No fim do mundo com Houellebecq

Resenha de “Um escritor no fim do mundo”, de Juremir Machado
Juremir Machado da Silva, autor de “Um escritor no fim do mundo”
01/08/2013

O ano era 2007 e Juremir Machado da Silva, tradutor de Michel Houellebecq para o português (vertera Partículas elementarese Extensão do domínio da luta até então), havia conseguido que o escritor francês fosse um dos convidados do ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento. Convite aceito, Houellebecq pede ao “amigo” Juremir que, junto com sua mulher Claudia, também o acompanhe a uma viagem a Buenos Aires, Ushuaia e El Calafate. Vão à Patagônia porque é o lugar habitado mais ao Sul do mundo; porque, para os franceses, há a impressão de que nenhum outro canto pode ser mais longe — ainda que a Nova Zelândia seja mais distante da França — e porque, na ocasião, Houellebecq vendia mais livros na Argentina do que em todos os outros países hispânicos juntos.

Claro que o casal aceita o pedido — caso contrário, Um escritor no fim do mundo (viagem com Michel Houellebecq à Patagônia) não existiria e, conseqüentemente, esta resenha tampouco. Embarcam em uma viagem de sete dias, e é importante notar como de algo tão breve Juremir retirou um bom e valioso relato. Livros de viagens costumam retratar longas expedições — como Na trilha da humanidade, de Airton Ortiz —, aventuras que duram meses — O safári da estrela negra, de Paul Theroux —, buscas por algo quase sagrado — A última casa de ópio, de Nick Tosches — ou profundas imersões na cultura um país ou região ao menos um pouco estranho ao viajante-escritor — Colômbia espelho América, de Edvaldo Pereira Lima. Em todos os casos, quanto mais tempo o explorador tiver para flanar pelo desconhecido, melhor.

Talvez por não ter tido tanto tempo para esmiuçar a cultura local, talvez por não ter vivido nenhuma grande aventura — a viagem que Juremir, Michel e Claudia fazem é estritamente turística: andam de avião, táxi, hospedam-se em bons hotéis, integram excursões a atrações tradicionais, comem em bons restaurantes… — ou por estar acompanhado de um interessante escritor de renome internacional, o foco da escrita de Juremir se concentra muito mais no relacionamento que desenvolve com Houellebecq do que na viagem em si, que fica em segundo plano.

O autor opta por iniciar a obra com uma confissão que é quase um paradoxo para o que vem a seguir: “Eu amo as viagens e as memórias fugitivas. Mas odeio os viajantes e seus relatos”. Logo depois, trabalha com um conceito um tanto básico das narrativas de viagem: “Fomos ao exterior. Viajamos para o interior de nós mesmos. É essa narrativa que pretendo fazer aqui: a história de uma viagem ao interior de um homem”. E o que entrega ao leitor não é simplesmente um relato da sua passagem pela Argentina, mas principalmente uma interessante mistura de perfil do escritor francês — uma viagem ao seu interior — com ensaio sobre a relação dos dois — ou dos três, em alguns momentos.

Difícil companheiro
Michel Houellebecq é um gênio ou um grande idiota, depende de quem o avalia. Em abril de 2002, Moacyr Scliar resenhou Plataforma, terceiro romance do francês, para a revista Veja. O título do texto, bastante elogioso à obra, era exatamente uma alusão a esses dois extremos de tratamento ao escritor: “Seria o autor francês um novo Albert Camus ou apenas um romancista medíocre e apelativo?”.

Seus romances são perturbadores. Pessimistas, politicamente incorretos, cheios de humor negro e com cenas de sexo que alguns dizem se aproximar da descrição de um filme pornô, de alguma maneira refletem a imagem do próprio autor. Houellebecq gosta de polêmicas e parece não se preocupar com o que os outros pensam dele (os brasileiros que o digam: o escritor já cancelou duas vezes sua vinda à Flip; a segunda, inclusive, aconteceu neste ano). Esforça-se para nutrir a imagem construída em torno da sua figura.

Na relação com Jurandir, faz questão que seja visto como alguém arrogante e eurocentrista, além de reiteradamente mostrar-se sedento por sexo. “Eu adoraria transar com brasileiras de dezessete anos que me acham radicalmente delicioso, mas isso me parece difícil dado o pouco tempo que ficarei em Porto Alegre. Tu não poderias organizar um concurso para descobrir a mais motivada dessas garotas? Afinal, estou ficando velho e talvez seja a minha última oportunidade de ir para a cama com uma brasileira”, diz em determinado momento para o parceiro, que, em algumas ocasiões, tem a clara impressão de que ouvirá Houellebecq se convidando para participar de um ménage à trois junto com o brasileiro e sua mulher.

Como é de se imaginar, a relação com o escritor francês não é exatamente tranqüila. Imprevisível, pode desencadear uma longa e surpreendente discussão sobre o que pingüins e lobos marinhos supostamente representariam — Houellebecq defende os primeiros; Juremir, os segundos, numa discussão que ganha corpo e importância ao longo do livro —, mas também se comunicar com o interlocutor apenas por meio de “humm” com entonações e sentidos diferentes, tudo depende do seu humor. Uma pena, pois quando o francês resolve efetivamente falar, surgem boas conversas, cheias de idéias, teorias e discussões intercaladas por amenidades e bobagens — que dão um toque pessoal e informal aos diálogos, bem ao ritmo de uma viagem sem grandes compromissos —, muito bem transpostas para o livro por Juremir.

Como não poderia ser diferente, o assunto que rende os melhores papos é literatura. Ciente do vasto conhecimento do francês, Juremir, em uma preocupação típica de intelectual, até decora o trecho de um texto de Jean Baudrillard para poder citá-lo e se fazer de erudito. Com essa alternância entre quase monólogos seguidos de lacônicos “humm” e longos, profundos e bem humorados diálogos, Juremir e Houellebecq ora parecem estar se descobrindo, ora parecem velhos amigos.

Paisagens de gelo
Talentoso e atento, Juremir não se perde quando o francês resolve praticamente se enclausurar em si mesmo. Utiliza a relação com Claudia, as experiências que vivem, as refeições e momentos turísticos para dar corpo e movimento ao livro. Também observa bastante Houellebecq, em alguns momentos até demais: “É sempre comovente e elegante esperar um escritor famoso urinar”, confessa.

Apesar do foco na convivência com Houellebecq, em alguns momentos a narrativa de Um escritor no fim do mundo aproxima-se dos tradicionais livros de viagem. Juremir traz um pouco do fim do mundo para o leitor — lá encontram marcas da civilização que parecem se espalhar por toda a parte: American Express, Diesel, Puma, Adidas, Renault, Sony e BMW, por exemplo — e apresenta interessantes histórias de alguns lugares por onde passam, como o presídio de Ushuaia.

Ainda levando em conta os elementos locais, são interessantes as poucas oportunidades em que o autor se utiliza de algo tradicionalmente hermano como recurso. Eis uma amostra: “O silêncio tornou-se espesso. Parecia a defesa de um time argentino de futebol, de tão compacto”. Aliás, o futebol aparece em diversos momentos, mas é uma pena que daí surjam os raros deslizes do autor. Escrever que “em time que está ganhando não se mexe” para justificar o pedido de outra garrafa do mesmo vinho que estavam tomando ou que quando vêem um enorme bloco de gelo, correm para fotografá-lo junto com “as torcidas reunidas do Flamengo e do Corinthians” é optar por soluções fáceis demais.

Entretanto, não fossem construções tão óbvias, passariam desapercebidas perante os méritos do escritor. Durante uma das muitas conversas sobre literatura, Houllebecq pergunta: “Por que os seus livros não são lidos, Juremir?”. “Talvez por serem ruins. Essa é a opinião dos que me criticam”, responde o brasileiro. Não sei como andam as vendas nem o número de leitores de Um escritor no fim do mundo, mas, caso não estejam sendo satisfatórios, o problema está em algum outro lugar, não na qualidade da obra. Ao menos na opinião deste que lhe critica, Juremir.

Um escritor no fim do mundo
Juremir Machado da Silva
Record
238 págs.
Juremir Machado da Silva
Gaúcho de Santana do Livramento, nasceu em 1962. Historiador, doutor em sociologia pela universidade francesa Sorbonne, jornalista, tradutor, romancista e professor universitário, é autor de Getúlio, Solo e 1930: águas da revolução, entre outros.
Rodrigo Casarin

É jornalista, especialista em Jornalismo Literário com pós-graduação pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário e editor do Página Cinco (paginacinco.blogosfera.uol.com.br), blog de livros do Uol. Além disso, colabora ou já colaborou escrevendo sobre o universo literário com veículos como Valor Econômico, Carta Capital, Continente, Suplemento Literário Pernambuco, e Cândido. Integrou o júri do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa em 2018, 2019 e 2020 e o júri do Prêmio Jabuti em 2019.

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