Mário de Andrade e o brasileiro essencial

Macunaíma visava ultrapassar o abismo entre a cultura letrada e a cultura popular oral
Mário de Andrade por Vitor Vanes
26/08/2015

O Brasil já não é o país do momento, embora possamos considerá-lo como o eterno país do futuro. O que molda, move e representa uma nação é o caráter de seu povo. Resta-nos apreender, então, aquele possível brasileiro que, em essência, moldaria a todos nós. Aquele que partilha conosco o mesmo barro.

O grande escritor brasileiro, paulistano da Rua Aurora, da gema, ícone e pensador do Modernismo brasileiro, com seu “oclinhos” e queixo de propaganda de barbear, postulou o seu: Macunaíma. E ainda frisou: “sem nenhum caráter”. Vejamos como se dá essa forja.

Para os que têm pressa e ainda não o leram (algo quase impossível, pois é livro recorrente nos vestibulares da vida), poderíamos resumi-lo assim: “Macunaíma é uma rapsódia cantada por Mário de Andrade (pelo narrador, seria mais exato), que por sua vez a escutou de um papagaio”.

Bem, com esta síntese, você certamente não passaria no vestibular. Poderia, então, tentar uma síntese de gente mais gabaritada. Aquela famosa de Antonio Candido e José Aderaldo Castello estampada no livro Presença da Literatura Brasileira — Modernismo, Bertrand Brasil, 1997, página 112.

Esta “rapsódia” (como era qualificada na primeira edição) conta as aventuras de Macunaíma, herói de uma tribo amazônica, que o autor misturou a outros, também indígenas, e que reinventou como personagem picaresca, sem cortar as suas ligações com o mundo lendário. Depois da morte da mulher (Ci, a Mãe do Mato, que se transforma na estrela Beta do Centauro), Macunaíma perde um amuleto que ela lhe dera, a “muiraquitã”. Sabendo que está nas mãos de um mascate peruano, Venceslau Pietro Pietra, morador em São Paulo, vem para esta cidade com os dois irmãos, Maanape e Jiguê. A maior parte do livro se passa durante as tentativas de reaver a pedra do comerciante, que era afinal de contas o gigante Piaimã, comedor de gente. Conseguido o propósito, Macunaíma volta para o Amazonas, onde, após uma série de aventuras finais, se transforma na constelação Ursa Maior.

O livro é construído no encontro de lendas indígenas (sobretudo as amazônicas recolhidas e publicadas pelo etnólogo alemão Koch-Grünberg), e da vida brasileira quotidiana, de misturas com lendas e tradições populares. O espaço e o tempo são arbitrários, o fantástico assume um ar de coisa corriqueira e o lirismo da mitologia se funde a cada passo com a piada, a brincadeira, a malandragem nacional, que Macunaíma encarna (é “o herói sem nenhum caráter”).

Se isso o satisfizer, muito bem. Se não, deixemos os mestres e suas sínteses de lado e vamos conhecer um pouco mais do seu autor. Talvez isso nos esclareça mais algumas cositas.

Cultura popular
Macunaíma nasceu da proposta de Mário em pesquisar a cultura popular, e transcrevê-la, ou recriá-la à luz da cultura letrada. Mário Raul de Morais Andrade era um erudito, capaz de escrever e falar sobre matérias diversas. Em um único vocábulo, Mário era um polígrafo. Além disso, era diplomado em piano, musicólogo, professor de estética e história da música no Conservatório Dramático e Musical. E se tudo isso não bastasse, ainda era um grande escritor.

Estreou na literatura em 1917 com uma obra considerada inexpressiva e inspirada na Primeira Guerra Mundial, Há uma gota de sangue em cada poema. Como você deve saber, participou ativamente da Semana de Arte Moderna, em 1922, tornando-se a figura central do Movimento Modernista Brasileiro. Seu primeiro livro com feições modernistas foi Pauliceia desvairada deste mesmo ano.

Em 1925, escreve um ensaio importantíssimo chamado A escrava que não é Isaura. Em 1926, lança um livro de poesias, Losango cáqui, e um de contos, Primeiro andar. Se você não se cansou ainda, chegamos a 1927 com outro de poesia, Clã do jabuti, e um romance deliciosamente sensual, Amar, verbo intransitivo. Já estamos em 1928, ano da primeira edição de Macunaíma, que é considerado a obra central e mais característica do Movimento Modernista.

O livro é o resultado da maturação das pesquisas de Mário em música, expressões populares, danças populares como o boi-bumbá, congadas, pastoreio, etc. Mário havia feito duas viagens pelo Brasil, indo do Nordeste à Amazônia. Estas viagens são narradas em seu livro Turista aprendiz, de 1976.

Mário achava que a cultura oral brasileira anônima era o grande repositório criativo do povo brasileiro ao longo dos séculos de colonização. Este tesouro cultural estava apartado da cultura escrita. Seu projeto, então, visava ultrapassar o abismo existente entre a tal cultura letrada e a cultura popular oral brasileira. Por isso denominou Macunaíma de rapsódia e não de romance.

Rapsódia, entre os gregos antigos, era um trecho de um poema épico recitado pelo rapsodo (algo como os nossos cantadores nordestinos). Era a transmissão da epopeia de uma nação. Musicalmente falando, era uma peça de forma livre que utilizava melodias, composições improvisadas e efeitos instrumentais de determinadas músicas nacionais ou regionais. Em Macunaíma a palavra rapsódia está ligada ao trabalho com a cultura popular oral, numa espécie de “bricolagem” que toma elementos da cultura popular oral opondo-lhe elementos da cultura letrada e escrita.

Macunaíma surge como o grande texto deste projeto. Foi um “insight” de Mário, depois de todas as pesquisas de campo realizadas, escrito em apenas sete dias numa fazenda em Araraquara, interior de São Paulo.

Sabemos, também, que Mário usou em sua narrativa a estrutura e até o personagem (Macunaíma) dos índios do extremo norte, recolhidos por Koch-Grünberg, um alemão estudioso de etnografia, etnologia e folclore, que havia lançado o livro De Roraima à Orinoco.

Em outras palavras, Mário chegou ao mais brasileiro dos personagens lendo sobre as lendas indígenas recolhidas por um estrangeiro. Uma bela metáfora, não? Precisamos ouvir o outro, o estrangeiro, aquele que nos observa com distanciamento, para podermos nos conhecer melhor.

No mito indígena, Macunaíma já é o “sonso sabido” que nós conhecemos no livro; aquela figura de herói irresponsável, ambivalente: o consequente inconsequente.

Estrutura narrativa
Segundo Haroldo de Campos em sua tese de doutorado, Morfologia de Macunaíma (Perspectiva, 1972), Mário, ao estudar estes mitos e lendas indígenas, percebera quais eram as constantes, qual a estrutura narrativa destes contos populares.

A tese de Haroldo, embora contestada em vários pontos (ver livro de Gilda Mello e Souza, O tupi e o alaúde, Livraria Duas Cidades, 1979; e, também, o de Affonso Romano de Sant’Anna, Que fazer de Ezra Pound, Imago, 2003), pode ser um precioso guia didático no emaranhado de sentidos e referências da criação de Mário.

No mesmo ano de 1928, Vladimir Propp escreveu Morfologia do conto russo, em que descreve as constantes do conto maravilhoso, das fábulas. Propp percebeu que as estórias poderiam diferir, mas obedeciam a certas constantes como se fosse um roteiro. Ou seja, a tese de Haroldo é a de que Mário teria também intuído esse roteiro, essas constantes, e assim construído a sua rapsódia.

Mas quais seriam essas constantes?

Em primeiro lugar, a situação do nascimento do herói. Os heróis não nascem como qualquer um; nascem de uma maneira diferenciada em todas as tradições, também chamada tecnicamente de “partenogênese”. No caso de Macunaíma, não há um pai, ele nasceu apenas de uma mãe. O pai é como se fosse a própria ordem do universo.

Seu nascimento é o resultado do contato da índia com o vazio do universo. Nasce de um enigma, mediado pelo vazio da noite e o murmurejo do rio Uraricoera. O nascimento e o crescimento excepcionais são traços característicos dentro da tradição dos cantos populares. Por sua vez a ambiguidade é a característica de Macunaíma: ele é o “sonso sabido”, o “retardado precoce”. Retardado porque custa a crescer e, depois que cresce, estaciona. Ele se recusa a falar, não se mexe pra nada, a não ser quando vê dinheiro e mulher. Nos machos, ah sim, ele cospe na cara.

Apesar deste comportamento irreverente, ele respeita a tradição. Todos esses traços ambivalentes se consumam com a forma de crescimento do herói que só se completa quando a velha feiticeira joga caldo de mandioca, como uma poção, para que ele cresça. Ele ainda tenta se esquivar, mas acaba ficando com um corpo de adulto e uma cara enjoativamente infantil. O que o torna o paradigma do herói que, apesar de ter objetivos a conquistar, obstáculos a transpor (que é da natureza de todo herói), não consegue sustentar os seus projetos.

Este paradigma manifesta-se em vários outros romances fundadores da literatura brasileira, como Brás Cubas; Miramar e Serafim Ponte Grande, o que nos leva a considerar que talvez seja a mais perspicaz caracterização do caráter e da realidade do brasileiro. O herói que ao invés de ser guiado pelo princípio da realidade, deixa-se levar pelo princípio do prazer, adiando, ou buscando uma satisfação mais imediata para as suas necessidades.

Mário de Andrade
Mário de Andrade

Dano e reparação
Outra constante apontada por Propp é a de que as narrativas populares se baseiam em duas funções complementares: o “dano”, e a “reparação do dano”. Nas estórias populares, alguém sempre perde alguma coisa, ou está ameaçado, ou prejudicado. A narrativa se desenvolve com o herói enfrentando estas dificuldades ou o antagonista que provoca o tal “dano”.

O “dano” supõe, por sua vez, que haja a relação de um herói com seu antagonista, e supõe, também, que haja coadjuvantes, assim como o desenrolar da estória em partes. No final, há sempre a “reparação do dano”, mas observa-se que na estrutura destas narrativas o “dano” não se repara na primeira tentativa, e nem na segunda. É paradigmático também que o “dano” se desenlace na terceira tentativa de reparação.

Em Macunaíma, o “dano” se apresenta com a perda da pedra Muiraquitã e o desenrolar da narrativa busca o enfrentamento com o antagonista, o gigante Venceslau Pietro Pietra, para que o “dano” possa ser reparado e a Muiraquitã recuperada. A situação do “dano” e do antagonista se apresenta, mas elas são baseadas e entremeadas por inflações do herói. O herói transgride certos tabus e isso resultará em consequências danosas.

Por exemplo, no capítulo 2, Maioridade, Macunaíma mata uma veada parida e seu filhote, que depois se revela ser a sua própria mãe. Ele mata o princípio da maternidade, o princípio anímico que permeia tudo. Matar uma fêmea e seu filhote é matar um princípio ordenador.

Essa transgressão revela-se também como o instante que Macunaíma se descola da mãe, o momento que se individualiza, que finalmente cresce. Daí o título do capítulo: Maioridade. Ele se descola do mundo tribal onde nasceu e a partir deste momento toma a liderança e sai a caminhar com os seus irmãos.

Nestas andanças ele encontra Ci, uma rainha selvagem, mulher guerreira, espécie de Amazonas que só se relaciona com homens para a reprodução. Se o filho gerado for homem será morto e as filhas serão incorporadas entre as mulheres guerreiras. Este mito grego se infiltra por aqui dando nome ao estado do Amazonas, que em grego significa “sem seios”.

O herói quer “brincar”, mas leva uma tremenda surra, e finge que é dono da situação: “me acudam, diz ele, senão eu mato”. Ele apanha até de mulher e ainda dá uma de macho e de bonzão. Que índole, não?

Depois de apaziguada com a ajuda dos irmãos, o herói consegue “brincar” com Ci. De sua relação com ela nasce um filho. Nota-se neste ponto da narrativa de Mário o resultado de suas pesquisas sobre as práticas sexuais indígenas, que, segundo um relato de José de Anchieta, ficavam trepando, trepados nas árvores.

A separação fusional de Macunaíma se completa com a morte da amada e do filho. Todos estão mortos: a mãe, a mulher e o filho. Ci se transforma numa estrela e ele tem para si a pedra verde, o seu amuleto que tem um valor miraculoso, de reter para si este bem perdido. Perdendo-o ele se perderia. E é o que acontece: ele perde a pedra que cai no rio e é comida por um peixe.

O livro todo, como já sugerimos, é escrito na estrutura oral do recado. Conta-se para um, que por sua vez conta para outro e assim a estória é repassada adiante. As estórias de Macunaíma são no final das contas ouvidas por um papagaio que conta para um cantador, que por sua vez está contando pra nós.

A “reparação do dano” implica em defrontar-se com o antagonista Venceslau Pietro Pietra, também chamado pelo nome indígena de Piaimã, o gigante comedor de gente, que aparece na mitologia indígena, e ao mesmo tempo tem uma genealogia europeia.

Macunaíma desloca-se para São Paulo atrás do Piaimã. Isso tudo demora do capítulo 4 ao 14, onde acontece uma multiplicação, uma expansão da estória pela proliferação do que podemos chamar de “rounds”. Por outro lado, esta expansão se dá porque o herói é esquecido, desconcentrado. Esquece-se do que está buscando e se mete o tempo todo em estórias paralelas. Até parece que o herói não quer chegar ao fim.

Uma hora resolve virar pintor pra ganhar uma bolsa de estudos e ir pra Europa. Mário está glosando e gozando dos expedientes brasileiros, os imediatismos, o fato de o Brasil não enfrentar as dificuldades de frente e preferir uma facilitação que o encaminhe direto pros “finalmentes”.

O herói repete sua frase síntese: “Ai que preguiça!”.

Quando ele resolve finalmente “recuperar o dano”, embora alertado pelo irmão feiticeiro, se depara com Piaimã e é cortado em picadinhos e colocado pra fritar. Seu irmão chega a tempo de juntar os pedacinhos do herói, e soprando uma mágica, o faz renascer.

Renascer fortalecido
Este movimento, mais uma vez, é próprio das narrativas populares. O herói passa pelo que os gregos chamam de esparaguimós ou estraçalhamento, o momento que perde sua identidade pra poder renascer fortalecido.

Na segunda vez ele é mais esperto e se traveste. Vira uma “traveca” gloriosa, francesa e tenta seduzir o gigante. Claro que o gigante antes de negociar a pedra quer “brincar” com Macunaíma, que quase não se safa.

Há várias outras tentativas até a reparação do dano se efetuar e o herói recuperar a pedra. Finalmente o círculo se completa e ele volta pra sua terra de origem. Ao chegar lá se sente deslocado, não se reconhece. Ele se transformara, havia se urbanizado.

“Acabou-se a história e morreu a vitória.” “Tem mais não.” Ou melhor, tem mais umas coisinhas.

A narrativa de Macunaíma se caracteriza por utilizar as modalidades de ficção já definidas desde Aristóteles e que leva em conta a relação dos personagens com a narrativa.

As modalidades são:

1) Mito: em que os personagens são superiores em condição e em natureza, ou seja, não estão submetidos às leis naturais;

2) Estória romanesca: por excelência, narrativas populares, em que os personagens são seres humanos, mas dispõem de meios mágicos, espadas mágicas, poções, talismãs que lhes dão poderes sobrenaturais. Embora eles, propriamente não sejam sobrenaturais e divinos;

3) O imitativo elevado: é a estória que focaliza o personagem com atributos superiores, capacidade de liderança, carisma, dignidade, etc.;

4) O imitativo baixo: é aquele tipo de narrativa onde todo mundo é igual a todos. Ninguém se caracteriza por uma excepcionalidade; e

5) A ironia: em que os personagens são vistos como inferiores, passando por situações absurdas, fracassados, abaixo do que se supõe ser o normal de um ser humano.

Todas estas estruturas estão presentes na rapsódia de Mário. O mito, na origem da lua; da planta guaraná; Macunaíma virando estrela. Seu ambiente é a estória romanesca. Ele é capaz de sair de Minas Gerais e ir para São Paulo. Ele também tem acesso a poderes mágicos.

Ele é chamado de herói, tem carisma. É o herói de nossa gente. No título, Mário já o coloca no plano imitativo elevado. Cai, depois, para o imitativo baixo quando o herói começa a apanhar, e em passagens de linguagem coloquial.

A ironia está presente em muitos momentos, por exemplo, quando o herói está numa ilhotazinha e um urubu defeca sobre ele. O herói criado por Mário está sempre ironicamente deslocado na narrativa. Sempre entre o elevado e o baixo. Talvez seja o único herói da literatura que vai tão alto e tão baixo ao mesmo tempo. Bem brasileiro, não?

Acho que já falei demais. Me deu uma preguiça. Vou agora dar uma voltinha lá pela Ursa Maior, pois o papagaio já abriu asa rumo a Lisboa.

Você, incauto leitor, não acredite neste papo todo não. Tire suas próprias conclusões escutando o rapsodo Mário com seus próprios olhos.

Edson Cruz

E poeta e editor do site Musa Rara.

Rascunho