O brilho de um longo pôr do sol

"De quatro", de Miranda July, coloca o sexo e as angústias femininas no centro da narrativa
Miranda July, autora de “De quatro”
01/05/2025

De quatro, além de ótimo título, é uma metáfora do novo romance de Miranda July. A posição, uma personagem propõe, não é só sexual, mas garante estabilidade e equilíbrio. A leitura leva a outra metáfora, essa de A paixão segundo G. H, de Clarice Lispector: ali, a narradora explica uma experiência marcante afirmando que era como se, depois de anos na estabilidade de um tripé, perdesse de repente uma de suas pernas; com duas, tornava-se livre para andar, mas também corria os riscos que essa mesma caminhada trazia.

Artista bem-sucedida de quarenta e oito anos, a narradora de De quatro levava uma vida estável com marido e filhe (a quem não queria impor um gênero). Ao receber um pagamento pelo uso de um texto seu, decide atravessar o país, pela primeira vez fazendo uma longa viagem sozinha, atrás do volante de seu carro. O início do livro tenta mostrar quem é essa personagem e nos dizer algo de sua vida em cortes rápidos — quem sabe inspirados por uma montagem cinematográfica, dado que July também é cineasta. Pequenas cenas se arremessam sobre as outras mostrando muito em pouco tempo, num tom caótico que a princípio pode causar desconforto. Mas à medida que o livro avança, essa desorganização mostra sentido, e conforme a narradora ganha foco e sua atenção se concentra num único lugar, a própria narrativa se torna mais centrada.

Tudo isso ainda no início do romance, no início da viagem da narradora. É a primeira demonstração da consciência que July tem das expectativas que cria. Seu enredo conta a história de redescoberta de uma mulher casada, uma mãe, e ela parece plenamente consciente das expectativas que esse tipo de história pode gerar. Conhecendo-as, ela por vezes subverte, por vezes adia, e por vezes questiona nossas expectativas.

A esperada road trip pelo país acaba na cidade vizinha, onde a narradora conhece Davey, um dançarino décadas mais jovem que se torna alvo de paixão avassaladora. A base da história pode ser clichê, mas July trabalha o enredo de modo incomum. A narradora toma decisões inesperadas, mas quase sempre verossímeis, e suas descrições — dos detalhes do corpo de Davey aos momentos inocentes que passam juntos — estão entre os momentos mais belos e interessantes do romance, brincando com as expectativas de um modo eficiente e sedutor. A autora finge que transformará sua obra numa história romântica e sem profundidade — mas quer apenas tirar proveito dessa moldura para revelar algo mais de suas personagens.

Tom cômico
July escreve num estilo bastante cômico, e é verdade que em alguns momentos esse tom cômico parece não se casar bem com certos acontecimentos; por outro lado, é inegável que representava bem o ponto de vista da narradora, mulher que não raro usava piadas como válvula de escape para momentos difíceis. Se July observa as expectativas que gera com sua escrita, a narradora observa suas próprias ações, e soa como uma protagonista de uma comédia romântica que ganhasse consciência do lado ridículo daquilo que representa — consciência que lhe permite transformar a história que vive em algo mais.

Se é verdade que Davey ocupa o centro das atenções por algum tempo, seu papel principal é o de gatilho. Sua presença tem impacto especialmente por aquilo que causa na narradora. Ele tem o efeito de um objeto que, uma vez inserido num ambiente, faz com que nossa percepção de tudo a seu redor mude, e depois dele a narradora observa a própria vida de maneira diferente, refletindo muito mais a pessoa que queria ser há tempos do que a pessoa que era ao lado de Davey ou de seu marido.

E essa é a parte mais rica do romance: o processo de evolução da narradora depois de Davey.

Inúmeros eus
A literatura tem a capacidade de nos colocar em contato com experiências inacessíveis a nós. Não quero dizer que possa sentir na pele as experiências da narradora de De quatro, mas que uma obra cuidadosa, que busca refletir uma experiência e transmiti-la ao máximo das habilidades de sua autora, produz um tipo de realidade que raramente se vê fora da literatura. Vemos contados ali certos aspectos da vida humana que talvez nunca tenham surgido numa conversa, ou que normalmente são guardados em nós mesmos, muitas vezes narrados por uma voz interior que se expõe muito mais que os comentários que ousamos fazer em voz alta.

De quatro é uma história profundamente feminina, e acompanhar essa história enquanto homem também é vislumbrar aspectos de experiências que, se são comuns para mulheres, para mim são algo que apenas se escuta. Posso saber que há uma pressão social enorme sobre a aparência das mulheres, que afeta sua saúde mental e é usada como combustível pelas redes sociais — mas isso não é o mesmo que ouvir a narração de uma mulher que sente seu valor questionado porque, na sua idade, não se vê tão atraente quanto era. Repito, não quero dizer que “entendo perfeitamente” o que ela sente depois da leitura, mas sim que a literatura abre uma fresta nessa porta que não tenho como atravessar.

A impossibilidade de uma compreensão ou identificação total é tematizada no romance de várias formas, à medida que a obra lida com situações exclusivamente femininas, como o fato de que a narradora está entrando na perimenopausa e o nascimento de Sam, seu filhe — uma experiência traumática que quase leva à morte da criança. A narradora de July não tem como recorrer a um homem para conversar sobre essas experiências. Por mais que seu marido tenha passado os momentos aterrorizantes ao lado dela, ambos se vendo como companheiros de trincheira na luta pela sobrevivência de Sam, ele não tem como sentir um trauma tão profundo quanto o da mulher que deu a criança à luz; e por mais que o pai da narradora talvez “se lembre melhor” da perimenopausa de sua mãe do que ela própria, não foi ele quem passou pelas sensações. É só pelo apoio de outras mulheres que a narradora consegue seguir adiante, e a evolução do romance deixa plenamente claro por que, nesses casos, um homem não conseguiria oferecer o mesmo tipo de suporte.   Também é outra mulher quem vai permitir que a narradora veja além de Davey, e perceba o que sua relação com ele mudou dentro dela mesma. A posição de quatro também é típica do engatinhar das crianças — e aqui pode ser vista como indicativa de renascimento e mudança.

Quanto a isso, abro um parêntese: curioso como, por mais que a narradora se abra e deixe de lado certos limites e medos, suas relações ainda acontecem numa chave de possessividade. Mesmo quando todas as relações são possíveis, tudo acaba por se reduzir a uma pessoa, ao desejo de ter, o que pareceu um tanto contraditório — embora o final dê alguns sinais ambíguos de que, talvez, a personagem tenha superado essa visão.

Erros de revisão e edição
Outro parêntese que faço diz respeito à tradução e revisão do livro. Minha leitura da cena mais impactante envolvendo Davey foi afetada por uma falha na tradução de um termo, e isso voltou acontecer mais uma ou outra vez — seja no uso de termos estranhos ou tempos verbais confusos que não estavam no original. Por outro lado, alguns elementos me fazem pensar que o problema, aqui, pode não estar no trabalho tradutório em si. Não só a tradutora, Bruna Beber, produz traduções de qualidade reconhecida (recentemente citei a tradução feita por ela do Hamlet, por exemplo), como também houve certas omissões na revisão do romance — como o nome Kris sendo soletrado Kriss em mais de uma ocasião, entre outras. Esse tipo específico de omissão me faz suspeitar não de erros nesses processos em si, mas de exigências de velocidade, no tipo de coisa que acontece quando o processo de edição é feito às pressas, impedindo que a tradutora tenha tempo para revisar seu trabalho e suas notas com calma, e obrigando a revisora a se apressar (seja quem for — a edição não dá crédito aos responsáveis pela revisão). Isso é especulação de minha parte, mas parece a explicação mais razoável para que o livro tenha sido lançado como foi.

Embora seja importante mencionar esses problemas numa resenha, quero deixar claro que nada disso perturba a leitura do romance a ponto insuportável. São questões que se mostram “aqui e ali”, e talvez nem chamem a atenção de muitos leitores. Se menciono, é porque chamaram mais minha atenção que em outros romances que já avaliei — o que não é dizer que os problemas são tantos.

Como a própria narradora de July percebe ao ouvir o depoimento de outras mulheres sobre a menopausa, não faz sentido deixar que os aspectos negativos de algo se destaquem a nossos olhos, ignorando os pontos em que há brilho. Se o lado negativo precisa ser reconhecido, não podemos deixar que oculte os pontos positivos da coisa considerada. O romance de Miranda July funciona como grande exemplo disso, à medida que recorre, constantemente, à subversão do óbvio ­— transformando quartos de pequenos hotéis em palácios, obsessões em gatilhos para liberdade, e o pôr do sol, símbolo da meia idade de uma mulher, em nada menos que um momento glorioso e dourado, precedendo a chegada da criança que é a noite.

De quatro
Miranda July
Trad.: Bruna Beber
Amarcord
322 págs.
Miranda July
Nasceu em Barre Town, Vermont (EUA), em 1974. É escritora, atriz, roteirista e diretora de cinema. Escreveu, dirigiu e estrelou os filmes Eu, você e todos que conhecemos (2005) e O futuro (2011) e escreveu e dirigiu Kajillionaire (2020). Entre seus livros, estão No One belongs here more than you (contos, 2007) e os romances The first bad man (2015) e De quatro (2024).
Bruno Nogueira

É autor de Grito distante (romance) A síndrome do impostor (contos).

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