Literatura, discurso popular e modernidade

Ideias para discutir a divisão e as diferenças entre literatura popular e a representada pela cultura escrita, pelo pensamento técnico
Ilustração: Thiago Thomé Marques
02/08/2022

Sempre achei inconsistente a divisão de pessoas em faixas etárias, principalmente se pensarmos em literatura. Por trás dessa divisão, está a crença na existência de grupos homogêneos de pessoas. Ignora-se as características individuais e únicas de cada um de nós, as culturas familiares, as experiências pessoais, as vocações, os interesses particulares, as crenças, as origens etc.

Como trabalho principalmente com livros considerados para crianças e jovens, já cansei de ver leitores com um livro na mão falando: “Pô! Esse livro é pra gente de 11 anos. Eu tenho 12!”.

Estou entre aqueles que acreditam que os chamados livros para “crianças e jovens” nada mais são, em grandes linhas, do que trabalhos que recorrem ao que podemos chamar de um “discurso popular”. Vou tentar me explicar melhor.

Na infância, tive a sorte de ter uma aproximação com a literatura muito interessante. Nasci em 1949. Na década de 50, a gravadora Festa lançou discos de poesia brasileira, alguns poemas declamados por atores e outros pelos próprios poetas. Um grupo de quatro atores, os Jograis de São Paulo, produziu discos antológicos. Tínhamos alguns desses discos em casa e meus pais adoravam ouvir. Na época, eu devia ter meus oito ou nove anos e ficava por ali escutando também. Meu primeiro encontro com a poesia de poetas extraordinários como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Mário de Andrade e Vinicius de Moraes, entre outros, deu-se através desses discos. Escutar José, O caso do vestido e A morte do leiteiro na voz do próprio Drummond; Estrela da manhã e Vou me embora pra Pasárgada com Manuel Bandeira; o belíssimo e surpreendente Jandira, de Murilo Mendes; Dia da criação de Vinicius de Moraes ou trechos de Carnaval carioca de Mário de Andrade declamados pelos maravilhosos Jograis de São Paulo foi uma experiência fundamental na minha vida. Creio que percebi ali a força que um texto pode ter. Quero ser claro. Com algo em torno de 9 anos não tinha competência para ler esses poemas. Mas escutar é outra história. Hoje pensando sobre o assunto, percebo que esses poemas tinham dois pontos em comum:

1. utilizavam vocabulário público e acessível;
2. eram narrativos, ou seja, descreviam uma cena ou contavam um caso de forma acumulativa, com começo, meio e fim.

Mesmo pessoas que não tiveram a sorte de ouvir esses discos na infância, certamente escutaram letras de músicas por meio de rádios e discos, o que dá mais ou menos na mesma.

Vou citar duas canções que tocavam no rádio no meu tempo de criança. A primeira é Aos pés da Santa Cruz, de Zé da Zilda e Marino Pinto:

Aos pés da Santa Cruz
Você se ajoelhou
E em nome de Jesus
Um grande amor
Você jurou
Jurou mas não cumpriu
Fingiu e me enganou
Pra mim você mentiu
Pra Deus você pecou
O coração tem razões
Que a própria razão desconhece
Faz promessas e juras
Depois esquece
Seguindo esse princípio
Você também prometeu
Chegou até a jurar um grande amor
Mas depois se esqueceu

A outra é Me deixa em paz, do grande sambista Monsueto:

Se você não me queria
Não devia me procurar
Não devia me iludir
Nem deixar eu me apaixonar 

Evitar a dor
É impossível
Evitar esse amor
É muito mais
Você arruinou a minha vida
Me deixa em paz!

Qualquer criança entenderia, entende e pode ser emocionar ou se identificar diante de letras como essas. Assim como vai se interessar ou se identificar por, por exemplo, Vietnã, poema de Wislawa Szymborska (Poemas, Companhia das Letras, 2011):

Mulher, como você se chama? — Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? — Não sei.
Por que cavou esse buraco no chão? — Não sei.
Desde quando está aí escondida? — Não sei.
Por que mordeu minha mão? — Não sei.
Não sabe que a gente não vai te fazer nenhum mal? — Não sei.
De que lado você está? — Não sei.
É guerra, você tem que escolher. — Não sei.
Tua aldeia ainda existe? — Não sei.
Esses são teus filhos? — São.

De cada um
A literatura é como a vida: acontece na nossa frente, independentemente de nós (e de nossas “faixas etárias”) e, ao mesmo tempo, acontece dentro de nós. Diante dela, tentamos tirar nossas conclusões e cada um faz o que pode a partir de suas características individuais, cultura familiar, experiências pessoais, vocações, crenças, origens etc.

De forma bem esquemática, creio que é possível dividir a literatura em dois grandes grupos: um que pode ser descrito como “popular” e outro representado pelo conhecimento universitário, pela cultura escrita, pelo pensamento técnico, por teorias abstratas, pelas vanguardas e coisas assim.

Mas antes, vou abrir parêntese. É preciso reconhecer que, de certa forma, vivemos nos séculos 18, 19, 20 e 21 tudo ao mesmo tempo.

Andamos mergulhados nas demandas contemporâneas, na pós-modernidade; na glorificação das subjetividades e das singularidades; no relativismo cultural e nos desconstrutivismos. Assim como, no feminismo e na mudança do papel social das mulheres; na luta contra o preconceito e o racismo; na defesa do meio ambiente e das culturas indígenas; nas demandas LGBT e transgêneros; na chamada quarta revolução industrial com sua inteligência artificial, redes sociais, engenharia genética, robôs e plataformas, entre outras questões importantes e que, no fundo, buscam, mesmo que aos trancos e barrancos, construir uma sociedade mais humana e civilizada.

Acontece que no mesmo ambiente e ao mesmo tempo, convivemos com analfabetos e semianalfabetos (cerca de 70% da população); gente morando em favelas com esgoto a céu aberto; crianças e jovens fora da escola; gente com menos de 10 anos que já trabalha; gente de 30 anos que já é avô; cercado pelo racismo e pelo desprezo por negros, indígenas e pobres; de gente condenada ao trabalho braçal; pela ausência de uma mínima igualdade de oportunidades entre os cidadãos; pela falta de políticas públicas para a Educação, para Cultura etc.; e ainda por políticos corruptos soltos graças ao inacreditável “foro privilegiado”; e até por criminosos presos em celas especiais por ter “nível superior”.

Há uns dez anos participei de um evento em Ilhéus (BA). Mal cheguei e ainda estava no aeroporto, apareceu um menino de uns 9 anos e me pediu que o levasse para casa. Entendi que ele queria uma carona. Não. Queria ir para minha casa. Disse a ele que morava em São Paulo. “Eu posso trabalhar”, respondeu. Falei: cara e sua família? E seu pai? Foi o pai dele que mandou ir ao aeroporto ver se arranjava alguém que cuidasse dele.

Como desenvolver um trabalho, escrever para crianças, jovens ou adultos, tanto faz, diante de uma sociedade tão injusta, imoral, desumana, desequilibrada e descivilizada como a nossa?

Como o espaço é curto, vou tentar trazer algumas características do que imagino ser um discurso popular.

No ambiente moderno, individualista e tecnológico, nossa bolha cultural e nosso espírito dominante, se pensarmos no texto escrito, surgem alguns recursos típicos, como a experimentação e a fragmentação do discurso, que passa, muitas vezes, a ser constituído de frases e palavras desarticuladas, apresentadas de forma caótica, “fluxos de consciência”, discursos “caleidoscópicos”, manipulações sintáticas etc.

Tendências, portanto, que pressupõem a necessária e compulsória “interpretação”.

O filósofo Jürgen Habermas aponta para um aspecto interessante: o fenômeno moderno da “autocertificação”. Em outras palavras, é o desprezo crescente em nossos dias pelas instâncias consagradas de legitimação e reconhecimento, típicas de ambientes onde alguma hierarquia ainda está presente.

Neste caso, você pergunta pro cara: quem disse que isso é literatura? E escuta como resposta: “Eu digo, ué! Qual é o problema?”.

Aqui e ali, surgem até escritores que declaram: “Não escrevo pra ninguém. Escrevo pra mim mesmo”. Por que lutam para publicar seus livros é um mistério profundo.

Cito outros recursos apreciados pela cultura dominante:

1. a metalinguagem (o discurso reflexivo que fala de si mesmo);
2. .a exposição na obra dos “andaimes” da própria obra e seu processo construtivo;
3. temas como a “incomunicabilidade entre as pessoas” ou o “sentir-se diferente de todos” (as vozes do valorizado outsider), entre outros.

E, claro, o descompromisso com o compartilhamento e a identificação e, mesmo, com a compreensão, por parte da maioria dos leitores.

Podemos, em todo caso, chamar esse discurso de discurso-eu.

Ocorre que fora da caixa cultural dominante, floresce outro discurso: aquele que prefiro chamar de popular. Segundo certa crença, quando falamos em “popular”, logo pensamos em pobres, analfabetos e favelados. Não é meu ponto aqui.

Por “popular”, estou apenas me referindo a um discurso altamente diversificado que busque a comunicação imediata entre as pessoas.

Tal discurso é encontrado em tudo quanto é lado: nas letras de samba, no rap, no rock e em parte relevante da música popular, assim como em textos e poemas, particularmente na chamada literatura infantil e juvenil. Na verdade, praticamente todos os escritores, poetas e cronistas volta e meia recorrem a ele.

Para o discurso popular, toda afirmação da emoção do escritor ou artista, como disse R. G. Collingwood — agora me refiro principalmente ao artista do povo com o qual podemos aprender muito —, tem como marca não o “eu sinto”, mas, sim, o “nós sentimos”.

Neste caso, o artista, embora tenha suas questões pessoais e sua subjetividade, opta por colocar os interesses da coletividade em pé de igualdade ou até em maior grau de importância com relação a seus interesses pessoais. Parece não haver sentido para o artista popular colocar-se fora de seu contexto de vida e das angústias de seu grupo.

Podemos chamar esse discurso de discurso-nós. Quero ressaltar as implicações e a importância da ideia “nós”.

Primeiro, trata-se de uma linguagem poderosa, pois consegue gerar identificação e emocionar ricos e pobres, universitários e analfabetos, velhos, moços e crianças, Deus, todo mundo e mais uns três.

Em segundo lugar, creio que o dia que um branco olhar um preto e pensar: “nós”; ou um heterossexual olhar um gay e pensar “nós”; ou o rico olhar o pobre e pensar “nós”, o cristão olhar o muçulmano e pensar “nós”, o cidadão local olhar o imigrante e pensar “nós” ou o adulto olhar a criança e pensar “nós”, e vice-versa em todos os casos, nosso mundo, tenho certeza, será mais rico, diversificado, civilizado e mais humano.

Passo a elencar algumas tendências do tal discurso-nós, o discurso popular, um discurso acessível à maioria das pessoas do nosso país, independentemente de classes sociais, graus de instrução e faixas etárias.

1. A utilização de linguagem e do vocabulário público, direto, acessível, familiar e compartilhável.
2. As imagens visualizáveis relatando cenas e atos concretos e cotidianos, capazes de emocionar e gerar identificação, ou seja, nada de conceitos abstratos, subjetivos, impessoais e descontextualizados.
3. O discurso “transitivo”, sugerido por Muniz Sodré, aquele que brota do assunto tratado, e não o “intransitivo”, que olha de fora, analisa e julga de longe o assunto que trata.
4. A concisão, nem sempre valorizada num ambiente que prefere o discurso marcado pela subjetividade e pela experimentação que, ao contrário, por vezes aprecia ser prolixo e propositalmente hermético.

Todos conhecemos os contos populares, mas nem sempre lembramos da complexidade e da riqueza de motivos e imagens presentes em seus enredos incrivelmente enxutos. Na verdade, eles costumam ser uma metáfora, uma versão simbólica e intuitiva da existência, das coisas que mais tememos e daquilo que mais buscamos. García Márquez certamente partiu desses contos pra criar sua extraordinária literatura.

As quadras populares também são exemplos dessa concisão popular.

Jurei, juraste, juramos
Juramos, jurei, juraste
Quebrei, quebraste, quebramos
Quebramos, quebrei, quebraste

Os contos e quadras são uma prova de que um discurso popular pode tratar de assuntos complexos.

A tendência à narratividade: enredos transitivos, coordenados, lineares e acumulativos, com começo, meio e fim, entre outros recursos.

No caso do escritor da cultura dominante — o do discurso-eu marcado pelo individualismo, pela técnica e pela cultura escrita — a tendência é escrever como quem escreve para alguém que vai ler e que, portanto, durante a leitura, pode consultar dicionários, pode reler e refletir sobre o que leu para finalmente criar sua interpretação.

No caso do discurso-nós, o escritor — marcado pela cultura oral — tende a escrever como quem fala diante de alguém que escuta num contato face a face, o que exige sempre a sobreposição do que se diz e do que se quer dizer tendo em vista a compreensão imediata.

Adotamos estratégias mentais diferentes quando falamos de viva voz numa situação face a face e quando escrevemos um texto para ser lido posteriormente. Trata-se de uma escolha.

Sei que o discurso da arte sempre foi ligado ao desvio da norma e a uma certa exceção. Mas tento ressaltar um modelo cultural que valoriza demasiadamente a exceção e despreza qualquer tipo de regra ou convenção. Numa sociedade individualista e consumista, com fortes marcas escravocratas como a nossa, isso, creio eu, pode resultar em arroubos narcisistas autocomplacentes e simulacros seja das literaturas, seja das artes em geral.

Certamente, criar uma obra de ficção e poesia que tenha valor — independentemente de gêneros, movimentos, estilos, modas e escolas literárias, ou da pretensão de atingir este ou aquele público — sempre foi e sempre será algo muito difícil de fazer.

Num país que faz conviver numa boa os séculos 19, 19, 20 e 21, o elogio do discurso elitista e singular, acessível apenas a poucos iniciados, parece ter tudo a ver com a sociedade desigual nele instalada.

Vou concluir. Imagine um mundo atomizado com milhões de pessoas vivendo cada uma no seu universo particular. Imagine um mundo onde a Linguagem, talvez o mais importante invento coletivo que conhecemos, morreu, pois cada um tem sua própria linguagem. Num ambiente assim, Arte e Literatura pra quê?

Ricardo Azevedo

É escritor e desenhista com vários livros publicados, entre eles, Feito bala perdida e outros poemas (Ática, 2007); O motoqueiro que virou bicho (Moderna, 2012); Caderno veloz de anotações poemas e desenhos (Melhoramentos, 2015) e Trago na boca a memória do meu fim (Ática, 2019).

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