O Brasil tá caretaço!

Com “pegada” acadêmica, "Poesia em risco", de Viviana Bosi, apresenta diversos nomes de autores que são um perigo à família tradicional brasileira
Viviana Bosi, autora de “Poesia em risco”
01/09/2021

Está cheio de gente perigosa neste livro: perigosa para os padrões nacionais, que em pesquisas apontam o medo da maioria da população da maconha, do aborto, sejam apoiadores de Lula ou de Bolsonaro, além do montão de humanos que defende a liberação do porte de armas de fogo (o bangue-bangue está dentro de nós!). O Brasil tem perfil quadradão. Editoras de didáticos sofrem pressões contra o tratamento de assuntos fundamentais, como liberdade e diversidade religiosa, antirracismo, até contra o conceito de evolução das espécies… Anda difícil falar de Cuca e Saci na sala de aula, imagine Iemanjá. É o tempo em que o pensamento revolucionário virou nicho de mercado e rende bons lucros a editoras de esquerda. “Menos mal!”, há quem diga, eu também. Seria a vitória do capitalismo ou o socialismo brotando naturalmente por dentro do capital no século 21, não como ditadura como no século 20? Sei lá, hoje parece mais um fim, uma derrota, a morte próxima, mas pode não ser.

O Brasilzão 2021 tem medo do poeta Ferreira Gullar (esqueçamos suas últimas crônicas). Tem medo de cada ano dos 90 anos de Augusto de Campos. Tem horror das grandiosas porém curtas trajetórias de Ana Cristina Cesar e de Torquato Neto. Ê, esses aí viram a cabeça dos jovens! Francisco Alvim, incendiário de alta periculosidade, não precisa mais que dois versos para explodir a gente por dentro. Fora as revistas livres que habitam um dos melhores capítulos de Poesia em risco, fora os poemas transcritos e comentados. Tudo um conteúdo (pra usar jargão atualíssimo) que os atuais governantes antiquadíssimos, tão afeitos aos governos dos anos 1970, diriam “subversivo”.

A essa vontade de se assemelhar aos tempos da ditadura militar, que domina os corredores federais desde 2019 (ou 2016), como é a resistência das artes? Parece, em efeito, com a que esses nomes, entre outros, promoveram naquela época? Quero dizer que há o fascismo no Brasil, como antes, mas a resposta das artes não é bem diferente hoje? O Brasil tá caretaço! A gente aqui no Rascunho faz resistência, mas também tá careta, essa resenha mesmo tá caretaça. Não sei como ser diferente disso, que desespero!

Em Poesia em risco, Viviana Bosi apresenta, muito por dentro, as propriedades da arte em versos criada e publicada nesses anos 1970, devidamente considerando o que vinha antes, desde os anos 1950, e como se desdobrou depois, pelos anos 1980 (muitos são os poetas desse tempo que seguem ativos hoje). Na página 361, ela planta o que parece ser uma esperança de seus estudos:

Esperamos ter apreendido um pouco os modos como a poesia persistiu em anos duros (…)

A reação condensada em palavras e imagens de então ao regime repressivo poderia mesmo inspirar nosso tempo, como ela afirma ao final do ensaio que dá título ao livro?

Dou atenção especial a este trecho justamente porque leio em 2021 e me sinto no olho de um furacão classe devastação master total (sim, espero que seja isto mesmo, e não um novo 1933, com o muito pior ainda por vir). Mas preciso considerar que o texto foi escrito antes. Conforme explicações dos paratextos, a primeira versão do livro é de 2011, corresponde à livre-docência da acadêmica, e sofreu alterações desde então. Em 2011 estávamos bem, me lembro! Tinha minhas crises existenciais, profissionais, mas eram pessoais. Lá fora parecia que a tendência era de melhora (talvez aqui resida o trauma que vai restar em muitos de nós: desconfiar dos dias bacanas, e isso é péssimo).

A autora parece ter esperança. Cita Drummond na continuação, que encerra o ensaio: “onde não há jardim/ as flores nascem de um/ secreto investimento em formas improváveis”. São versos do poema Campo de flores, de Claro enigma (1951).

É uma aula completíssima, é um curso inteiro de alto nível o capítulo Poesia em risco nos anos 1970. Mas no sentido de transportar aprendizados para os dias de hoje, aí é mais difícil. Presto atenção na escolha de Viviana Bosi: o verbo não é aprender, mas apreender. Ela foi precisa também nisto. Há semelhanças, só que as pessoas são outras e isso muda tudo. A história ilumina, amplia nosso repertório, mas é impossível de ser repetida. Queria dar um salto no tempo e ler a Viviana Bosi do futuro, revelando a poesia desse nosso tempo, fim da década de 2010, início dos anos 2020.

Chave de leitura
Poesia em risco parece um esforço em não correr riscos. A impressão que tenho da vida acadêmica é que não é ambiente, em geral, que incentive isto, o correr risco. Quer ser livre e tomar bordoadas com a cara ao vento (apenas de máscara contra a covid)? Então escreva ensaios e os publique num blog. Ou então escreva aqui no Rascunho, aqui tem liberdade, sim. Quem pode não se sentir livre é o resenhista. Poxa, como vou criticar alguém que posso encontrar ali na esquina?

Viviana Bosi é uma respeitada pesquisadora e professora da Universidade de São Paulo. Filha de dois intelectuais importantes para nossa cultura, Alfredo e Ecléa Bosi, a quem ela escreve linda dedicatória. Nascido na tese de livre-docência, que foi defendida em 2011 no departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, o livro é portanto uma reunião de abordagens e tem essa vocação acadêmica não significativamente alterada para o livro.

A escolha mais aparente é mesmo esta, da preocupação em dar sustentação às informações, creditando autores de outros estudos. Há fartura de referências. Quando se coloca mais livre e claramente, o livro cresce. Será provavelmente muitíssimo citado nas pesquisas que abordarem daqui para frente esse período marcante da poesia no Brasil, entre os anos 1950 e 80.

Tem análises e interpretações das obras de Augusto de Campos, de Ferreira Gullar, de Ana Cristina Cesar, de Francisco Alvim, de Torquato Neto, de Armando Freitas Filho, de Rubens Rodrigues Torres Filho, que vergonhosamente eu não conhecia! Aliás, vertigem: quanto mais conheço da literatura percebo que menos a conheço, que mais é o que não sei, e o que não sei só será maior.

Provocado, desabafo
A cada dia que leio poemas, que eventualmente escrevo poemas em tentativa de poesia, a cada vez que percorro pensamentos críticos sobre poetas e suas obras, me aproximo mais e mais da ideia de que o poema devia bastar-se (porque normalmente é isto, ele basta, como basta a tela, como basta o desenho, como basta o movimento ou a inação na dança). E que os textos a respeito de poetas e os poemas que nos apresentam, quando convidam à reflexão e à construção de uma visão crítica, deveriam fazê-lo de forma menos sociológica, menos psicanalítica, menos macroeconômica, e mais antropológica, mais humanista, mais de escuta e apontamento de possibilidades. Ou seja, menos de interpretação fechada, mais um exercício de jogar luzes nos cantos e nas camadas, compartilhando mesmo a experiência do leitor atento, da leitora atenta, estudada; companheirismo, não o ditar regra com elaboração complicada — o poema é condensação, logo o desdobramento, o “explicar a piada”, pode virar muitas vezes um comprido afogamento da poesia.

Se fosse este um ensaio acadêmico eu deveria, no parágrafo aqui em cima, já enfiar uma nota de rodapé com uma citação que sustentasse minha impressão. Porque eu, eu sozinho assim, pensando — mesmo que muita gente, em diferentes épocas e lugares, tivesse pensado o mesmo ou muito parecido —, eu só não basto: é preciso creditar, achar outros nomes reconhecidos, principalmente aceitos, que tenham pensado antes… Claro que há motivos para isso, claro que há o método, que há as consagrações testadas e replicadas, mas que saco, que saco!

Parece, por esse trecho, que vou construir o desfecho de uma crítica negativa do livro em questão, mas não. O livro é ótimo, dentro do que se propõe, evidentemente, que é ser uma referência acadêmica, um livro menos para o leitor que busca fruição, mas o que estuda ao ler, o que precisa de informação com bases sólidas, o que necessita de informação verificada. Nestes sentidos, é uma publicação importantíssima. Só queria que pudéssemos ser menos contidos agora, menos enquadrados. Talvez pense isto a partir do objeto do próprio Poesia em risco. E então ele me provocou, que é o que importa mais. Me provocou como os poemas provocam os poemas de que trata. Como diria a Alanis Morissette, isso não é irônico?

Poesia em risco
Viviana Bosi
Editora 34
496 págs.
Viviana Bosi
É professora do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLECH-USP. Autora de John Ashbery, um módulo para o vento (1999), de diversos artigos e organizadora de coletâneas, como Neste instante: novos olhares sobre a poesia brasileira dos anos 1970 (2018).
André Argolo

É jornalista e pós-graduado em Formação de Escritores pelo ISE Vera Cruz (São Paulo). Autor do livro de poemas Vento sudoeste.

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