No rumo certo

Contos de Márcio Ferreira Barbosa unem o leitor aos personagens de forma sorrateira, suave, imperceptível
Márcio Ferreira Barbosa, autor de “A costura de si”
07/07/2015

É o primeiro livro de contos de Márcio Ferreira Barbosa, mas não parece. A tessitura do texto, a densidade das memórias remetem a uma prosa antiga, a uma sensação de algo vindo de Jorge Amado ou Guimarães Rosa, textos que fundaram nosso imaginário nas aulas de literatura. Sua escrita parece coisa de imortais. Não são apenas os roteiros dos onze contos que levaram 10 anos para ser escritos: é a costura do texto que também nos prende e solta, como se viajássemos nas agulhas do autor.

Márcio Ferreira Barbosa, soteropolitano de 1971, foi contemplado com um prêmio da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, recebendo apoios de fundações e outras secretarias, que fizeram valer seu esforço de uma década de tessitura de textos, e o investimento editorial nessa obra de fôlego. Publicado pela 7Letras em 2014, recebeu menos destaque midiático do que mereceria, talvez pela lógica cruel do mercado editorial internacionalizado, talvez pelo autor ainda estreante, que não traz consigo toda a expectativa do meio literário que autores mais produtivos são capazes de gerar. O livro de Márcio, no entanto, é uma verdadeira obra-prima da literatura contemporânea, apto a ser comparado com os hábeis contistas clássicos da literatura europeia. A análise profunda de cada personagem, a descrição precisa de ambientes e sensações, conjugada com o tempero próprio da condição brasileira-nordestina, trazem a mistura exata da literatura que é perene, capaz de viajar no espaço e no tempo.

A beleza e rusticidade dos ambientes retratados, alternando a cidade e o campo, exibem o traço peculiar e sensível da visão do autor sobre si mesmo, sobre o outro e acerca do espaço que o circunda. Seus contos exprimem, acima de tudo, o que nos prega à realidade e à vida, o que nos alça ao sonho e ao delírio, o que nos atravessa por uma dimensão até certa altura, antes que novamente se faça possível voltar e atravessar de novo, fazendo o mesmo caminho para o outro lado, e seguindo assim, nessas sístoles e diástoles, até o ponto final, o alinhavo de tudo.

Em todas as onze histórias, sentimos uma espécie de indizível, de divino, de sobre-humano. A costura de Márcio une o leitor aos personagens de uma forma sorrateira, suave, imperceptível. O desespero de ciúme em Desnudez permite compreender os meandros do desatino, da ira, da possessão. Fazendo um contraponto, o conto Ela e a noite exibe uma vida ordinária e o seu amor costumeiro, morno, pontuado pela automação do cotidiano, o imponderável escondendo-se no sentimento da personagem, em sua impossibilidade de agir diferente.

Estranhamento
No conto que dá origem ao título do livro, A costura de si, nos deparamos com o sr. Afonso e o seu esquisito mal-estar: uma sensação de estranhamento com a realidade, diametralmente oposto ao sentimento de familiaridade que o prenderia ao mundo, como âncora, impedindo-o de ir à deriva. Esta se revela a costura bem-feita de Márcio Barbosa — a possibilidade de descrever um estado de espírito, uma sensação sem paralelo, e trazê-la para o íntimo do leitor, que somente ao acompanhar a leitura, sente-se igualmente ansioso, impotente, estranho, ou mesmo distante da realidade.

Seguimos para a próxima narrativa, ainda mais densa, construída a partir de um desastre familiar, um luto do qual seria quase impossível se reerguer, não fosse a tenacidade da personagem Maria, que tentava trazer de volta a felicidade ao lar da comadre enlutada. Aqui, lembranças não vão embora e é possível escutar as vozes e os gritos daqueles que já se foram. Basta seguir para o conto seguinte, e agora a lembrança se faz ausente, embaçada, fugidia. Aqui nos deparamos com os momentos que buscamos lembrar, mas o sentimento, o detalhe, a definição de tudo já foram embora. Em Alguém do passado, estranhamos a dor que já partiu, “constatando que, quem diria, com aquele sujeito dividimos um dia o nosso cotidiano, com aquela pessoa compartilhamos momentos de amizade e confidência, com aquela mulher tivemos os corpos nus unidos num abraço”.

Os pespontos — ou contrapontos — de Márcio Barbosa vão se seguindo, os olhos presos às palavras que vão sendo tecidas aos poucos. Em O encontro, a constatação da vida passada se dá dentro de uma casa vazia, do espaço sem vida ou colorido, sem gente, sem histórias. É na imagem retratada no quadro a óleo pendurado na parede da sala que residiam o sonho, o desejo irrealizado, a vontade de que tudo pudesse ter sido diferente, leve, suave e superficial, como nas pinceladas daquele artista, como nas cores eleitas para retratar a felicidade de um breve instante que nunca chegou.

Na história seguinte, ao contrário, o espaço dramático é aberto. Em A aventura o mote é a mulher suicida que atravessa descuidadamente uma avenida em dia de chuva e o que seria um contratempo corriqueiro torna-se uma constatação triste. É naquela dimensão tempo/espaço em que um grupo junto ao acaso precisa se ver livre de alguém inadaptado, que podemos observar a solidão e o desamparo de uma vida carente, a humanidade e a desumanidade, a verdade e o fingimento de um grupo heterogêneo de quem ainda não chegou a experimentar o desatino.

A próxima dupla de contos se debruça sobre o amor. Uma escolha de Sofia e Naquela manhã mostram, em oposição, o amor maduro, relacionamento da conveniência, daquele tipo que cede às circunstâncias e não aceita pressões desmedidas, e de outro lado, o amor inconveniente, adolescente, incontido, de uma espécie que deixa marcas, que não mede consequências, desmesurado, que não reflete nem aceita rigores sociais ou amarras próprias das idades mais prudentes. Aqui também o subir e descer da agulha de Márcio atravessando a dimensão do amor e encontrando seus pontos extremos, ou polos opostos.

Os últimos dois contos de Márcio Barbosa são as verdadeiras obras-primas de seu livro e que justificaram plena e sobejamente a merecida premiação pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. Não que Márcio precisasse de confirmações: a simples leitura do texto e a quentura que ele é capaz de trazer são suficientes para um simples leitor notar que o texto possivelmente foi uma unanimidade entre os jurados. Ali estão aurora e crepúsculo, nascimento e morte, o desabrochar e o perecer de cada um dos dias, nestes representada a vida inteira. Aqui se escrevem as duas vidas em oposição — uma que acompanha a madrugada a bordo do navio Maragojipe, e outra desafiando uma tarde que já se ia apagando, dessas em que o sol vai descendo e transmutando os tons do firmamento até o lusco-fusco do quase-noite, até o momento em que a visão e a vida se turvam, embaçam, escurecem.

Voltamos a Guimarães Rosa e lembramos que foi ele quem afirmou que “o sapo não pula por boniteza, mas por precisão”. A frase não pode ser mais exata. Foi por precisão que Márcio Barbosa coseu todas essas letras e histórias, que pularam de dentro de si para o papel, e dez anos após apresentou o livro pronto para um certo concurso de seu estado natal. E foi por boniteza que ele ganhou o prêmio máximo e segue encantando os leitores que buscam a beleza das pequenas coisas, os impulsos da natureza, a verdade que somente os melhores contadores de histórias são capazes de revelar.

A costura de si
Márcio Ferreira Barbosa
7Letras
142 págs.
Márcio Ferreira Barbosa
Nasceu em Salvador, em 1971. Formado em psicologia pela Universidade Federal da Bahia (1996) e mestre em sociologia (UFBA, 1999). Publicou anteriormente o ensaio Experiência e narrativa (Edufba, 2003). A costura de si é seu livro de estreia na ficção.
Paula Cajaty

É poeta. Autora de Afrodite in verso.

Rascunho