O caótico mundo de Hilda Hilst

Em "A obscena senhora D", autora mistura gêneros literários para dar voz a uma protagonista marcada pela tensão entre sacralidade e sexualidade
Ilustração: Hilda Hilst por Fabio Abreu
02/01/2021

Existem obras literárias que provocam abalos sísmicos no mundo de alguns leitores acostumados a textos tradicionalmente escritos. É o caso de A obscena senhora D. Nesta narrativa de poucas páginas, aparentemente possível de ser lida num fôlego só e capaz de fazer qualquer um perder o fôlego (não se trata de um trocadilho, mas a sensação produzida pelo livro), não é só a linguagem inovadora de Hilda Hilst que causa surpresas. Uma das particularidades que o volume apresenta é uma amálgama de gêneros literários, subvertendo-os, o que consequentemente impede as classificações usuais.

Há outros elementos provocantes na obra. Hillé, a narradora-personagem, não se circunscreve à figura do conhecido narrador em primeira pessoa. Ela alterna focos narrativos e abre as comportas de seu fluxo de consciência. Além de ser uma personagem fragmentada, dilacerada pela morte do marido, Hillé narra a partir de uma perspectiva de negatividade do sujeito — como tem se tornado comum na contemporaneidade.

Um interminável questionamento revela outro elemento característico de Hillé ao longo da narrativa. Nas dúvidas da protagonista, na sua relação consigo mesma e com outros, as incessantes interrogações estabelecem uma tensão entre a sacralidade — como representação do elevado, do sublime — e a sexualidade — vista no sentido de baixo, de sórdido. Existe, na mente da personagem, uma interpenetração de uma e outra, confundindo-as.

Gêneros indefiníveis
Hilda Hilst iniciou-se no universo literário com livros de poesia. Em 1950 e 1951, ainda estudante de Direito no Largo do São Francisco, publicou Presságio e Balada de Alzira, e continuou a lançar, até quase o fim da década de 1960, outros títulos no mesmo gênero. Sem abandonar a poesia, entre 1967 e 1969, ela revelou outra faceta de seu métier de artista da palavra e escreveu vários textos dramatúrgicos. Na década seguinte, enveredou pela ficção, lançando Fluxo-poema (1970) e Qadós (1973; posteriormente passou a ser grafado Kadosh). Até sua morte, em 2004, Hilda manteve-se bastante ativa, publicando obras de poesia, ficção e crônicas, como Poemas malditos, gozosos e devotos (1984), O caderno rosa de Lori Lamby (1990), Cascos e carícia: crônicas reunidas (1998), entre tantos outros livros.

Lançada em 1982, A obscena senhora D foi a quinta obra de ficção de Hilda, representando a fusão de todos os gêneros pelos quais a escritora experimentou ao longo de sua carreira literária. Na realidade, o livro borra as fronteiras entre os gêneros. Além de indagações filosóficas, nele estão presentes a prosa poética, o diálogo que lembra peças de teatro, certos traços típicos da crônica.

É neste livro que a escrita de Hilda evidencia o ápice do experimentalismo. No posfácio desta edição, a professora de literatura brasileira da USP Eliane Robert Moraes observa que a escritora “praticou toda sorte de escrita, das mais convencionais às mais experimentais, criando textos inclassificáveis que, além de desafiar as fronteiras entre os gêneros, incorporam materiais de origens diversas, como piadas, receitas, fábulas e fragmentos os mais variados”. Cabe, pois, aos leitores fazer o pacto com a obra e mergulhar no seu turbilhão textual que (con)funde prosa e poesia, abolindo qualquer tipo de linha divisória entre elas.

O entrecruzamento de gêneros se anuncia desde as primeiras páginas do livro. A narrativa se inicia com o poema Para poder morrer, posteriormente publicado em Cantares de perda e predileção (1983), seguido de sete seções (capítulos). Ao se ater ao estilhaçamento textual revelador da criação literária hilstiana, cada uma destas seções exprime a variação do texto, passando pelos diálogos que parecem ocorrer num palco, pela vibração poética de outras passagens e por momentos de prosa ora convencionais, ora experimentais.

Esse estilo de escrita de Hilda, que bane as distinções entre os gêneros e oscila entre o habitual e o iconoclástico, está fortemente marcado em A obscena senhora D. A obra exibe, por exemplo, parágrafos irregulares, uma e outra palavra escrita diferentemente das convenções da língua, pontuação particular, constante emprego do ponto de interrogação, diálogos que tanto podem ocorrer incorporados ao próprio corpo do texto quanto separados, falta de indicação dos interlocutores nos diálogos, destaque de algumas palavras com itálico ou letras maiúsculas, etc. Algumas dessas particularidades podem ser vistas no trecho a seguir:

o que é Derrelição, Ehud?
vem, vamos procurar juntos, Derrelição,
Derrelição, aqui está: do latim, derelictione,
Abandono, é isso, Desamparo, Abandono.
Por quê?
porque hoje li essa palavra e fiquei triste
triste? mesmo não sabendo o que queria dizer?
DERRELIÇÃO. não, não parece triste, talvez
porque as duas primeiras sílabas lembrem derrota,
e lição é sempre muito chato. não, não é triste, é até
bonita. Desamparo, Abandono, assim é que nos
deixaste.

Fica evidente o alto grau de experimentação de Hilda no exemplo apresentado, subvertendo o que comumente se espera de uma narrativa, mas que, de certa forma, já vinha sendo praticado há certo tempo na literatura brasileira. Num ensaio da década de 1970, Antonio Candido constatava certa dificuldade de inovação dos ficcionistas brasileiros que vieram depois do impacto renovador efetuado por Clarice Lispector e Guimarães Rosa, uma vez que ambos “se caracterizaram por desromancizar o romance, puxando-o da prosa para a poesia, do enredo para a sugestão, da coerência temporal para a confusão do tempo”. Estas observações do crítico sobre algumas peculiaridades nas obras destes dois grandes mestres de nossa literatura assinalam semelhantes experimentações que Hilda acabaria urdindo em suas obras e que estão expressas em surpreendente desempenho de elaboração em A obscena senhora D.

Personagem fragmentada
Chama atenção neste livro a narradora-personagem, que, por meio do fluxo de consciência, dá vazão a suas memórias de par com a angustiante e enlouquecedora solidão que ocorre após a morte do marido. Já na primeira página, a protagonista se identifica como “Hillé também chamada por Ehud A senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas”. O crescendo que se opera entre o nome próprio, o apelido dado pelo marido, até chegar à negação de si mesma (Nada, Ninguém) assinala o dilaceramento existencial de uma mulher idosa, solitária, mentalmente adoecida, habitante de “um vão da escada” de sua casa.

Na apresentação inicial de si mesma, patenteia-se uma personagem em crise identitária: ela se divide entre o nome próprio (Hillé) e o outro dado pelo marido (que a chama de senhora D), e a força desta segunda identificação — que dá título ao próprio livro — revela a figura de um homem que, mesmo depois de morto, ainda lança a sombra da opressão masculina sobre a mulher. Ao mesmo tempo que tal sujeição aflige Hillé, também serve como mote de sua tentativa de reação em meio a reflexões metafísicas. Ao longo da narrativa, Hillé presume ser alguém, tomando sempre como ponto de referência Ehud, o marido. Este, por seu turno, considerava-a “apenas uma letra D, primeira letra de Derrelição” e nunca demonstrou compreendê-la bem. Várias partes da narrativa mostram-no frequentemente a exigir favores sexuais de Hillé como subterfúgio às interrogações intermináveis dela. A passagem abaixo ilustra esta situação:

um dia vou compreender, Ehud
compreender o quê?
isso de vida e morte, esses porquês
escute, senhora D, se ao invés desses tratos com
o divino, desses luxos do pensamento, tu me fizesses
um café, hen? E apalpava, escorria os dedos na
minha anca, nas coxas, encostava a boca nos pelos,
no meu mais fundo, dura boca de Ehud, fina úmida
e aberta se me tocava, eu dizia olhe espere, queria
tanto te falar, não, não faz agora, Ehud, por favor,
queria te falar, te falar da morte de Ivan Ilitch, da
solidão desse homem, desses nadas do dia a dia que
vão consumindo a melhor parte de nós, queria de
falar do fardo quando envelhecermos, do
desaparecimento, dessa coisa que não existe mas é
crua, é via, o Tempo.

Ainda que haja o predomínio da voz de Hillé em todas as partes da narrativa — não se descartando toda a carga de suspeição nesta narradora que apresenta traços de insanidade mental —, outras também têm espaço, como as de Ehud, do padre, de algumas pessoas da vizinhança, do pai de Hillé e do Menino-Porco, ingressando no texto por meio de livre associação com os retalhos de pensamentos, falas reais e imaginadas que vazam do fluxo de consciência da protagonista. Todas estas vozes só existem porque, de um modo ou de outro, convergem centripetamente para a narradora-personagem, funcionando como pedaços que comporiam a unicidade buscada por Hillé, já que sua identidade tinha sido posta em xeque quando Ehud substituiu seu verdadeiro nome. Portanto, assim cindida, Hillé precisa ontologicamente se recuperar voltando-se sobre si mesma.

O emprego do fluxo de consciência em A obscena senhora D é recurso narrativo no qual se misturam o discurso de Hillé ao de outras personagens, bem como suas reminiscências, indagações sem respostas, suposições, fantasias, ideias que não se completam ou se negam. Esta técnica narrativa salienta a presença de “consciência de um ou mais personagens”, a “exploração dos níveis de consciência que antecedem a fala como a finalidade de revelar, antes de mais nada, o estado psíquico dos personagens”, conforme observa Robert Humphrey em O fluxo de consciência. O livro exprime o fragmentário que existe na própria narradora ao adotar a técnica do fluxo de consciência como forma de expressão das idas e vindas de Hillé no tempo e no espaço, o que serve como revelação do quão traumáticos são a angústia do luto e o recrudescimento da loucura para a protagonista.

A propósito, o esfacelamento do seu próprio eu deriva justamente da negativa de Hillé ser ela mesma, isto é, de ter dificuldade em assumir-se pessoa. Em vez disso, ela assume uma persona. Ao longo do texto, a protagonista frequentemente se apresenta à vizinhança com uma máscara (persona) sobre a face: “máscara de focinhez e espinhos amarelos”, “máscara de ferrugem e esterco”, “caretonas que exibe na janela”. Vale observar que, em latim, a palavra persona designava as máscaras usadas pelos atores no teatro. Dividida entre pessoa (Hillé) e persona (senhora D), a narradora-personagem mergulha dentro de si para tentar descobrir quem ela é realmente.

Como sujeito marcado pela negatividade característica da contemporaneidade, Hillé oculta o rosto com máscaras diversas. Ao assumir várias personas, ela se torna uma pessoa fragmentada, deprimida pela morte do companheiro, incompreendida pelos outros que a cercam, fazendo da loucura — entremeada por momentos de lucidez — uma espécie de arma de provocação e desaguadouro de tantas perguntas que ficam sem respostas.

Sagrado e profano
Ao longo de A obscena senhora D, a indagadora e desafiadora Hillé procura encontrar-se consigo mesma, tenta entender, entre os lampejos da razão, se realmente é nada/ninguém ou, na realidade, se deve arrancar a máscara das convenções e apelar para a transgressão como forma de afirmação de si. Para obter esta compreensão de suas “obsessões metafísicas”, digladiam dentro de Hillé o humano e o divino. Somente a essência de um e outro pode, quiçá, lhe proporcionar algumas explicações.

Em nossa sociedade, carne e espírito são compreendidos dicotomicamente. O primeiro se relaciona ao mundano, à matéria, ao que é considerado baixo. O segundo, por seu turno, está ligado ao incorpóreo, à alma, ao alto. Hillé se volta justamente contra este pensamento socialmente consagrado ao querer fundir corpo e espírito. Na concepção da protagonista, sexo e Deus não se opõem. Pelo contrário, deveriam estar incorporados um no outro. Devido a esta leitura transgressiva, Hillé estabelece uma relação conflituosa com as demais pessoas que compreendem o mundo pela lógica dualista do corpo e da alma, bom e mal, etc. Quando ela exibe o corpo nu (“mostrando as vergonhas”) a uma vizinha, de imediato a comunidade julga que Deus a abandonou e “o demo tomou conta da mulher”. Noutra passagem, o padre — que veio “a pedido da vila” trazer “a confissão, a comunhão” a Hillé — tenta explicar a ela que “o corpo do Mal é separado do divino”, porém acaba desistindo diante das perguntas irreplicáveis dela.

Na mente de Hillé, não existe divisão entre o que pertence à esfera da divindade e o que está no plano da sexualidade. O terreno e o divino estão em permanente (con)fusão como se pode perceber na citação abaixo:

Engolia o corpo de Deus a cada mês, não como
quem engole ervilhas ou roscas ou sabres, engolia o
corpo de Deus como quem sabe que engole o Mais, o
Incomensurável, por não acreditar na finitude me
perdia no absoluto infinito
te deita, te abre, finge que não quer mas quer,
me dá tua mão, te toca, vê? está toda molhada, então
Hillé, abre, me abraça, me agrada.

No excerto, as primeiras palavras remetem à eucaristia — prática religiosa em que o pão (hóstia) e o vinho representam o corpo e o sangue de Jesus. A ideia inicial é desfeita, porém, com a simbologia fálica de “sabres”. O tom sagrado é retomado na nomeação de Deus como “Mais, o Incomensurável” para, em seguida, dar lugar a uma cena de sexo entre Hillé e Ehud. A mistura dos dois registros e a duplicidade da linguagem empregada permitem uma visão sacrílega e transgressora de Hillé, uma vez que engolir a hóstia (“o corpo de Deus”) ou o pênis do marido correspondem ao mesmo ato. A almejada fusão do divino e do humano é confirmada em seguida pela protagonista: “Este aqui dentro nada tem a ver com isso, Este, O Luminoso, O Vívido, O nome, engolia fundo, salivosa lambendo e pedia: que eu possa compreender, só isso”.

Noutra passagem da narrativa, Hillé concebe Deus como se fosse uma entidade que estivesse no mesmo plano dos seres humanos, fazendo brotar de suas palavras um quê de grotesco e de profanatório:

Ai Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco?
Escondido atrás mas quantas vezes pensado,
escondido atrás, todo espremido, humilde mas
 demolidor de vaidades, impossível ao homem se
pensar espirro do divino tendo esse luxo atrás,
discurseiras, senado, o colete lustroso dos políticos,
o cravo na lapela, o cetim nas mulheres, o olhar
envesgado, trejeitos, cabeleiras, mas o buraco ali,
pensaste nisso? Ó buraco, estás também no teu
Senhor? Há muito que se louva o todo espremido.
Estás destronado quem sabe, Senhor, em favor
desse buraco? Estás me ouvindo? Altares, velas,
luzes, lírios, e no topo uma imensa rodela de
granito, umas dobras no mármore, um belíssimo
ônix, uns arremedos de carne, do cu escultores
líricos. E dizem os doutos que Tua Presença ali é a
mais perfeita, que ali é que está o sumo, o samadhi,
o grande presunto, o prato. 

A conspurcação da imagem divina promovida por Hillé faz parte de sua progressiva perda da razão e de seu permanente questionamento existencial. Na realidade, sua postura funciona como uma espécie de epifania em que a divindade se assemelha a tudo que há no corpo humano, endossando a passagem bíblica que destaca “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, [à] nossa semelhança”. Dentro desta lógica, Deus e ânus estão no mesmo patamar, levando Hillé a indagar se o primeiro não pode ser “destronado […] em favor desse buraco”, e este se transformaria no “todo espremido”, uma espécie de nova e insólita imagem sagrada.

Na sua incontida ânsia de fundir o sagrado e terreno, Hillé anseia por um Deus que se converta em carne e aceite a sordidez de ser “um atormentado ser humano” como ela o é. Viúva, espezinhada pelos vizinhos, angustiada por não obter respostas a suas dúvidas metafísicas, resta a Hillé descer ao nível da animalidade, “ser búfalo zebu girafa”, “porca ruiva”, pois somente a própria degradação possibilita a ela tornar-se “mulher desse Porco-Menino Construtor do Mundo” e finalmente poder se relacionar com Deus (ou qualquer outro nome que ela atribui a um ser superior) em pé de igualdade.

Muitos caminhos
Ler A obscena senhora D pelas perspectivas aqui adotadas representa apenas alguns caminhos, entre muitos, que esta instigante obra proporciona. É inquestionável que os leitores sabem muito bem que não vão sair impunes deste encontro com a escritora ao enveredarem por este universo hilstiano em que Hillé enfrenta seu próprio caos existencial buscando conter e organizar a angústia, a loucura, o pânico, a confusão entre corpo e espírito, etc.

Em suma, quando a última página deste livro for virada, quando aparentemente a ordem tiver se sobreposto à desordem, a única certeza que vai restar a cada leitor é a sensação de defrontar-se — como se fosse uma espécie de revelação — com muitos elementos desconfortáveis e constrangedores que habitam os recônditos de cada um de nós.

A obscena senhora D
Hilda Hilst
Companhia das Letras
80 págs.
Hilda Hilst
(1930-2004) estreou em 1950 com o livro de poemas Presságio. Publicou mais de 40 títulos entre poesia, teatro, ficção e crônica. Na década de 1990, reagindo à pouca difusão de sua obra, passou a dedicar-se à vertente pornográfica — que resultou na “tetralogia obscena”. Recebeu, entre outras honrarias, o PEN Clube de São Paulo, o grande prêmio da crítica pelo conjunto da obra da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) e o Jabuti.
Marcos Hidemi de Lima

É professor de Literatura Brasileira na UTFPR de Pato Branco (PR). Autor de Dança de palavras e sonsMulheres de GracilianoVárias tessituras. Escreve crônicas semanais para o Diário do Sudoeste, jornal de Pato Branco.

Rascunho