O fetiche da cor

As conferências de Toni Morrison reunidas em "A origem dos outros" e "A fonte da autoestima" discutem formação de identidade, racismo e literatura
Toni Morrison, autora de “A fonte da autoestima”
19/09/2020

Eu não te considero negro. Por muito tempo alguns supostos amigos porto-alegrenses justificavam nossa suposta amizade com esta “bendita” frase. Tradução: não posso ter um amigo negro, decidi te branquear. Não existe lugar menos racista, assim como não existe doença menos grave. Grave é grave e racismo existe em todo lugar. Vale lembrar que existe doença gravíssima. O Rio Grande do Sul é um recanto extremamente racista. Tenho conhecimento de causa, assustado leitor. Encontram-se exceções, mas basta uma investigação para confirmar a regra.

No Brasil, onde brancos juram de pés juntos que não vivemos num país racista, vigora o racismo nojento, o racismo dissimulado e sua odiosa capacidade de traçar fronteiras. Tudo sob o véu do cinismo. O racismo que veste o disfarce do descaso, da negligência, da dissimulação. O Brasil jamais foi o “patropi abençoado por Deus e bonito por natureza”. Óbvio que guarda regiões bonitas por natureza, mas um país é muito mais que um lugar, e estamos falando de um lugar onde pululam praias particulares e escolas públicas. Professores são relegados ao plano mais inferior possível. É um país excludente, o “patropi” das desigualdades. Agora, também um país do retrocesso. Temos um presidente racista, asqueroso, negacionista, retrógrado, belicoso, incapaz de lembrar o título do livro mais recente que talvez tenha lido; encheria a página com adjetivos ao capitão patético e seu barco continental à deriva. Mas em fevereiro… “Em fevereiro/ tem carnaval”. Calma, apressado leitor, sou negro, não sou antibranco, sou apenas um homem precavido. Racismo é tema que não abandona a minha pauta.

Enquanto lia e relia A origem dos outros, de Toni Morrison, alguns episódios racistas que vivenciei desfilaram pelas páginas. Tentarei deixá-los de lado, mas, caso um deles aflore, compreensivo leitor, leve em consideração que o racismo, o ato racista, é inesquecível e sempre se faz lembrar.

Questão racial
A questão racial é o tema d’A origem dos outros. O livro é fruto da série de conferências que a autora proferiu em 2016, na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Romantizando a escravidão, Ser ou tornar-se o estrangeiro, O fetiche da cor, Configurações de negritude, Narra o outro e O lar do estrangeiro, Toni Morrison não apresenta novidades, aborda temas recorrentes ao longo de sua vasta obra. Temas, infelizmente, ainda presentes em debates políticos no mundo inteiro; raça, medo, o movimento das populações, as migrações — arriscar a vida para tentar viver —, suas causas e consequências; a xenofobia, a questão das fronteiras, o desejo, o sonho das pessoas de pertencerem a algum lugar, um lugar definitivo onde sejam acolhidas, sobretudo, com respeito e dignidade.

Ao gastar tempo debatendo raça, o ser humano simplesmente deixa à mostra toda sua mediocridade. Raça, no que diz respeito ao ser humano, ainda tem seu significado jogado num canto escuro e empoeirado à espera de definição. Hipócrates, e lá se vão mais de dois mil anos, afirmava que homens de pele escura eram covardes, enquanto os de pele clara eram os destemidos, os valentes. Lamentavelmente, ainda encontramos pessoas em nosso convívio que conservam essa ideia nefasta — dois mil anos, no mínimo, de atraso.

Para muitos, inclusive segundo Toni Morrison, raça diz respeito à classificação de uma espécie. Enquanto nós, somos todos da mesma raça — a raça humana.

A autora, Prêmio Nobel de Literatura de 1993, viaja no tempo em seus ensaios, misto de literatura e história, trazendo à tona questões de outros séculos, mas ainda presentes no mundo atual. Ela faz uso da literatura, apresenta contraposições; a literatura do século 19 e sua abordagem romantizada da escravidão e a atualidade com o racismo pseudocientífico. Morrison enfatiza a importância da literatura na formação da identidade racial dos Estados Unidos e também como estratégia de combate à desigualdade. É ou não é de dar inveja? Por aqui, os botocudos economistas engendram planos para taxar e sobretaxar os livros.

Mas qual a razão para tamanha obsessão em distinguir raça entre humanos? Quem são os outros? Qual motivo ou pretexto nos leva a “inventar” os outros? Por que a proximidade desses outros representa medo, vários tipos de medo? Entre tantos medos, o medo de perder nosso lugar no mercado de trabalho, nossa identidade mais valiosa no mundo capitalista. Os outros talvez sejam os artifícios para justificar a dominação, o colonialismo? Toni Morrison lança as questões. Sem respostas, recorre às suas memórias, a trechos de seus livros, à política e à história na tentativa de entender a necessidade de alguns oprimirem a tantos. Pode crer, desconfiado leitor, os poderosos não dão ponto sem nó.

Morrison reflete acerca do que significa ser negro, a ideia de pureza das raças, e mostra como a literatura utiliza a cor da pele para descrever um personagem. Os discursos abordam a questão racial, a literatura, a política, a história e, sobretudo, a formação da identidade.

Branca, parda, preta? Ora, parda… Parda é a cor da vergonha, do medo, do medo de ser. Como ser forte sem conhecer e se orgulhar da origem?

Os livros de Toni Morrison, me refiro aos de não ficção, são muito diferentes entre si — no título. No mais, seguem a temática, com um intruso aqui, outro ali, mas regra é regra.

Obra combativa
A fonte da autoestima segue a fórmula. Reunião de conferências proferidas na última década, nos anos 1990 e início dos anos 2000, parte do fatídico 11 de setembro, aborda questões pertinentes à língua e literatura, imigração, função da crítica, do escritor, tipos de guerra e os infindáveis disfarces da escravidão, e aqui também, o outro, o diferente como uma ameaça.

O leitor encontra, na coletânea, um relato denso porém muito mais emocional do que uma análise crítica, facilmente justificável porque resulta da experiência própria e, posso garantir por conhecimento de causa, não se trata de causa fácil. Lutar contra o racismo é lutar contra o pior inimigo, o idiota — só este opta pela humilhação, pela força; os policiais militares conseguem combinar os dois fatores durante a execução de seu ofício.

A origem do trabalho de Morrison está relacionado com a memória, mulheres negras subestimadas, quando representadas, seja na ficção, seja na história, sempre em papéis subalternos. Semelhante ao texto anteriormente aqui abordado, a autora aponta a relevância das obras literárias como estratégia capaz de subverter essa lógica. Encontramos também relato acerca da criação de suas obras — O olho mais azul (1970), por exemplo, seu primeiro livro, no qual adentra o território de jovens negras, até então ignoradas pela História, pela literatura, pelas artes de modo mais amplo.

A obra de Toni Morrison é de contestação, combate aos preconceitos, ao poder opressor — o que para nós, infelizmente, não traz nenhuma novidade, não acrescenta nada à ética, tampouco à estética “patropi”, pela qual o branco já teve rosto pintado de preto para representar negro e ator branco se submeteu ao uso de fitas que puxassem seus olhos e dessem “aval” ao personagem oriental. Nada, no que se refere a preconceitos, racismos, exclusão de qualquer ordem, desigualdade, é capaz de trazer novidade ao cenário “patropi”.

O texto de Morrison, seja ficção, seja ensaio, é, em primeiro lugar, um texto dramático. Assim o classifico, tenho consciência do risco, e onde reside a emoção raramente sobra espaço para análise crítica ou técnica. Nada de pejorativo nessa análise, simplesmente determino o ponto de observação.

Desta perspectiva, destaco o ensaio no qual a autora descreve sua pesquisa sobre o real Martin Luther King. Ainda na linha emotiva, temos sua louvação a James Baldwin e uma oração ao 11 de setembro. Esses dois representam a parte constrangedora desta reunião de textos.

Ao abordar o universo literário, deduzo que por ser o mais frequentado pela autora, A fonte da autoestima alcança seu ponto mais alto. Comenta, a partir do ponto de vista da raça, da alteridade, obras de William Faulkner, Karen Blixen e Chinua Achebe, entre outros. Analisa seus próprios romances, o que torna bem ácido o odor cabotino e a ideia de controle da obra.

Para concluir: os dois títulos representam a coerência da obra, e coerência tem compromisso com repetição. Tal característica não implica irrelevância, são lâminas afiadas e pontiagudas cutucando nossas feridas, nossa submissão. Acredito que os livros consigam despertar consciências, principalmente as pesadas. Que ensejem reflexões acerca do lugar de cada um no mundo, e que ultrapassem essa seara, aparentemente estática, para fazer com que os leitores, conscientes do seu lugar, sintam-se estimulados a transformar seu entorno num universo de igualdade e aceitação.

A origem dos outros
Toni Morrison
Trad.: Fernanda Abreu
Companhia das Letras
152 págs.
A fonte da autoestima
Toni Morrison
Trad.: Odorico Leal
Companhia das Letras
456 págs.
Toni Morrison
Foi a primeira mulher negra a ganhar o Nobel de Literatura, em 1993. Seu livro de estreia foi “O olho mais azul” (1970). “Amada”, de 1987, rendeu-lhe o Pulitzer de melhor ficção. Escreveu ensaios, literatura infantil, peças de teatro e até um libreto de ópera. Morreu em agosto de 2019.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho