Nas cenas iniciais da minissérie documental Neymar: O caos perfeito, vemos o jogador e sua esposa da época levando uma caixa de um patinete para presentear o filho Davi Lucca. Na verdade, tratava-se de uma pegadinha, em que a caixa realmente continha inúmeros livros infantis e juvenis para o garoto, que revelava decepção diante dos risos dos pais. Neymar, hoje mais celebridade que jogador, é ídolo de uma geração de jovens admiradores, creio, mais do sucesso da imagem nas redes sociais do que das conquistas em campo. A reação do seu filho naturalmente foi filmada pelo “craque” e postada para seus seguidores.
Após medida governamental deste ano que proíbe o uso de celulares nas escolas brasileiras, está sendo possível constatar relevante aumento no uso do espaço da biblioteca por parte de estudantes, bem como na retirada de livros para leitura nos tempos livres ou em casa. Em algumas escolas do Rio de Janeiro, conforme recentes notícias, tal aumento ocorre em torno de 40% em relação ao ano anterior. Apesar disso, em ranking recente dos mais vendidos, constam, além das tradicionais autoajudas, um famigerado devocional e diversas encadernações de colorir — protagonizadas por ursinhos Bobbie Goods.
Ler, no sentido que historicamente aprendemos, ou seja, imergir em um material literário que nos promova não apenas entretenimento, mas o contato com enredos e poéticas que nos gerem a reflexão e nos façam exercer a alteridade — além de, inquestionavelmente, nos permitir uma extensão maior do que significa o mundo —; ler neste sentido de leitura parece hoje uma ação praticada por poucos. Talvez por supostamente ser pouco útil.
Seres do desejo
Esse aspecto da utilidade é levantado logo no prólogo de Somos animais poéticos, reunião de textos de algumas conferências recentes da antropóloga francesa Michèle Petit. Nele a autora, afirma que “o utilitário nunca basta”, por sermos, antes de tudo, animais poéticos, pois nossa espécie cria obras de arte há mais de 40 mil anos, antes mesmo de inventar a moeda ou a agricultura. Resgatando a etimologia grega de poiesis (arte de criar) para analisar nossa necessidade de estar no mundo, Petit aponta como o utilitarismo não dá conta de nosso percurso existencial, visto que somos seres do desejo, não meramente da necessidade.
A própria língua não se basta enquanto ferramenta comunicacional, até porque, no discurso da mídia, das redes sociais, do cotidiano, suas nuances de beleza são pasteurizadas e transformadas em repetições, lugares-comuns, enfim, a língua se torna pobre. Mais que pobre, pouca. Daí nossa necessidade desde sempre por criar uma língua vasta, complexa, que exprima nossos pensamentos e sensações, mais do que nossas necessidades de comunicação diária, familiar, profissional. “Uma língua”, diz Petit, “que permite conceder um pouco mais de atenção ao mundo e aos seus hóspedes”. A língua da literatura.
Somos animais poéticos é livro característico do estilo de Michèle Petit ao construir, pela escrita, um mosaico de vozes que mistura citações (e, portanto, visões) de autores relevantes e leitores comuns — estilo que já constava de Ler o mundo, Os jovens e a leitura e no excelente A arte de ler. É de sua perspicácia o olhar certeiro quando observa sobretudo jovens e constata — seja em tempos de crise (como aborda o livro atual), seja em condições outras que os tornem excluídos ou marginalizados — como se sentem desajustados, dissonantes, estrangeiros ao mundo. Por isso, para combater essa sensação estrangeira (literal ou simbólica) de não pertencimento, Petit reforça a relevância dos textos literários como promotores de uma “sensação de habitar, de estar em casa. E o que se sente, às vezes, é uma certa harmonia com o mundo interior, consigo mesmo”.
“Para todos nós, interessar-se pelo mundo, sentir-se parte dele, é muito uma questão de língua” — lemos.
Aqui cabe lembrar certo depoimento do poeta Francisco Alvim sobre Carlos Drummond de Andrade — a quem se referiu como engenheiro de sua sensibilidade, da sua percepção. É uma das coisas que os poetas fazem: nos constroem por dentro. Poeta e também diplomata, Alvim acrescenta que, se um dia, fosse dado a ele a oportunidade de escolher qualquer nacionalidade, em troca de entregar a brasileira, ele diz que não e somente por uma razão. Todas as outras ele poderia dispensar, seja o território, as belezas naturais, o seu próprio sangue. Mas ele “não entregaria um grande poeta. Esse poeta me fez brasileiro. Me fez brasileiro”.
Talvez por consumir pouco dessa cultura artística e, portanto, literária do Brasil, relevante parcela da população não conheça ou se recuse a conhecer um Brasil se não mais profundo, ao menos mais sensível às várias formas de brasilidade tecida em nosso território. Parcela da população essa que consome o que há de mais rasteiro da cultura de massa norte-americana e ostenta seu quê de patriotismo pelo verde-amarelismo da camisa da seleção. Essas pessoas sequer cogitam que, por meio da literatura, muitos de nós possamos nos sentir mais afincados a uma ideia de pátria, formados brasileiros não somente por nascença, mas por uma construção identitária erigida da linguagem.
Harmonia com o mundo
A literatura nos permite sentir uma espécie, conforme diz Petit, de harmonia entre nós e o mundo. Como se a literatura equilibrasse uma existência conflitante que muitos temos ao habitarmos essa morada atual, o corpo como um espaço de crise, um invólucro que contém o caos interior. Em Somos animais poéticos, Michèle Petit sustenta a ideia de como a leitura nos serve de morada emprestada, como forma de escapismo diante de situações literais de deslocamento forçado, construindo uma sustentação em meio a colapso, a perdas, a desmoronamentos exteriores. Contudo, ressalto como, antes mesmo disso, a literatura nos constrói por dentro (retomando Alvim), permitindo que erijamos uma identidade quando o que somos ainda não parece sustentar um edifício inteiro.
No livro, Petit ainda aponta a importância de se valorizar tanto espaços como a biblioteca — a que ela se refere como “lugares de recuo” — como as culturas orais, os saberes transmitidos também de forma não grafada. Convém mencionar como é dos saberes orais que o modo de se relacionar com o tempo e a vida atual tem sido questionado, por exemplo em A vida não é útil e Ideias para adiar o fim do mundo, nos quais Ailton Krenak tensiona a ideia de produtividade e consumo, apontando, assim como faz Petit, que a relação que temos com nossa existência não deve se basear no utilitarismo. A curiosidade humana, o desejo de uma vida, não podem estar à mercê de uma ideia produtivista, como se o ideal de todos nós fosse chegar ao final de nossa jornada, olhar para trás, e ter orgulho do quanto produzimos (geralmente para os outros).
Então, observamos a centralidade com que Petit coloca locais como bibliotecas nos tempos atuais, não somente por abarcarem livros, mas — e ela evoca o sociólogo Christophe Evans — sendo igualmente apreciadas pelas possibilidades de desconexão que permitem, sendo “espaços de desaceleração”, recuos diante da agitação e de novas possibilidades de relação com o mundo. Por isso, parece interessante a pesquisa levantada no início do texto, por pensarmos como as bibliotecas escolares têm essa função hoje de promover formas de os jovens se relacionarem sem mediação do virtual. Ainda que estejam tendo um recuo forçado pela ausência dos celulares, os espaços de convívio que são as bibliotecas, além da óbvia possibilidade de acréscimo cultural, quiçá permitam uma importante desaceleração, em um lugar em que podemos “nos demorar por prazer”, um lugar para se perder, para conservar e cultuar o “inútil essencial”.
Isso porque, e aqui relembro Manoel de Barros, “a maior riqueza do homem/ é a sua incompletude”. Somos abastados de vazios e não nascemos apenas para abrir portas, puxar válvulas, apertar parafusos. Nascemos com desejo. Por isso lemos, por isso escrevemos. Costumam ser bons jeitos de confirmar nossa humanidade.