Memórias de lugar nenhum

Com traços autobiográficos, romance de estreia de Alejandro Chacoff faz raio X de uma família desestruturada pelo dinheiro e os deslocamentos geográficos
Alejandro Chacoff, autor de “Apátridas”
01/11/2020

Não espere grandes viradas ou emoções ao extremo em Apátridas, romance de estreia de Alejandro Chacoff. No livro, são as relações familiares, comezinhas, perpassadas pelos contatos entre classes sociais e o sentimento de não pertencimento que dão tom à narrativa. Nada genial, portanto, embora um feito bem executado pelo autor, mais conhecido por seu trabalho na revista piauí. Ele nasceu em Cuiabá (MT), em 1983, e viveu nos Estados Unidos e Inglaterra antes de voltar definitivamente ao Brasil.

Narrado em primeira pessoa, o protagonista é um sujeito de quem o nome desconhecemos, não sendo citado por nenhum de seus interlocutores. Ainda criança, nos anos 1980, muda-se com a família tradicional para os Estados Unidos. Quando volta ao Brasil, retorna apenas com a mãe e a irmã, indo morar em uma cidade no Mato Grosso, na rua Otiles Moreira (que segundo o Google Maps, fica em Cuiabá, capital do estado). Aos poucos, descobrimos mais sobre este que nos conta a história. O pai é um chileno cuja principal função na vida talvez seja mentir e buscar formas de obter recursos financeiros; a mãe, por sua vez, é professora universitária que estudou linguística no doutorado nos EUA. O avô materno, José, é um cartorário rico que vive em uma casa na Otiles Moreira. E o dinheiro, um dos principais personagens do romance, de certa forma é o pai de todos. Esses elementos, aliás, parecem sempre estar descolados do local em que estão. Daí, quem sabe, justifique o título do livro no plural.

Memórias e o presente
Após se separar do marido devido a mentiras e traições, a mãe do protagonista decide retornar ao Brasil, para morar com o pai, José, em uma casa movimentada. Já aposentado, o cartorário é uma das figuras proeminentes na capital do Mato Grosso, local em que todos se conhecem, onde fulano é filho do político X; sicrano, do desembargador Y. É em meio a esse Brasil no qual a ascensão se dá pela política e patrimonialismo que o narrador, criança, cresce, após ter vivido nos Estados Unidos. “Ei, como é que fala buceta em inglês?”, as crianças lhe perguntam. Ao ouvir a resposta, riem e saem correndo. Um mundo sendo descoberto, e as línguas, mesmo que diferentes, registrando essa passagem.

Dividido em duas partes, com seis capítulos na primeira e um na segunda, a trama é costurada a partir das memórias do narrador ainda criança e em locais como Estados Unidos, Chile e Brasil, principalmente na primeira parte. Na segunda, estamos em 2010, e, homem feito, o protagonista vive em Londres, onde trabalha com relações internacionais.

Um dos méritos do romance é soltar as informações aos poucos, deixando que o leitor construa o mosaico que é a história da família. A prosa tem sua cadência. Não é eletrizante, pode-se dizer, mas há algo nela que cativa o leitor. Sem dúvida alguma é a qualidade literária de Chacoff, que sabe como conduzir um relato navegando entre o passado e o presente, mesmo que, às vezes, o tom monótono possa incomodar. Nas terras do Mato Grosso, é como se, mesmo quem vem de fora, parasse no tempo.

É significativo que a abertura do livro tenha, logo em sua frase inicial, uma referência ao símbolo das trocas no sistema capitalista. Escreve o narrador que “o dinheiro americano era simples”. Há, aí, uma possível chave de entendimento: se o dólar é isso, as relações perpassadas pela moeda não o são. Um jogo de espelhos e falsos caminhos se seguem. É simbólico, também, que a figura do pai já apareça no início da narrativa. São eles, o vil metal e o homem responsável pela vida do protagonista, os demônios que pesam ao longo de toda a história. O resultado dessa carga são os descolamentos e o sentimento de não pertencimento.

Ao fugir do dinheiro e se distanciar, por diversos motivos, do pai, o narrador está sempre perdido, ao mesmo tempo em que busca algo, mesmo que nem ele saiba exatamente o quê. A mãe, que seria um caminho possível, constrói uma barreira em razão dos livros: ela está sempre estudando. Na rua, os amigos sentem o sotaque do menino criado em outro país. Embora existam outros familiares ao redor, quem fica próximo ao narrador é José, o avô cartorário. Ele é, também, um dos símbolos desse Brasil fora do eixo Rio-São Paulo. A forma como o avô recebeu um cartório nós não ficamos sabendo, embora possamos deduzir de que maneira as relações se dão e davam em parte do país no século passado (e atualmente). O que nos é informado sobre essa fonte de dinheiro, conforme o protagonista, é que “sua explicação para o acúmulo era simples. ‘Ganhei a concessão do cartório e começou a cair na conta que nem água’”. Uma frase que, perdoem-me os pares das ciências sociais, condensa o pensamento de Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda.

A casa do avô na rua Otiles Moreira é o centro de tudo — refeições, sonecas, discussões intelectuais. Um antropólogo, amigo da mãe, vai até lá. Debates sobre indígenas perpassam essas conversas, incomodando os outros moradores. É um tema descolado, apátrida. Anos depois, Elisa, a prima do protagonista que estuda na USP e lê Antonio Candido e Darcy Ribeiro, também passa pela residência. Em meio à intelectualidade que aborrece os presentes, as saídas dela com as amigas na noite são mais bem aceitas. A certa altura, José diz que ser professor não dá dinheiro. Na família, valorizar o pensamento tem sentido contraditório: ao mesmo tempo em que o estudo é estimulado, ter bens materiais é o que importa. É uma síntese do Brasil, e a casa simboliza os deslocamentos, encontros e desencontros aos quais todos estão condicionados naquela cidade do Mato Grosso.

Um Brasil feito de contradições, assim como os personagens. O pai é um crítico do país, dizendo que há mandos e desmandos, que os funcionários do ex-sogro são capangas. Afirma, também, que foi roubado pelos parentes, que ninguém presta. Mas é ao ex-sogro a quem ele recorre, por telefone, em busca de dinheiro, enquanto o filho ouve tudo por meio de uma extensão.

Dentro desse território rural, contraditório, rincões outrora desconhecidos, os personagens são bem descritos por Chacoff. Romualdo, um sujeito que faz tudo dentro da família, é uma das imagens do patrimonialismo brasileiro. Criado junto aos parentes do narrador, ele é quase da família, não fosse o fato de ser negro e filho de empregados. Um tipo que está preso à condição que vive por conta das raízes do Brasil, mas que, ainda assim, está sempre em movimento, como se não pertencesse a lugar nenhum e a todos os locais. Claro, espaços esses definidos pelo patrão.

Em estreia na literatura, Alejandro Chacoff chama atenção para as relações sociais de um país que ainda precisa se acertar com o passado, a política e as ambições futuras. Mesmo com o tom por vezes monótono, Apátridas merece atenção.

Acerto inquestionável
Por fim, mas não menos importante, vale o registro quanto a um fato extraliterário. A capa de Apátridas é uma escolha mais que feliz. Nela, vemos um posto de combustíveis, algo tipicamente presente no imaginário que temos dos Estados Unidos. As cores são azul, branco e vermelho, podendo representar tanto a bandeira dos EUA quanto a do Chile. O espaço ilustrado está no meio do que podemos chamar de nada — uma relação direta com o Mato Grosso descrito pelo pai do protagonista.

Apátridas
Alejandro Chacoff
Companhia das Letras
192 págs.
Alejandro Chacoff
Nasceu em Cuiabá (MT), em 1983. Aos dois anos de idade, mudou-se para os Estados Unidos. Depois de ter passado por Chile, Inglaterra e Argentina, voltou ao Brasil. Atualmente, vive no Rio de Janeiro (RJ). Desde 2016, assina críticas literárias e ensaios na revista piauí. É também colaborador de publicações como The New Yorker e The Guardian. “Apátridas” (2020) é o livro de estreia do autor.
Victor Simião

Formado em jornalismo e ciências sociais. Atualmente, é secretário de Cultura de Maringá (PR). Criou o clube de leitura Bons Casmurros.

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