No limite do real

O fantástico permeia os nove contos que compõem "Sr. Bergier & outras histórias", de Anderson Fonseca
Anderson Fonseca, autor de “Sr. Bergier & outras histórias”
30/07/2017

Se nos empenharmos em observar o quadro contemporâneo da produção literária, certamente, no tocante à prosa, o elemento fantástico avultará com relevância, seja numa vertente em que o extraordinário (no sentido original da palavra) se mescla ao comum, ao real, e se “normaliza”, seja em outra modalidade mais agressiva, onde o “bizarro” subverte o real até o ponto em que este acaba se tornando mero detalhe na conjuntura narrativa. Conquanto este ponto seja passível de discussão, parece razoável enxergar uma grande distância conceitual entre Kafka e nosso Nelson de Oliveira, por exemplo.

Resta especular o papel que esse elemento estético, isto é, o fantástico, assume em nosso século; se a crítica, de modo geral, vê plena justificação estética e contextual no absurdo narrativo que Kafka concebia em suas obras, num cenário histórico de desolação deixado pela Primeira Guerra Mundial (que ensejou também o niilismo dadaísta e a “deformação melancólica” do expressionismo), como entender o fantástico numa era como a atual, de liquidez dos valores e globalização voraz? Seria mera convenção literária ou a expressão artística incontornável dessa mesma época? O tempo (e o distanciamento crítico que ele propicia) poderá dizer.

Uma das obras que poderão servir de base para um escrutínio a respeito é Sr. Bergier & outras histórias, terceiro livro de contos de Anderson Fonseca.

O espelho (e o reverso)
O fantástico é presença que permeia os nove contos que compõem essas breves oitenta páginas de uma escrita compacta e fluente, mesmo que em alguns poucos contos (O bibliotecário e Pétala, por exemplo) se manifeste de forma nuançada, mais próximo a um insight; contudo, mesmo em tais casos, o absurdo está ali, sorrateiro, ora na perplexidade de um trabalhador que ignorava o não-sentido de seu ofício para si mesmo (O bibliotecário), ora na figura da morte transfigurada em uma pétala que, suave, leva a vida de uma senhora septuagenária adormecida em uma poltrona (Pétala).

Em tais e outros casos, a realidade se deixa tocar pelo inusitado, concebido pelo autor como uma chave possível de compreensão da realidade, na maior parte dos casos; em outros, o “toque” acima mencionado e seus efeitos são um fim em si mesmo, sem maiores pretensões filosóficas (é o caso do conto O presente de Evaristo, que sintomaticamente ressoa ecos de Poe). Chama a atenção as frequentes menções à Bíblia presentes como um interlúdio a alguns contos: esses excertos, que se entrelaçam com o material ficcional de natureza diversa (no caso de A máquina, científica, a título de exemplo) produzem um efeito quase mítico a essas fábulas. Em todo o caso, sempre interessante.

Em Sr. Bergier, conto inicial do livro, percebe-se um autor em diálogo com suas referências (marcadamente o argentino Borges) na história do cientista contemporâneo a Newton que libera do espelho seu reflexo que, paulatinamente, quase como um Dorian Gray às avessas, vai “absorvendo” sua vitalidade e vida até que o “original” se desvaneça, deixando de existir. A temática do espelho e seu reverso, desde Machado de Assis e Guimarães Rosa, é bem conhecida na literatura, mas a chave aqui parece ser Borges, embora Sr. Bergier flua menos especulativo; entrevê-se em sua textura narrativa, como na própria concepção do “duplo”, mais do Edgar Alan Poe de William Wilson.

O já mencionado O presente de Evaristo corrobora tal impressão — a história de um vendedor de animais desfigurado por corvos que na noite natalina presenteia seus desafetos com um “agrado” singular — bem como os contos A máquina e O sonho, em que a questão do duplo — o eu e o outro eu — é desenvolvida diversamente, com nuances expressivas.

Aliás, ambas as histórias são representativas de um elemento adicional neste volume de contos: a ciência enquanto evento extraordinário, quase seu eixo temático. Dos experimentos do Sr. Bergier à máquina de suspensão temporal de A máquina, é notório que esse fator temático é também o gatilho que impulsiona o fantástico na narrativa:

O espelho de seu relógio está rachado na linha do meio-dia, o que por si é intrigante. Se você observar, há de notar que esta rachadura não se assemelha a uma linha, mas a um rasgo sutil na substância da realidade (…)

Suas observações parecem coerentes, doutor. Mas não está claro para mim aonde pretende chegar com estas colocações.

Fargo, acredito que você é uma paridade temporal do meu auxiliar morto. E justamente por isto há um desequilíbrio na função do tempo que precisa ser corrigido.

E a solução seria a minha morte.

Já em outros casos, como em The New York Times, da conjunção de fatores surge o inusitado: dois minutos de atraso na entrega do jornal e duas versões do exemplar desencadeiam um cataclismo inesperado na bolsa de valores. O conto torna patente o quanto o mundo está alicerçado em fundamentos frágeis, e mesmo a viga angular que no caso sustenta o complexo maquinário econômico neoliberal, elaborado para não ser entendido, cede facilmente ao mais leve sopro, tal um castelo de cartas.

Diante de um equilíbrio tão tênue entre caos e solidez das instituições, que não deixam de exercer seu poder opressivo sobre os homens, qual seria o custo desse processo para as consciências deles e suas vidas? No conto Loja 203, o leitor pode antever a resposta para tal questão ao se deparar com as consequências que uma demissão em massa numa loja de eletrodomésticos provoca para onze funcionários. No entanto, a expressividade desse conto advém das opções estéticas de Anderson Fonseca que transforma o incidente em uma mera notícia de jornal, cristalizada no tempo e tornada banal em meio ao fluxo de informações que bombardeia o homem comum e “anestesiado”; dessa forma, não provocaria realmente nada de muito relevo ao militar que a lê ou ao seu barbeiro, que o atende.

A pièce de résistance da narrativa é seu desfecho:

Gilberto que não sabia e nem era capaz de imaginar a vida desmanchar-se num grão de pólen, depois de ler a manchete, entregou o jornal a Francisco e disse: Jogue no lixo. E Francisco que entendia a vida somente como uma sucessão de cortes, obedeceu ao amigo.

O conjunto, assim, ganha unidade ao enfocar a tensão existente entre o caos e a ordem, entre a vida em sua rígida compostura rotineira e sua súbita e surpreendente supressão.

Escrita enxuta
Anderson Fonseca encaminha sua narrativa com uma escrita concentrada e enxuta. Sua prosa dosa as metáforas e faz um uso idiossincrático das vírgulas; no campo da estrutura narrativa, algumas recorrências são observáveis, como o adiantamento do clímax da fábula (o desvanecimento do Sr. Bergier; a constatação perplexa do bibliotecário etc.) para o início dela, desenvolvendo após, paulatinamente, as causas que motivaram o ocorrido.

Em suma, o conjunto proporciona agradável e fluente leitura.

A edição da Penalux é, de modo geral, bem cuidada (em seu aspecto gráfico, sobretudo). Contudo, há alguns deslizes de revisão: “Quem sabe senão é o demônio querendo afastar-me de Deus?”, “Meu silêncio foi à resposta como também foi o princípio de um medo”.

Tais ocorrências, porém, são escassas e não desmerecem a obra. Sr. Bergier & outras histórias é leitura invulgar e seus predicados correspondem às ânsias do leitor amante de agradável entretenimento.

Sr. Bergier & outras histórias
Anderson Fonseca
Penalux
88 págs.
Anderson Fonseca
Nasceu no Rio de Janeiro em 1981. Mudou-se para o Ceará em 2011. É autor dos livros de contos O que eu disse ao general (2014) e Notas de Pensamento Incomuns (2011).
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

Rascunho