Deve ficar bem claro que o que está em jogo não é algo tão pastoso e abstrato quanto “o amor”, que somente escritores de segunda classe como Alejandro Zambra, essa fútil fuinha que se julga muito sensível e vitimizada e, por isso mesmo, granjeou o sucesso infernal que granjeou, já que hoje as pessoas só leem aqueles que lhes parecem seus iguais e como todos os que leem nos dias atuais não passam de moloides egoicos, uns crianções que se acreditam injustiçados pelo mundo, sempre prontos para brigar por qualquer ninharia, uns hipersensíveis patetas que se horrorizam com quem come carne, mas que nem por um momento sequer questionam o sistema que lhes permite suas descansadas viagens de uber e a contínua e ninfomaníaca ultraexposição nas redes sociais, sem o que essa gente de papel machê, essa gente com olhos chorosos e cigarrinhos eletrônicos na boca, essa gente insuportável que não sobreviveria em um mundo perfeito no qual não existissem psicanalistas e que diante de qualquer problema, de qualquer incômodo, da mais mínima chateação, não hesita em dizer que está medicada, está diagnosticada, está sob supervisão, está em crescimento, está em transição, está psiquiatrizada ou despsiquiatrizada, tanto faz, o que essa gente mole e acostumada desde à infância a permanecer sentada diante da televisão no apartamento da vovó, o que essa gente intolerável quer sobretudo é se sentir amada e querida e idolatrada por toda essa horrível massa planetária chamada de humanidade que não à toa lembra humus, ou seja, um tipo de terra suja e nojenta, um tipo de cocô ecologicamente correto, e sendo evidentemente impossível realizar um objetivo tão megalomaníaco e delirante essa gente descartável, essa gente-caixa-de-papelão, essa gente-estojo se julga vítima de todas as potências maléficas do universo e procura com avidez escritores que não são escritores, pois os que de fato são escritores fariam essa gente se suicidar no exato minuto em que fosse lido qualquer coisa escrita por tais escritores, já que o escritor de verdade não traz bálsamo nem refrigério e sim muitíssima aflição e tortura no mais alto grau, e é por isso que essa gente que solta gritinhos histéricos e sempre está compungida e indignada não quer saber de escritores de verdade, mas de pseudoescritores iguais ao tal Alejandro Zambra que não passa, quando muito, de um escritor de autoajuda inteligente, tendo ao que parece se inspirado na intragável Natalia Ginzburg, que sempre com sua cara fechada e ranzinza mais não faz do que desfiar com boa prosa, isso há que se admitir, sim, com boa prosa, não faz nada senão listar as suas desgraças para demonstrar ao mesmo tempo quão superior ela é diante dos demais mortais e, em segundo lugar, de que forma esses mortais devem se comportar, pois há poucos textos mais normativos, mais imperativos, mais certos de suas certezas do que os textos de Natalia Ginzburg em que, sem ninguém lhe solicitar, ela derrama sua enorme sabedoria e indica aos seus leitores a única maneira moral, correta e heroica de criar os seus filhos ou preparar seu macarrão, tudo do alto de um pedestal de supremacia ética inatingível e falsamente apresentado de forma modesta, pois o que importa obviamente não é a autoavaliação que as pessoas fazem sobre si mesmas — e nesse departamento a Ginzburg não se cansa de se autoimolar, de se açoitar e de se recriminar, o que gera um enorme gozo em seus leitores, que se comportam exatamente da mesma maneira patológica — e sim o tom com que falam, a posição autoritária que ocupam, as coisas que pretendem esconder e, ao ler os textos de Natalia Ginzburg, não resta nenhuma dúvida de que se está diante de um general da moral universal, de uma triste e magérrima matrona kantiana de cara amarrada perpetuamente ocupada em endireitar toda a raça humana e obrigá-la a se portar da mesmíssima maneira que ela própria, a generala, se comporta, resultando daí livros que só não são ilegíveis porque a velha cabra domina muito bem a língua italiana, de modo que, assim como ocorre no caso do Zambra, tem-se não um escritor ou uma escritora de verdade, mas dois escritores de autoajuda que escrevem bem, pois só um repelente e untuoso escritor de autoajuda completamente néscio pode escrever o que Alejandro Zambra escreveu em A vida privada das árvores: “[…] ama-se para deixar-se de amar e se deixa de amar para começar a amar outros, ou para ficar sozinho, por um tempo ou para sempre. Esse é o dogma. O único dogma”, cabendo lembrar a esse pobre e vendável garoto chileno, sempre tão tristonho e abandonado nas fotos das orelhas de seus livros, tanto que dá vontade de adotá-lo e levá-lo para casa, tão diferente neste ponto de sua ídola Natalia Ginzburg, que em todas as fotos reproduzidas nas orelhas de seus livros faz questão de luzir a sua conhecida carranca, os lábios finos apertados em uma espécie de irrecorrível condenação moral do gênero humano, os olhinhos parados e fixos semelhantes aos dos sociopatas, as abundantes rugas, típicas de quem nunca move os músculos do rosto porque movê-los significaria deixar de se parecer com um inquisidor e assim quebrar o clima de seriedade funerária dessa face a todos os títulos tremenda, feroz e espantosa, pois então, caberia lembrar ao chileno Zambra que na vida a dois não se trata de amor e sim de sobrevivência, tal como se lê nas Prosas apátridas de Julio Ramón Ribeyro, mais especificamente no trecho nº 53 dessas prosas dilacerantes, a qual revela que aquilo que realmente pesa não é a mania patética chamada de amor, mas a sobrevivência, de modo que não, não senhor Zambra, a regra não é amar para deixar de amar e depois amar de novo, ideia estapafúrdia e empiricamente falsa que poderia passar apenas pela cabeça oca de um eterno adolescente, e é isso que são hoje as pessoas que compram e leem livros do Zambra ou da Ginzburg, eternos adolescentes pirracentos e atrofiados, pois a lei não é amar e desamar para amar mais ainda como se todos nós fôssemos lindos, inteligentes, portentosos, interessantes, talentosos, inocentes, vitais e despreocupados hippies em uma orgia sem fim, não, a coisa é muito mais reles, suja e sofrida, e no fim das contas não tem nada a ver com o amor e sim com a sobrevivência e sobreviver implica não estar só, tal como notou o muito mais ajuizado escritor Pierre Mérot em seu delicioso e antropologicamente exato livro Mamíferos, tratando-se neste caso de um escritor de verdade e não de um escritor de autoajuda, sendo até mesmo curioso como Mérot parece responder à sandice dita por esse irritante Zambra quando declara que “a vida nos leva a crer hoje em dia que podemos nos separar das pessoas e amar em profusão. Claro que é mentira. Amar é excepcional. Não amar é a regra. Aceitar essa regra devia proporcionar um início de felicidade”, no que a ponderada opinião de Mérot se aproxima daquela do já lembrado Julio Ramón Ribeyro, uma figura digna de pena se nos limitarmos a seu aspecto físico, que com seu espesso bigode estilo taturana, seu cabelo longo, empastado e sebento jogado para trás, seu corpo prestes a implodir de tão magro, evoca a figura decadente de um chefe local do tráfico paraguaio ou a de um carioca tuberculoso viciado em jogo do bicho, mas que escreve com total honestidade, com total dúvida de si mesmo, com total domínio do que não pode ser dominado, e após lermos qualquer coisa que ele escreveu e voltarmos a observar as suas fotos nos damos conta que se trata de alguém que sofreu na vida, porém sofreu filosoficamente, ao passo que Natalia Ginzburg, que também sofreu, nunca sofreu filosoficamente, sempre sofreu raivosamente, de forma que não lhe resta mais nada a expor e a vender nas orelhas de seus livros salvo essa sua carranca antipática, presunçosa e ditatorial, enquanto a caveira que é o rosto de Julio Ramón Ribeyro nos comunica uma sensação de serenidade e de aceitação do mundo assim como ele é, o que não significa mera resignação, com o que não se faz boa literatura, significa aquiescência em relação ao mundo e a si mesmo, ao pequeno, quebrado e vil si mesmo que não anseia dar lições de moral gratuitas à espécie humana, apenas refletir e se espantar com o caráter sem dúvida surreal da realidade, nela percebendo os quase invisíveis pontos de solda, essas junturas mal-ajambradas que mantêm o todo unido e funcionando mas que não tardarão a se soltar para logo serem substituídas por outras gambiarras mais ridículas, de maneira que o olhar arguto de alguém que, como Julio Ramón Ribeyro, padece filosoficamente no mundo, não pode evitar o riso já não mais nervoso, e sim aberto e conciliado com a loucura, chegando a transformar a aceitação do mundo em afeto ao mundo, o que nenhuma literatura comportada e bom-mocista jamais conseguirá, e não deixa de ser estranho o fato de eu ter tomado sumário conhecimento da existência de Julio Ramón Ribeyro graças a um dos artigos de Alejandro Zambra que, venhamos e convenhamos, são muito melhores do que as suas ficções simplesmente insuportáveis de tão açucaradas, melosas e diabéticas, e não é uma coincidência que tais ficções estejam publicadas e traduzidas neste país por mais de uma editora enquanto os livros de ensaios e artigos literários do mesmo autor, a saber, o tal Zambra, não apenas não estão publicados como também são inencontráveis, revelando com bastante exatidão por que o chamado mercado editorial e o autodenominado público que o sustenta não são mais do que os dois órgãos necessários para a conformação e o contínuo funcionamento de uma gigantesca cloaca, sim, o mercado editorial e seu público correspondem às pregas internas e externas de uma cloaca furiosa e sempre em enlouquecida atividade, expelindo com avidez e velocidade o mais rematado lixo, tudo que é imbecil, monótono e errado, e por outro lado retendo com força — e para tanto há a necessidade desse jogo de tensão entre as duas dimensões das pregas da cloaca — tudo aquilo que importa, impelindo para dentro do organismo doente textos catárticos e salvadores como os de Julio Ramón Ribeyro, eis que a cloaca precisa sem dúvida engolfar as verdades terríveis que há na prosa de gente como Julio Ramón Ribeyro, enviando-a assim para o estômago para que possa ser digerida, consumida e aniquilada enquanto são expelidas apenas as mais refinadas porcarias, a exemplo das obras apalermadas de um fascista notório como Mario Vargas Llosa, que gastou seus últimos anos com preocupações tão dignas e virginais como candidatar-se à presidência do Peru ou criar empresas off-shore para lavagem de dinheiro, enquanto seu assim chamado colega Julio Ramón Ribeyro ocupava-se com atividades muito menos importantes ao olhos do público, dado que enquanto Llosa se dedicava a estar em um partido de direita com o lindo objetivo de se tornar o mandatário ou o cacique do Peru, Julio Ramón Ribeyro se ocupava em morrer, e morreu sem nunca ter tido sequer um milésimo da fama, reconhecimento e dinheiro que Llosa teve, porém pouco importa que as obras e mesmo a vida de Julio Ramón Ribeyro tenham sido exterminadas no estômago do monstro, pois as suas palavras, ainda que deglutidas e misturadas às mais nojentas porcarias, conseguiram se filtrar, rarefeitas e delicadas, pelos poros do corpanzil medonho da besta e agora se espalham pelos ares, cabendo a escritores menores que se deleitam na cloaca, mas que mantêm um mínimo de sensibilidade, escritores como Zambra que se refestelam e se sentem em casa na cloaca, mas que no fim do dia precisam ler algo de verdade e não pura merda, cabe a esses escritores vendáveis que ainda cultivam um restinho de escrúpulo com a leitura dizer em seus livros que existiu um tal de Julio Ramón Ribeyro que escrevia coisas como “[…] a vida conjugal, quando não há filhos nem interesses comuns nem afinidades intelectuais nem, acima de tudo, compatibilidades temperamentais ou sexuais, chega se transformar em uma ficção, em um companheirismo às cegas, tão fantasmal como o itinerário mil vezes seguido através de uma cidade na qual somos orientados somente por nossos reflexos”, e quando se lê este trecho, o trecho nº 53 das Prosas apátridas de Julio Ramón Ribeyro, se sabe de imediato tratar-se de uma avaliação sóbria, simples e inquestionável, bem diferente dos arroubos idiotas de um Zambra que acha que estamos aqui para nos amar desamar e amar mais ainda, não havendo dúvidas de que um delírio assim não encontra qualquer correspondência na realidade factual, talvez exceto na vida desses eternos adolescentes hipersensíveis e constantemente acometidos pelas mais variadas crises emocionais e identitárias que a classe média a que pertencem não só lhes proporciona, mas às quais também lhes convinda, na verdade os intima a delas participar porque fora desse quadro patológico o que se impõe é a vida e nem uma linha mais.
NOTA
Este texto pertence ao projeto inédito Uma linha crítica, que se inspira tanto na forma como no conteúdo na escrita de Thomas Bernhard. Trata-se de, em uma única linha contínua, retomar a dimensão polemológica da crítica que, com raras exceções, em nosso país se tornou um tipo de “ação entre amigos” ou, pior ainda, produto disponível no mercado. Contra essa tendência, retoma-se a vertigem, o exagero e o humor como elementos que permitem “criticar com o martelo”.