Japonesas em chamas

Três poetas que revolucionaram a história cultural do Japão com seus versos cheios de erotismo e de desejo
Ilustração: Tereza Yamashita
24/08/2015

Se você é daqueles que ainda acreditam que as japonesas são submissas, que vivem escondidas atrás dos seus elegantes quimonos de seda esperando para seguir as ordens de seus homens, que são sempre bem comportadas e tímidas, caia na real. Você se enganou. As japonesas são as mulheres mais independentes, fogosas, e sublimemente desafiadoras que qualquer um de nós jamais conheceu.

Veja os exemplos de Ono no Komachi, de Izumi Shikibu e de Yosano Akiko. As três poetas revolucionaram a história cultural do Japão com seus versos cheios de erotismo e de desejo, e também com seus comportamentos imorais e despudorados. Ono no Komachi viveu no início do período Heian, que vai 794 a 1185 da nossa era Cristã. Considerada uma das mulheres mais belas de seu tempo, ela contribuiu para que o período viesse a ser considerado como o do florescimento da literatura feminina no mundo. A partir do declínio da influência chinesa no Japão, decorrente das reviravoltas causadas na corte Tang pela Rebelião de An Lushan, no final de 755, as mulheres passaram a dominar as letras japonesas, utilizando-se do idioma vernacular, que passou a difundir-se em oposição ao chinês clássico. O uso da língua local permitiu-lhes melhor expressar sua profunda sentimentalidade e sexualidade.

De Komachi sobreviveram cerca de 100 poemas coletados no Kokin Wakashū, ou Coletânea de poemas antigos e modernos, publicado por ordem do Imperador Daigo em 905. A bela poeta, que como todas as japonesas possuía irresistível e arrebatadora sensualidade, tendia a mesclar sonho, realidade e desejo em seus versos, devendo portanto ser considerada uma precursora do surrealismo, ainda que André Breton certamente a teria expulsado do movimento por ser mulher:

思ひつつ
寝ればや人の
見えつらむ
夢と知りせば
さめざらましを

Omoi tsutsu
nure baya hito no
mietsu ran
yume to shirise ba
samezara mashi o

Repleta de desejo
Adormeci
E ali estava ele
Houvera sabido ser sonho
Jamais teria acordado

De acordo com crenças populares da época, uma mulher que dormisse com a lingerie pelo avesso apareceria nos sonhos do seu amado. Fustigada pelo látego da paixão, Komachi escreve:

いとせめて
恋しき時は
むばたまの
夜の衣を
かへしてぞ着る

Ito semete
koishiki toki wa
mubatama no
yoru no koromo o
kaeshite zo kiru

Quando já não posso suportar
A intensidade do desejo
Em meio à escuridão
Retomo a seda noturna
E a visto ao contrário

Komachi não se envergonhava de falar do fogo que lhe percorria o corpo. Neste outro poema ela abre o jogo, sem se importar com a censura que certamente sofreria na corte Heian, núcleo de poder dominado por homens extremamente machistas e vingativos:

人に逢はむ
月のなきに夜は
思ひおきて
胸はしり火に
心やけをり

Hito ni awan
Tsuki no naki yo wa
Omoiokite
Mune hashiribi ni
Kokoro yake ori

Sem ter podido encontrá-lo
Nesta noite sem lua
Fico acordada e o desejo
Queimando em meus seios
Meu coração em chamas

Aqui a palavra “tsuki” funciona como o que se chama uma kakekotoba, um termo de duplo sentido que amplia os significados possíveis do poema. Enquanto substantivo, “tsuki” pode significar “lua”, mas também pode ser lido como derivação do verbo “tsuku”, que quer dizer “pressionar” ou… “enfiar”. Sem “tsuki”, Komachi ficava com o corpo todo em chamas.

Pois é, imagine então a Ono no Komachi, uma das mulheres mais lindas de toda a corte japonesa, com seus longos cabelos negros e sedosos como a noite, com sua pele branca de porcelana oriental, com seus seios duros transcendendo em imponência o altaneiro Monte Fuji, contorcendo-se de úmido desejo por você e querendo te ver em sonhos. Obviamente isso levaria à loucura não apenas os nobres japoneses, mas sem dúvida todo e qualquer homem de quaisquer latitudes.

Note que considerando a data da obra, início do século 9, o descaro de Komachi é talvez comparável apenas ao de Safo, que no entanto viveu em climas bastante mais quentes, e que provavelmente costumava nadar nua no mar Egeu (talvez daí venha o termo “safada”). Assim a transgressão da japonesa, guardadas as devidas proporções, representa algo bastante mais escandaloso. E por isso ela sofreu as consequências. Ou você estava achando que os homens iam permitir que ela simplesmente mergulhasse em seus anseios libidinosos sem sofrer nenhuma forma de repressão? Afinal, é para isso que somos homens.

No final do século 14, Zeami Motokiyo, mestre da dramaturgia clássica japonesa, escreveu três obras de teatro Nō retratando Komachi. A mais famosa delas é Sekidera Komachi, onde a poeta aparece já em idade avançada, sofrendo de solidão e pagando pelo pecado de ter seduzido e rejeitado muitos homens. Ou seja, além de tudo, Komachi era daquelas malandrinhas que gostam de nos provocar e depois nos deixar na mão. E isso que ela não era nem francesa. Seja como for, obviamente a história não poderia deixá-la sem alguma forma de retratação.

Izumi Shikibu era outra japonesa ardente do período Heian. Nascida por volta de um século e meio depois de Komachi, mais detalhes de sua vida ficaram registrados, e um número muito maior de poemas subsiste. De criança, seu nome era Omotomaru. Aos 20 anos, casou-se com Tachibana no Michisada, governador da província de Izumi, de onde recebeu o nome Izumi Shikibu (Shikibu era a denominação de mestre de cerimônia que acompanhava o nome de seu pai). O casamento com Michisada levou-a da corte de Quioto para uma vida na província. Shikibu, no entanto, tinha uma personalidade de Emma Bovary: aborrecida com a vida no interior, mostrava-se disposta a qualquer tipo de jogo baixo para sair do buraco em que havia se metido. Passou a ter um caso com o príncipe Tametaka, um dos filhos do Imperador Reizei. O escândalo resultou em divórcio, e na rejeição da literata pela família desonrada. Shikibu conseguiu que Fujiwara no Michinaga, um velho e poderoso político que exercia virtual controle sobre o império por meio de sua filha, a Imperatriz Shōshi, a empregasse como dama de companhia na corte. Shikibu conseguiu assim estabelecer-se novamente na capital. Agora perto de Tametaka, ela passou a dar vazão a todo aquele calor poético que tinha dentro de si. Com os seguintes versos, inaugurou a imagem violenta da japonesa que fica com os cabelos desarrumados depois de momentos incontidos de paixão arrebatadora:

黒髪の
みだれもしらず
うちふせば
まづかきやりし
人ぞ恋しき

Kurokami no
midare mo shirazu
uchifuseba
mazu kakiyarishi
hito zo koishiki

Tendo deitado só
Esquecendo a desordem
De meus longos cabelos negros
Meu desejo é por aquele
Que os deixou em tal estado

A partir desses versos, as palavras kurogami (黒髪) e midare (みだれ), cabelos negros e desordem, respectivamente, passaram a ter fortes conotações sexuais na cultura japonesa, simbolizando o fogo feminino e a capacidade das japonesas de chegar à loucura e ao desespero por amor e desejo.

A jovem e bela cortesã divorciada passou a arrebatar corações na corte com seus poemas auto-eróticos. Note que a concorrência com a qual ela se deparava era acirrada. Juntamente com Izumi-sama, serviam em Quioto nada mais nada menos do que Murasaki Shikibu, a grande escritora venerada hodiernamente como inauguradora do gênero romance (ainda que a ideia seja questionável), e Sei Shōnagon, a literata que escrevia sobre a vida na corte e cuja afiada pena poderia facilmente destruir a carreira de uma competidora.

Mas Shikibu tinha sorte. Sua beleza fazia com que os homens a venerassem. E como muitos deles eram do tipo que não se importam com o passado de uma mulher, sabe quem resolveu investir em Shikibu após a morte de Tametaka em 1002? O próprio irmão do falecido, o Príncipe Atsumichi. Realmente não é de se surpreender que as mulheres acabem se tornando feministas.

Shikibu começou a pegar pesado diante de tanta liberdade. Empolgada com Atsumichi, assim como com seus vários outros amantes, olha só o que ela escreveu, para escândalo da corte:

世の中に
恋といふ色は
なけれども
ふかく身にしむ
ものにぞありける

Yo no naka ni
koi to iu iro wa
nakere domo
fukaku mi ni shimu
mono ni zo arikeru

Neste mundo
O amor não tem cor
Mas ainda assim
Você deixou manchas
Em meu corpo

Com tanta animação, Atsumichi, que para pegar a viúva do irmão já não devia estar bem de saúde, acabou morrendo. Shikibu seguiu em frente. Escreveu mais de 200 poemas sobre Atsumichi, misturando luto e erotismo:

涙川
おなじ身よりは
ながるれど
恋をば消たぬ
ものにぞありける

Namidagawa
onaji mi yori wa
nagarure do
koi o ba ketanu
mono ni zo ari keru

Mesmo o rio de lágrimas
Que corre por este corpo
É incapaz de apagar
A chama do amor
Que queima

A falta de recato da literata começou a custar-lhe o apreço do poderoso Michinaga. Na ocasião de uma cerimônia na corte, o energético Mido Kampaku, ao vê-la na companhia de um novo amante, pegou o leque de Shikibu e nele escreveu: “Leque de uma mulher mundana”. Em japonês a palavra escrita foi ukareme (浮かれ女), o que equivalia a chamar Shikibu de piranha.

Descontente com a denominação, a literata resolveu desafiar o caudilho, respondendo com um poema no qual reclamava a maravilha do amor como válida justificativa para todo e qualquer deslize. As coisas, no entanto, começaram a desandar para o lado da nossa poeta. Diante de tanta rebeldia, as portas do ostracismo começaram a se abrir. Assim como Komachi, Shikubu acabou também solitária e deprimida, seu tom passional foi finalmente controlado, algo como se ela houvesse levado um banho de água fria:

ぬきすてむ
かたなきものは
からころも
たちとたちぬる
なにこそありけれ

Nukisuten
kata naki mono wa
karagoromo
tachi to tachi nuru
na ni koso ari keri

Quero me desvencilhar
Deste quimono chinês
Mas não importa o quanto
Eu continue cortando
Ele continua sujando meu nome

No período Heian o “quimono chinês” (karagoromo 唐衣) simbolizava a má reputação de uma mulher. O poema começa com uma kakikotoba, “nukisutemu”, que no japonês moderno aparece com dois significados diferentes de acordo com o kanji utilizado, 脱 ou 拭, despir ou remover, apagar algo como uma mancha ou uma vergonha. Mas por mais que Shikibu quisesse desvencilhar-se daquele quimono, parece que ela havia ido longe demais, e que já não havia volta:

ものをのみ
おもひのいへを
いててふる
いちみのあめに
ぬれやしなまし

Mono o nomi
omoi no ie o
idete furu
ichimi no ame ni
nure ya shina mashi

Esta casa em chamas
Repleta de desejos incessantes
Devia eu deixá-la
Para receber em minha pele
A chuva da verdade?

Pouco a pouco Shikibu vai assumindo um tom budista, reconhecendo que havia passado dos limites, e que era hora de livrar-se de tanto fogo. A imagem da casa em chamas alude ao Lótus Sutra, onde o caráter ilusório da realidade é explicado como resultado do apego e do desejo. “Ichimi” (一味) é um termo budista que significa a verdade última de que todas a coisas são uma só.

Graça a Deus, Shikubu, assim como Komachi, não se tornou uma coroa exibida, do tipo que ameaça ficar pelada caso seu time de futebol ganhe o campeonato. Imagine que tipo de poemas elas teriam nos deixado.

A mesma noção de probidade de Komachi e de Shikibu verifica-se também no caso de nossa terceira poeta, a não menos fogosa Yosano Akiko. Nascida em Osaka em 1878, Akiko interessou-se por poesia muito cedo. Aos 22 anos, começou a enviar poemas para a recém-fundada revista Myōjō, que surgiu em Tóquio em 1900. A revista era dirigida pelo poeta Yosano Tekkan e propunha uma renovação na poesia japonesa. Os membros do que passou a chamar-se Myōjō-ha, ou Grupo Myōjō, buscavam estabelecer o romantismo na poesia do país, seguindo os passos de Shimazaki Tōson, que publicara a primeira coleção de versos românticos escritos em japonês em 1897 em um volume chamado Wakanashū. Com a virada do século 20, Tōson preferiu seguir carreira como romancista, tornando-se um dos principais naturalistas japoneses. Os membros do grupo de Tóquio então tomaram para si a bandeira do romantismo poético.

Yosano Hiroshi, ou Tekkan, como era conhecido o editor da revista Myōjō, costumava viajar pelo país oferecendo palestras e cursos sobre a nova poesia. Em Osaka, sua aluna mais dedicada foi Akiko, que logo resolveu atacar o professor, como costumam fazer as mulheres mais inteligentes. Daí o seguinte poema:

やは肌の
あつき血汐に
ふれも見で
さびしからずや
道を説く君

Yawa hada no
atsuki chishio ni
fure mo mi de s
abishikarazuya
michi o toku kimi

Na pele suave
Da quente sensualidade
Que corre em minhas veias
Nunca estou só
Enquanto me ensinas o caminho

Atacar o professor é sempre algo saudável e recomendável, só não quando o professor é casado. Akiko não teve pena. Agiu como uma destruidora de lares, levando o pobre Tekkan ao divórcio. O tempo todo ela tinha consciência de seu crime:

むねの清水
あふれてつひに
濁りけり
君も罪の子
我も罪の子

Mune no kyomizu
Afurete tsui ni
Nigorikeri
Kimi mo tsumi no ko
Ware mo tsumi no ko

O líquido límpido
De meu corpo
Aflora e se corrompe
Você é filho do pecado
Eu sou filha do pecado

Akiko tinha muita autoconfiança. Foi difícil para Tekkan resistir àquela coisinha linda de 20 anos:

その子二十
櫛にながるる
黒髪の
おごりの春の
うつくしきか

Sono ko hatachi
Kushi ni nagaruru
Kugogami no
Ogori no haru no
Utsukushiki ka na

Ela tem vinte anos
Em seus cabelos negros
Desliza a escova
Celebrando a luxúria
Da primavera

Akiko conseguiu o que queria. Os dois se casaram e Tekkan a levou para viver em Tóquio. Nas décadas seguintes, a produção de Akiko viria a ofuscar a do marido. Tekkan viria a tornar-se importante no meio literário japonês sobretudo pelo poder de que desfrutava enquanto líder do Grupo Myōjō. Já a partir da publicação de Midaregami, de Akiko, em 1901, no entanto, seria obrigado a viver na sombra literária da esposa.

Midaregami revolucionou a poesia japonesa, escandalizando a sociedade da época e trazendo uma nova dimensão de erotismo à forma clássica da lírica japonesa, o tanka. A forma é a mesma usada por Ono no Komachi e por Izumi Shikibu: o poema de 31 sílabas que existia como padrão dominante na história da poesia japonesa desde tempos imemoriais. A ideia de que o tanka subdivide-se em versos de 5-7-5-7-7 sílabas é geralmente aceita, ainda que alguns estudiosos, o caso mais notável sendo o de Masaoka Shiki, tenham afirmado que tal subdivisão em verdade não existe, e que o tanka se define somente pelas 31 sílabas. Seja como for, nenhuma das nossas três poetas dispôs-se a subverter a forma tradicional do tanka. A revolução que elas operaram ocorreu no âmbito do conteúdo. Veja como em Midaregami Akiko dá uma passo adiante em termos de possibilidade expressiva ainda dentro da forma clássica:

くろ髪の
千すぢの髪の
みだれ髪
かつおもひみだれ
おもいみだるる

Kurogami no
Sensuji no kami no
Midaregami
Katsu omoimidare
Omoidaruru

Os cabelos negros
De inúmeras faixas
Os cabelos indômitos
De indômitos pensamentos
E desejos

Aqui, repetição e abstração conferem caráter renovado à forma tradicional. O desatino do corpo e dos sentimentos não é mais simplesmente relatado pela poeta, mas expressado na forma do poema, que apesar de manter as 31 sílabas ganha em expressividade pela reiteração de vocábulos e imagens. No poema de Akiko, a irracionalidade do desejo emerge de forma direta pela repetição das palavras kami, midare e omoi, que produzem um ritmo evidentemente sexual, sugerindo êxtase e erotismo.

A poética de Yosano Akiko baseia-se no que a autora chamou de jikkan (実感), um sentimento real que deve emergir no poema em contraposição a qualquer forma de artifício linguístico ou expressão pré-concebida. Akiko media a qualidade de um tanka pelo teor de jikkan que este possuía. Sem jikkan o poema não passava de uma construção verbal essencialmente falsa e desprovida de valor.

Claro que com o alto conteúdo erótico contido no sentimento poético direto e imediato que Akiko buscava exprimir em suas obras ela também não poderia ficar sem receber uma alta dose de repressão imposta por algum homem. Assim como para Komachi esteve Zeami, e para Shikibu esteve Michinaga, para Akiko o próprio Tekkan operou como elemento de controle e de dominação. Akiko teve 12 filhos do homem que escolheu como mestre e senhor de seu lar e de sua vida. Apesar de toda sensualidade que continha dentro de si, foi para Tekkan que reservou todo o seu jikkan. Obviamente, nem por isso Akiko foi menos passional.

Os exemplos de Komachi, Shikibu e Akiko mostram que no Japão quem manda são os homens, mas que ainda assim as japonesas estão longe de ser submissas. Se você pensava que este era o caso, está na hora de rever seus conceitos. Fique certo de que por trás de toda japonesinha bem comportada que você encontra, esconde-se um vulcão pronto para entrar em erupção.

Veja que assim como Komachi, Shikibu e Akiko, as japonesas são todas elegantes, passionais, e maravilhosas. Sem dúvida aquelas doze camadas de robes de seda intensificam qualquer fetiche, mas mesmo sem elas a alvura da pele em contraste com o negro dos cabelos é suficiente para te hipnotizar. E quando elas vêm para o Brasil então, meu amigo, se segure: quando elas aprendem a dançar samba, sinto muito, mas não tem mulata que se garanta. É realmente hora de revermos nossos conceitos.

PS: Este artigo é dedicado a Sabrina Sato, musa dos meus sonhos mais sublimes.

Roberto Pinheiro Machado

É escritor e professor de literatura japonesa na UFRS.

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