Te dei olhos e olhaste as trevas, romance da catalã Irene Solà, vem do esconjuro de Deus a uma das personagens desgraçadas do livro:
Afasta-te de mim, endemoninhada, que te dei ouvidos e escutaste outro, (…) que te dei boca e confabulas com outro, (…) que te dei olhos e olhaste as trevas.
Para essas trevas, justamente, nós leitores somos atraídos, fisgados desde o título e as primeiras frases, a acompanhar uma genealogia de mulheres amaldiçoadas, cujas histórias atravessam séculos desde o âmago de uma casa, entre visões, demônios e fantasmas.
Aqueles que já conhecem a prosa extraordinariamente rica de Irene Solà, do romance anterior Canto eu e a montanha dança, carregado de elementos mágicos e imaginação poética, também devem já saber do interesse da autora pelo folclore catalão, pela tradição oral e suas heranças culturais entranhadas nos modos de ver e pensar o mundo. Se no processo de escrita de Canto eu e a montanha dança interessava à autora investigar sobre bruxas e julgamentos por bruxaria na Catalunha, neste novo romance o ponto de partida é o pacto com o diabo, a figura do demônio, também resgatando contos e lendas do imaginário catalão, agora numa história familiar protagonizada por mulheres às quais o diabo está intimamente associado.
Ambientada numa propriedade rural da região montanhosa a nordeste da província de Barcelona, a história de sete gerações de mulheres se desenrola, indo e vindo no tempo, através de mais de quatro séculos de lobos, demônios, bandoleiros, bruxas, guerras, torturas, partos, mortes e esquecimentos, até chegar ao nosso século, de realidade fantasmática, com celulares que se acendem e se apagam como espelhinhos mágicos. Nessa casa de fazenda onde toda a história se passa em memórias e visões, nenhum homem permanece e só a mulher sobrevive ao diabo.
Fantasmas
A cozinha é o espaço visceral onde as personagens se reúnem, riem e contam histórias enquanto enchem caçarolas, escaldam tripas e misturam sangue de cabrito a farinha e ovos. O que se dá fora da casa vem em lembranças. Joana, Margarida, Blanca, Àngela, Dolça, Elisabet, todas são fantasmas que se imiscuem entre os vivos, atadas à mesma casa em suas histórias, unidas para a eternidade, além da morte e dos poderes do diabo, que até mesmo o diabo a certa altura abandona a casa. Mulheres desamparadas como “as crianças que nasceram durante o suplício” e que se perpetuam desassistidas, como o que foi castigado, pois “o que foi castigado não morre nunca”.
Nas entrevistas publicadas na época do lançamento do livro em catalão, Irene fala da estrutura de mulheres a que chegou no seu processo de escrita trabalhando temas de perspectiva e subjetividade. Fala também da sua intenção de fazer um “romance de fantasmas absolutamente corpóreo”, cheio de descrições sensoriais, ativando na linguagem toda obscuridade ligada ao corpo (aí incluído o interior da casa). Esse trabalho com diferentes subjetividades e perspectivas e a intenção de uma narrativa corpórea fazem parte daquilo que Irene considera tão importante quanto a história a ser contada: o modo de contar, e o que dizer ou não dizer. E com seu modo muito próprio, poético e prazeroso de contar, é capaz de jogar hábil e constantemente com a elasticidade do tempo na narrativa (toda a história se passa ao longo de um único dia e num mesmo espaço, contendo séculos nesse dia e muitos lugares nessa casa) e as interseções dos planos de vida e morte, visível e invisível.
Dependendo dos olhos que veem, as trevas podem ser um lugar de refúgio. Dependendo do corpo que sente, a obscuridade leva ao gozo, a dor e o horror podem ser nada, o amor pode ser um poliamor selvático, e o pior de tudo pode não ser a morte, mas a solidão. Pelos olhos de Margarida, todas as mulheres da casa são malditas, feias, defeituosas, depravadas. Pelos olhos de Blanca, há naturalmente sexo por toda parte, entre os porcos, os gatos, as moscas. Pelos olhos de Elisabet, a mãe de Deus e sua amante Blanca se confundem, ambas têm as mesmas mãos e a mesma ternura nas carícias. Pelos olhos de Bernadeta, tudo se vê, passado e futuro, a beleza majestosa do diabo, a morte de cada pessoa, inclusive a própria. Pelos olhos de Alexandra, há a bisavó dormindo no quarto de cima da casa, há sua mãe Marta conversando com ela pelo celular, e a cozinha, cheia de fantasmas, está vazia.
Toca do diabo
Dentre tantas descrições sensoriais que são marcantes nesse livro, vale destacar a toca do diabo em forma de amêndoa, seu fedor asfixiante, “molhado e virulento”, a cópula de Bernadeta com a besta, fazendo-a crescer de um bode “feio, medicante, enfraquecido, grotesco, chifrudo e corcunda pelo peso de tanta solidão”, a um touro “altivo e imenso”. Ou o preparo minucioso do cabrito depois de passado à faca, os cortes, o despelar do animal, o esvaziar das vísceras, e as misturas cheirosas com que banham a carne do bicho ao fogo, azeite, cebola, vinagre, tomilho, alecrim, ovos, mel e canela. Também as imagens impressionantes de tortura são altamente corpóreas, como as do destroçamento público de Francesc, o desfile do seu corpo aos pedaços pelas ruas da cidade, ou o espancamento da menina Àngela quase até a morte numa brincadeira macabra de meninos.
A propósito do diabo na nossa literatura, lembremos a pródiga quantidade de nomes que o mineiro Guimarães Rosa lhe dedica. Em Te dei olhos e olhaste as trevas, temos meia página de nomes igualmente inspirados, com o acréscimo de uma pitada feminina, que chamará a besta — “ao pé de ouvido” — não apenas de Carrasco e Ladrão da Vida, Trovão, Coisa feia, Íncubo, Dragão ou Poucapena, mas também Coisa linda, Querido, Gaiato, Brilho dos olhos e do sol e das estrelas, Pequeno mestre, Velho amigo. Esses nomes vêm da boca da personagem Bernadeta e têm de feminino a mesma cumplicidade diabólica que vemos pelos olhos e ditos do patrão Francesc (ditos esses que agradam ao ajudante da fazenda que o acompanha): “Onde falta a mulher, o diabo traz”; “Quando o demônio não pode, a mulher manda”; “Uma vez o diabo e a mulher jogaram, e foi ela que ganhou”.
A forte atração que Irene já declarou sentir pelas palavras e maneiras de dizer, por contar e ouvir histórias, seu ponto de vista de que “romances são projetos artísticos”, seus processos de investigação e criação correndo juntos, tudo isso irradia de uma atenção especial para inesperadas possibilidades de linguagem. Contando com a poesia e as artes visuais em seu caminho (um livro de poemas marca sua estreia na literatura e sua formação é em Belas Artes pela Universidade de Barcelona), o mergulho em lendas e contos da Catalunha, entre outras fontes, vem alimentar um universo ficcional vivamente mágico e contemporâneo.
Com matéria poética extraída e recriada de antigas raízes, Irene traz para os nossos tempos a força de um imaginário que vai de uma herança folclórica a um bem universal, e cuja obscuridade tem o mérito de ser uma zona francamente aberta à imaginação. Aquelas mulheres que foram letra invisível nos séculos de História que o romance abrange, surgem agora para nós como protagonistas fantasmagóricas, e é pela voz e pelo olhar dessas mulheres que acessamos o maravilhoso sombrio de suas histórias. O pacto com o diabo esconde ainda outro pacto pretendido pela autora: o pacto de “suspensão de incredulidade” entre leitor e escritor. Com Irene Solà, pelo que nos fazem imaginar seus romances e por seu modo tão vivo e rico de contar, o pacto é certo, e o impacto, inapagável.