buscar na tia as próprias feições e personalidade para compreender-se sob um determinismo social autoimposto: “Sol, calor, chuva, vento, frio, e eu andando, andando entre mil perigos até encontrar meu próprio futuro de mulher feia e pérfida”.

Precisa enfrentar os pais, pois percebe os contrastes sociais e intelectuais que sempre a esconderam da Nápoles sórdida e lasciva. É nessa cidade suja e sob dialeto escatológico que tentará compreender a vida adulta: a vida da tia, os segredos familiares e a primeira relação sexual.

Exaustivo
Estamos, claro, diante de um clássico “romance de formação” — ou Bildungsroman, conforme nomenclatura original, que tem no Wilhelm Meister de Goethe um de seus representantes mais famosos. Não se pode ver na narrativa de Ferrante muito mais do que isso — algo que lembra o nosso O ateneu, de Raul Pompeia, ou Mulherzinhas, de Louisa May Alcott.

Mesmo com a força estilística da frase, a autora recorre ao enfoque autobiográfico mais trivial: agruras da adolescência, amigas que a vida separa, oscilações de humor, fracasso escolar, rancor filial, as mentiras que os adultos contam (ou calam). Assim, a personagem e seus conflitos, sob fórmula comum e tema repisado, levam ao caminho da decepção.

Das “tragédias”, a mais perturbadora para Giovanna foi descobrir que os dois casais mais íntimos de sua vida desmoronam: seu pai e a melhor amiga da mãe são amantes há mais tempo do que ela própria existe. Constanza e Mariano, com as filhas (grandes amigas de Giovanna), frequentavam a casa da narradora em suposta afinidade intelectual e social, mas vão separar-se ruidosamente.

O que incomoda o leitor é Ferrante percorrer um caminho há tanto trilhado e já reinventado na modernidade. Vejam-se os romances de autoficção, por exemplo. Há anos se debate a superação do gênero na modernidade. Por que recorrer a ele? Conforto para a autora e leitor?

Ao contrário do que se esperaria, a obra padece de cronologia constrangedora, quase não recorre ao monólogo interior — ou seja, abre mão do uso contemporâneo do foco narrativo. O resultado é um romance exaustivo, mergulhado em descrições miúdas e inúteis. Muitos diálogos tocam a inverossimilhança: como a memória poderia recompor tantas falas literais?

O realismo naturalista da autora não faz aqui a protagonista crescer; Giovanna é ingênua ou agressiva e, como qualquer adolescente, discorda de tudo e de todos. Em 430 páginas, há apenas uma jovem comum, que perderá ilusões e a inocência para ingressar no mundo adulto, que ela mesma passa a reproduzir artificialmente. Por isso, talvez, não inspire adesão, simpatia, solidariedade.

Aprendi a mentir cada vez mais para meus pais. No início, eu não dizia de fato mentiras, mas, como não tinha força para me opor ao mundo sempre bem conectado deles, recortava para mim uma estradinha.

Eu não conseguia mais ser inocente, por trás dos pensamentos havia outros pensamentos, a infância tinha terminado. Eu me esforçava, mas a infância fugia, as lágrimas que eu sentia o tempo todo nos olhos eram o oposto de uma prova de inocência.

Obsoleto
Quantas jovens adolescentes não diriam o mesmo? A história e o desencanto da tia pela vida, sob um estado permanente de loucura, parecem ser mais interessantes que a de Giovanna. A vida mentirosa dos adultos acusa principalmente as mentiras do pai, primeiro modelo masculino de tantas jovens. Quando Giovanna toma o partido da mãe, engrossará a fileira moralista da mulher traída e abandonada. Não emerge o feminismo que a moça apregoa. E todas as mulheres afinal são traídas — tia Vittoria, a esposa do seu amante, a mãe da narradora e até Giuliana, noiva de Roberto (ambos egressos do submundo napolitano), que não percebe a paixão oculta da menina pelo brilhante professor.

Mesmo para o moralismo napolitano de época, pouca coisa surpreende o leitor habituado à solitária complexidade urbana, ao desencanto existencial, à resignação infeliz no romance contemporâneo. O disfuncional para Giovanna talvez seja a nova ordem tão nossa conhecida.

Rumo ao desfecho, o relato de Giovanna incomoda porque segue um novo caminho bem ajustado, “aberto” à continuação da obra (outra série?). De adolescente revoltada a leitora voraz, intelectual em formação e mulher suspostamente livre. Reage continuando. E escolhe um final feliz e com quem terá a primeira experiência sexual, às vésperas da primeira viagem sozinha. Ora, as raízes do feminismo vintage já estavam uito além disso.

— Machucou?
— Um pouco. Não me engravide.  

Nesse ramerrão, ritos morais e existenciais do núcleo familiar são executados: pai, mãe, amante, amigas, desejo, escola, amores platônicos, cultura letrada para ascensão social, rancor das classes baixas, virgindade ultrapassada — tudo rumo ao futuro. Qual futuro, se o futuro dela já é nosso passado?

No dia seguinte, fui para Veneza com Ida. No trem, prometemos novamente que nos tornaríamos adultas como jamais havia acontecido com nenhuma outra mulher.

Vale ressaltar, claro, que algo se perde na tradução (aliás, com constrangedores descuidos de concordância e regência). Ler em italiano talvez seja compensador.

A vida mentirosa dos adultos
Elena Ferrante
Trad.: Marcello Lino
Intrínseca
432 págs.
Elena Ferrante
Misteriosa tradutora, ensaísta e escritora italiana contemporânea, cuja identidade não se conhece. Ficcionista há anos, consagrou-se com os quatro romances da Tetralogia napolitana, na qual mergulha, sob foco feminino, em contradições sociais, culturais e morais da metrópole italiana, entre pobres e abastados, explorando o dialeto da região que dá nome à série.
Márcia Lígia Guidin

É escritora e editora. Autora de Armário de vidro – Velhice em Machado de Assis, entre outros.

Rascunho