O andarilho solitário

Em "João aos pedaços: biografia de João Gilberto Noll", Flávio Ilha dá ares de romance à trajetória de um escritor que não se rendeu a grupelhos
Ilustração: João Gilberto Noll por Fabio Abreu
01/11/2021

Não existe biografia sem vazios, nem a autobiografia consegue apagar essa mancha. É exatamente na autobiografia o território no qual suas pegadas se tornam ainda mais nítidas e suspeitas — seja por esquecimento, seja por conveniência os vazios se estabelecem. É justamente nesses espaços que transita o biógrafo. Diante disso, é aconselhável encarar a biografia como uma ficção inevitável. Os vazios precisam ser preenchidos de modo a permitir a fluência da narrativa. Essa imposição, essa necessidade de ordem, de coerência na vida do biografado implica descompromisso com a realidade pois geralmente nossas vidas não seguem roteiros coesos. A máxima “quem conta um conto aumenta um ponto” leva à conclusão que é impossível narrar sem inventar. Inventar outra realidade, outra história que permita ao narrador/autor/personagem realizar-se.

As biografias habitam o espaço entre o território da ficção e o da história, entre o real e o imaginário. João Gilberto Noll é personagem de João aos pedaços, escrita por Flávio Ilha. Noll, personagem, assim considero o biografado, os biografados. Segundo Antonio Candido, a personagem é “um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial”. Aqui não se trata exclusivamente de fantasia, Flávio apresenta vários documentos, mas toda forma de escrita implica forjar uma realidade, não se trata da realidade em si.

O imaginário ocupa um vasto espaço na literatura, não podemos desprezá-lo. A imbricação dos gêneros literários permite imensas áreas de expressão. Sobre o poder do imaginário e a relação entre os gêneros, Carlos Nejar escreve:

O miraculoso das palavras não procura tribos, são as tribos que procuram as palavras. E que não se esqueça de que a ruptura dos gêneros já se estabeleceu com Oswald de Andrade em Memórias sentimentais de João Miramar e Mário de Andrade em Macunaíma. Todavia, “a literatura é o sonho desperto das civilizações” — lembrou Antonio Candido — a ponto de “não haver equilíbrio social sem literatura. Vamos além, a literatura não é só o despertar dos mágicos, é o despertar, aos poucos, também, do que continuará sonhando. Inexistindo equilíbrio humano sem literatura, porque lida com a imaginação. O que podem os homens sem ela? O que podem, sem essa fala dos historiadores sem fronteiras, estabelecido.

Andarilho solitário
Conheci João Gilberto Noll quando vivíamos no Rio de Janeiro, pouco conversamos, geralmente o encontrava caminhando. Não foi diferente em Porto Alegre. Nossas raras conversas sempre aconteceram em movimento. Esta é uma das características marcantes muito bem observadas por Flávio Ilha. Movimento intenso que nem sempre trouxe resultados materiais que permitissem a Noll uma vida além de modesta, resultado do desrespeito destinado ao trabalho intelectual.

Sou voraz leitor de biografias. A de Fidel Castro escrita por Claudia Furiati, a de Victor Hugo, assinada por Max Gallo, e L’ordre libertaire: la vie philosophique d’Albert Camus, de Michel Onfray, são exemplos de minuciosos trabalhos, delicadas peculiaridades que enriquecem as personagens. Flávio realizou elogiável trabalho, desvendou, revelou um ser radicalmente circunspecto, enigmático, marginal, por não pertencer a grupelhos garantidores da exposição e sobrevivência dos medíocres.

Noll, andarilho solitário, feito sua literatura não teve sua importância literária reconhecida apesar das premiações. Nessa mesma estante encontram-se Campos de Carvalho, Orides Fontela, Fausto Wolff, Luiz Bacellar. Flávio Ilha realizou uma proeza, escreveu a biografia nada entediante de um personagem fechado em si, insisto; trato Noll como personagem porque assim se mostrava — seu modo de falar, suas performances em palestras, difícil identificar emoção, particularidades, alguém de passagem. Desapegado e pouco se esforçando para estabelecer relações. Seu compromisso era com a literatura.

Ares de romance
Flávio apresenta e analisa o biografado. Não posso dizer que sua pesquisa contemple, na integridade, a trajetória de João Gilberto Noll — não me cabe essa pretensão; cabe ressaltar que oferece ao leitor acontecimentos que resumem condensam uma vida destinada à literatura. Flávio traz revelações, o que não chega a ser uma façanha, visto que Noll costumava se preservar enquanto a mídia preferia ignorá-lo.

Suspeito que o motivo seja a complexidade e a temática de sua obra. Noll era despudoradamente fiel à literatura. O biógrafo evita o caminho fácil, o das lamúrias, do escritor injustiçado, do homem rejeitado, mas não nega, tampouco esconde, sofrimentos daí oriundos. João Gilberto Noll instiga o imaginário do leitor, e Flávio Ilha soube trabalhar o material ao conceder-lhe ares de romance, de suspense. O leitor não sabe o que esperar; estima, no entanto, que alguma revelação o aguarda na página seguinte.

Quando digo que Flávio foi além da biografia não o faço de modo estabelecer restrições ao seu brilhante e ousado trabalho, seja na pesquisa, seja no tecido que oferece ao leitor. Cabe olhar com grande atenção para esta obra, seja no seu rigor formal, seja no seu aspecto criativo. Flávio Ilha torna atraente a vida de um escritor que, infelizmente, graças à nossa indigência intelectual, não recebeu a devida atenção.

É como anota o filósofo e crítico búlgaro Tzvetan Todorov:

Todo grande livro estabelece a existência de dois gêneros, a realidade de duas normas: a do gênero que ele transgride, que predominava na literatura precedente, e a do gênero que ele cria (…). Geralmente, a obra-prima literária não se encaixa em nenhum gênero.

Solidão e interação
Em João aos pedaços, o autor aborda todos os pontos — da criação literária à vida, ou melhor, às vidas amorosas de Noll; humaniza o personagem, mas não consegue salvá-lo da solidão. A última foto de João Gilberto Noll, no café Chaves, sintetiza a obra de Flávio Ilha, sozinho no café, o grande escritor e sua solidão.

Angústia é o sentimento que envolve a narrativa de Flávio Ilha, um sentimento que pavimenta a via dolorosa de um grande escritor. A leitura da obra vai muito além de apresentar curiosidades acerca da vida de um personagem público: a biografia além do “disse me disse”, da fofoca, da bisbilhotice.

O ato de leitura se configura quando ocorre a interação entre texto e leitor. Podemos dizer que é nesse ponto que se localiza o coração da comunicação literária. Para que isso ocorra caberá ao leitor realizar suas articulações, lançar mão de seus pontos de vista, apontar identificações e dar sentido à narrativa.

A partir desses aspectos o leitor buscará a coerência do texto, para tanto analisará as estratégias textuais do autor, seu método de composição. Cabe lembrar que esse leitor empírico dificilmente corresponderá às expectativas do autor. O leitor privilegiará elementos que o ajudarão a compreender a obra, que iluminarão uma trilha nada familiar e por vezes até mesmo hostil. Em O demônio da teoria, Antoine Compagnon alerta:

Muitas questões são levantadas a respeito da leitura, mas todas elas remetem ao problema crucial do jogo da liberdade e da imposição. Que faz do texto o leitor quando lê? E o que é que o texto lhe faz? A leitura é ativa ou passiva? Mais ativa que passiva? Ou mais passiva que ativa? Ela se desenvolve como uma conversa em que os interlocutores teriam a possibilidade de corrigir o tiro? O modelo habitual da dialética é satisfatório? O leitor deve ser concebido como um conjunto de reações individuais ou, ao contrário, como a atualização de uma competência coletiva? A imagem de um leitor em liberdade vigiada, controlado pelo texto, seria a melhor?

Individualismo
Mas qual a razão do descaso, dos maus tratos a um artista incomum. Qual, quais? Vivemos tempos no qual o individualismo, que sempre nos impulsionou, cada vez mais se faz notar. Noll também viveu esse tempo, o eu tornou-se determinante e aqueles conhecidos ideais, liberdade, igualdade, fraternidade, que deveriam ser abarcados por todas as sociedades, sedimentam-se no terreno da utopia.

Nos papéis que desempenho — escritor, tradutor, resenhista —, não devo desconsiderar o outro. Não devo escrever para mim, escrever conforme o que “eu acho”, tampouco criticar uma obra literária sem ater-me a quem se destina. Um texto para jornal deve ser acessível a todas as camadas, tanto sociais quanto intelectuais; enquanto um texto acadêmico exigirá um rigor muito maior.

Ao dizer utopia, vale lembrar que utopia é um aspecto de grande importância na obra de Rabelais — acrescente, solidário leitor, mais este nome à lista dos incompreendidos. A lógica do mercado e o consumismo exacerbado destinaram ao homem o terreno da solidão, e ao individualismo, não bastasse individualismo, adicionou o egoísmo. Enquanto para o filósofo Emmanuel Levinas a guerra implica o fim da alteridade, em nossos dias o individualismo cumpre esse papel.

Nesse estado de coisas, ao outro será concedida alguma distinção tão somente quando artífice daquele que por vezes o remunera no cumprimento de alguma tarefa. O outro praticamente é apagado.

Noll cometeu o disparate de não pertencer a grupelhos salvadores, enaltecedores da mediocridade — fúteis produtores de obras vulgares foram convidados para festas literárias, foram premiados e tiveram grandes vendas de suas estultices. A pequenez artística é acintosamente solidária, e as homenagens póstumas não servem pra nada.

João aos pedaços: biografia de João Gilberto Noll
Flávio Ilha
Diadorim
242 págs.
Flávio Ilha
É jornalista, escritor e editor. Autor de Longe daqui, aqui mesmo (2018) e Ralé (2019).
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho