Quanto de loucura cabe na literatura? Ou ainda: quanto de loucura cabe naqueles que fazem da literatura o bálsamo de tantas pessoas? Não é preciso pensar por muito tempo para lembrar de autoras e autores que não apenas escreveram sobre suas condições mentais que lhes drenaram a vida, mas que também sucumbiram após anos travando guerras em fundas trincheiras. É o que lemos nos diários e na ficção de Virginia Woolf, que lidou com crises de pânico desde a infância; é o que ecoa nos versos de Alejandra Pizarnik, que incrustou com sua linguagem os seus fascínios e temores; é o que se alimenta da saída que Anne Sexton encontrou na poesia para não se render a sua condição mental. Pontuar essas fabulosas autoras para introduzir o tema não pretende, de forma alguma, encarar seus anos e literatura sob uma lente que as resuma ao sofrimento e ao suicídio. Em movimento contrário, falar delas nos permite entrar em contato com outras autoras que, cientes do pesadelo em estado de vigília instaurado pelos transtornos psíquicos, escalaram o muro da ficção e da poesia, decididas a fazer de sua literatura um brado de denúncia.
Esse foi o caso de Nellie Bly, cuja coragem de se infiltrar como paciente no violentíssimo Blackwell’s Island — um manicômio de lunáticos, como costumavam designar os hospitais psiquiátricos — deu origem a um dos livros mais agonizantes sobre investigação do sistema manicomial, o célebre Dez dias num hospício. A escritora tinha apenas 23 anos quando criou uma narrativa que, frente a profissionais despreparados e uma rede de saúde precária, fez com que fosse diagnosticada como uma louca incurável e a colocou entre os muros do Blackwell’s Island por infindáveis dez dias. Ainda que o livro seja espetacular, sobretudo por ter clamado ao mundo como as reais pacientes eram tratadas com requintes de crueldade, o que certamente não traria alívio à condição psíquica que as adoeciam, existe um problema: por mais que a obra seja de 1887, as atrocidades relatadas por Bly não ficaram presas ao século 19 e aos anteriores a ele.
É hospício, deus — e tenho frio.
Agora não estamos mais em Blackwell’s Island, muito menos em 1887: é 1959, Brasil. Abandonamos o olhar de uma pioneira no jornalismo investigativo e abraçamos o relato pessoal da consagrada escritora mineira Maura Lopes Cançado, que, ao longo de alguns meses internada no Hospital Gustavo Riedel, escreveu o sensível e atormentador Hospício é Deus (1965). Reeditado pela Companhia das Letras, a coletânea de memórias de infância e relatos de suas internações voltaram às estantes em 2024 depois de anos esgotada. O que a princípio pode se apresentar ao leitor apenas como um compilado de anotações sobre a passagem do tempo e a percepção de si enquanto encerrada no hospício, aos poucos passa também a ser uma denúncia como a de Nellie Bly.
Antes da internação em 1959, Maura já havia passado por longos períodos em hospitais psiquiátricos, sendo que o primeiro desses episódios se deu quando ainda beirava a maioridade. A nova internação, que acompanharemos em Hospício é Deus, acontece de forma voluntária: após uma briga intensa em seu trabalho, o suplemento literário do Jornal do Brasil, Maura decide retornar ao Hospital Gustavo Riedel, onde já havia sido paciente. Na primeira entrada do diário, em 25 de outubro de 1959, Maura escreve:
Estou de novo aqui, e isto é –––– Por que não dizer? Dói. Será por isto que venho? — Estou no Hospício, deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos: trêmulo, exangue — e sempre outro […] Hospício é não se sabe o quê, porque Hospício é deus.
Nos dias que se seguem, Maura escreve como se sente frente àquele retorno: a passagem do tempo, que se mostra amorfa e agoniante; o seu passado, que parece não mais lhe pertencer; o Dr. para qual transfere sua necessidade de amor e atenção… E, entre as agonias de seu íntimo, a violência e o despreparo das enfermeiras e dos médicos é espantoso, dilacerante — faltam adjetivos que contemplem os horrores causados por esses “profissionais”.
Acontece que a “loucura” recai num dolorido limbo, e Maura sente esse entrelugar na pele: o transtorno psíquico é uma ferida que não sangra, que não expõe a gordura sob a camada de carne quando o corte já é profundo demais, que não empesteia o ambiente com cheiro de putrefação quando mal cuidada. Mas, se ao menos essa dor sangrasse — como escreve Renata Pallottini, dramaturga e ensaísta brasileira —, talvez o vazio visceral que acompanha Maura e as outras pacientes fosse reconhecido como digno de ajuda aos olhos dos profissionais que as acompanhavam. Se ao menos sangrasse, talvez não fossem resumidas a um diagnóstico pouco cuidadoso, talvez iriam além de um mero combo de sintomas listados numa apostila de psiquiatria. É para tanto que Dona Dalmatie, uma das únicas enfermeiras que humanizam as pacientes, diz à Maura:
Não dão ao louco nem o direito de ser louco. Por que ninguém castiga o tuberculoso, quando é vítima de uma hemoptise e vomita sangue? Por que os “castigos” aplicados ao doente mental quando ele se mostra sem razão?
É claro que a busca incessante por amor e pertencimento já seriam suficientes para fazer de Hospício é Deus um intenso relato, mas os abusos constantes por parte das enfermeiras tecem uma camada ainda mais grosseira de horrores. Entre terapias de eletrochoque, choques insulínicos e altas doses de medicação, notamos que algumas das pacientes — aquelas que ainda têm alguma esperança de saírem daquela clausura, “curadas” ou não — ainda se seguram a algum tipo de fé. Uma das passagens mais doloridas que demonstram essa crença numa vida pós-hospício acontece em dezembro de 1959: Maura e outras duas pacientes, a jovem Durvaldina e Dona Auda, se juntam para uma novena a São Judas Tadeu, o santo do impossível. É Auda quem clama por socorro à divindade: “Que fiquemos sãs e voltemos para nossos lares”. Toda essa colocação é forte demais: o desespero é tão avassalador frente ao pouco caso a que são submetidas, que, mesmo inseridas num ambiente que deveria lhes garantir o suporte e cuidado necessário, só conseguiam conceber uma ajuda efetiva caso ela caísse do céu. A situação era tão grave que apenas o santo das causas impossíveis conseguiria ajudá-las.
Escrevi este livro porque não estou sozinha
Há também um outro lado contemplado por essa literatura que trama denúncias enquanto expõe vivências pessoais: o do reconhecimento. Ao ler Hospício é Deus, um leitor que enfrenta as mesmas instabilidades emocionais que Maura verá nela, quem sabe, uma confidente. Afinal, estamos sempre em busca de compreensão, de alguém que nos entenda plenamente — e encontrar em um livro o espelho de nossa psique traz uma euforia e satisfação inenarrável.
Nesse sentido, Sociopata: minha história, de Patric Gagne, se encaixa perfeitamente. O livro traz relatos da vida da autora que, após muitos anos se sentindo deslocada em relação a si e aos outros, recebeu o diagnóstico de sociopatia, também conhecido como transtorno de personalidade antissocial. Na fase adulta, então, decidiu escrever suas memórias com um intuito muito digno e significativo: o de trazer certo conforto àqueles que lidam com o mesmo diagnóstico.
Ainda que atualmente o tema da saúde mental seja mais bem recebido e discutido do que em tempos anteriores, como nos anos em que Maura Lopes Cançado esteve internada, é nítido que muitos tabus seguem fortalecidos e um longo caminho de luta se desenrola sob ele. Assim como houve um período em que todas as queixas femininas eram tratadas como casos de histeria, há grandes estigmas ao redor de diagnósticos como os de transtorno de humor e personalidade, e a sociopatia não é poupada de comentários e opiniões moldadas a partir de senso comum. Inclusive, não é preciso se aprofundar em buscas sobre sociopatia para se deparar com colocações ofensivas: ao pesquisar “sociopatia” no Google, você encontra, logo nas primeiras definições, que esse é um “distúrbio mental caracterizado pelo desprezo por outras pessoas”.
É pensando nisso que Patric Gagne inicia Sociopata com uma introdução que menciona os seus propósitos ao expor episódios tão íntimos que lhe marcaram desde a infância:
Ao contrário da crença popular, os sociopatas são mais do que os marcadores de personalidade que apresentam. São crianças em busca de compreensão. São pacientes à espera de validação. São pais que procuram respostas. São seres humanos que precisam de compaixão. Infelizmente, o sistema os frustra. As escolas não os reconhecem. Os profissionais não os tratam. Eles não têm a quem pedir ajuda.
Após a introdução, Patric se debruça em sua infância, sobretudo porque já se enxergava como alguém “diferente” mesmo quando era apenas uma criança. Essa colocação é bastante curiosa quando cruzamos seu livro de memórias com os diários de Maura: ambas as autoras mencionam que já percebiam algo de excêntrico em seus âmagos muito antes de conseguirem racionalizar qualquer ação ou sentimento.
Mais do que a narrativa desses acontecimentos que contrastam com a postura de pessoas neurotípicas, Patric explica a sua relação com suas emoções — ou a falta delas —, expondo episódios bastante… incômodos. Particularmente acredito que muitas leitoras e leitores possam vir a desconfiar das memórias da escritora, já que muitos dos casos, cruamente relatados, chocam e provocam até os que estão familiarizados com a neurodivergência. Para tanto, é preciso ler Sociopata de mente aberta para que a leitura não caia no ciclo vicioso de pré-conceitos sobre essa condição psíquica.
Ao finalizar a leitura de Hospício é Deus e Sociopata: minha história, notamos a importância de entrar em contato com essa escrita que traz denúncias e expurga das autoras os seus sufocos e cruza com os dos outros. Nessa associação entre autor e leitor ecoa um pensamento de Rosa Montero, que, no primeiro capítulo de O perigo de estar lúcida, escreve sobre a solidão dos loucos:
[…] a loucura te faz acreditar equivocadamente que aquilo que está vivendo só é experimentado por você. Que não há ninguém com quem possa se irmanar. Sentir-se louco é sentir que de algum modo você já não pertence à espécie humana.
Mas, quando a solidão cutucar a já escassa paz dos loucos, a literatura estará aqui, a postos, oferecendo um livro como apoio, ou a caneta e uma folha em branco como libertação.