Histórias aparentes e cifradas

Em novo romance, Ricardo Piglia retoma seu alter ego para investigar um suposto assassinato
Ilustração: Ricardo Piglia por Fábio Abreu
02/09/2014

O assunto preferido de Ricardo Piglia é a própria literatura, e ele tem uma especial predileção por teorizar sobre seu ofício. Ocorre que esse exercício não costuma ir além, na maioria das vezes, da autoidolatria (isso quando não trai a imodéstia, às vezes indisfarçável, de quem se julga maior do que realmente é). Quem ultrapassa esse estágio, no máximo vai chegar, talvez por uma trilha diferente, àquilo que outros já antes desvendaram. Porque nesse terreno não há grandes segredos nem grandes novidades; há, sim, a insegurança e a solidão de quem lida com algo sempre muito difícil — às vezes, até mesmo impossível — de ser dividido, e a necessidade humana é, ao fim e ao cabo, sempre compartilhar. Piglia situa-se, nessa hipotética escala, num último e mais avançado nível, que acumula um pouco dos outros dois, mas consegue refiná-los e transcendê-los.

Num breve ensaio intitulado Teses sobre o conto, publicado em seu livro O laboratório do escritor, Piglia formula a que talvez seja a última tese realmente inovadora sobre o gênero e que o coloca ao lado de Poe, Hemingway e Cortázar na galeria dos grandes teóricos do conto moderno (e, por extensão, da própria literatura de ficção). Como todas as formulações geniais, a de Piglia é um primor de síntese: o conto conta sempre duas histórias, uma aparente e uma cifrada. Em primeiro plano, está a história visível, e esta esconde uma outra secreta, narrada de modo elíptico e fragmentário, que só vai emergir no final, causando um efeito surpresa. Ele continua:

Cada uma das duas histórias é contada de maneira diferente. Trabalhar com duas histórias significa trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto têm dupla função e são utilizados de maneira diferente em cada uma das duas histórias. Os pontos de cruzamento são a base da construção.

 Piglia, como se vê, refere-se especificamente ao conto, e sua argumentação vai adentrar em questões técnicas que não cabe aqui destacar. Seu novo romance, contudo, foi todo ele arquitetado dentro dessa mesma concepção. Há uma trama correndo na superfície, que inicia sem maiores atrativos e lembrando vagamente alguma coisa já lida alhures. Essa história, a que se poderia chamar de “aparente”, vai aos poucos ganhando densidade e desdobramentos interessantes — porque afinal trata-se de um romance —, sem contudo chegar ao essencial. A verdadeira história, ou seja, aquela que se quer de fato contar, corre quase toda no subsolo, com alguns de seus detalhes surgindo aqui e acolá para causar a necessária estranheza (parece até que se fala de um conto) e também a tensão da narrativa, mas guardando-se ao máximo para emergir com toda força nos momentos finais.

Bela e sedutora
O caminho de Ida traz de volta Emilio Renzi, o alter ego de Piglia que já havia protagonizado outros romances, como Respiração artificial e Alvo noturno. Escritor menos famoso do que aquele que o criou e professor eventual, Renzi tenta se adaptar à vida de recém-divorciado em Buenos Aires quando recebe o convite da prestigiada universidade Taylor, na Costa Leste dos Estados Unidos, para ministrar um seminário sobre o escritor W. H. Hudson. Dono de uma peculiaríssima biografia, Hudson era filho de pais ingleses, nasceu e viveu na Argentina no século 19, mas escreveu toda sua extensa obra em inglês, usando como cenário o pampa e como personagens os gaúchos argentinos. O tempo da narrativa não é fixado com exatidão. Parece, à primeira vista, que se está no presente. Um recado numa secretária eletrônica, um e-mail escrito numa desajeitada linguagem telegráfica, aos poucos o leitor vai retrocedendo no tempo para enfim descobrir que a história se passa em meados dos anos 1990. Renzi foi convidado por Ida Brown — a Ida do título —, a bela, sedutora e polêmica diretora do departamento, especialista em crítica literária, com quem ele acaba se envolvendo. Ida exige que a relação seja mantida no mais absoluto sigilo e consegue desempenhar com perfeição os papéis de colega de trabalho e amante, sem se comprometer em nenhum dos dois.

Sob a vida normal e burocrática da universidade, há um movimento estranho. Incidentes inexplicáveis começam a acontecer, culminando com a trágica morte de Ida num suposto acidente. A mão queimada da vítima indica que talvez sua morte possa estar de alguma forma conectada a uma série de atentados que vêm sendo perpetrados contra figuras proeminentes do mundo acadêmico norte-americano. Descobre-se, logo em seguida, que o autor dos atentados é Thomas Munk, um brilhante matemático que acabou se afastando da carreira e do próprio mundo contemporâneo para viver solitário e isolado numa cabana em meio ao nada. Munk é francamente inspirado num personagem real, Theodore Kaczynski, o Unabomber, também matemático, também brilhante e amalucado que, vivendo como eremita numa cabana sem luz, água encanada ou telefone em Montana, enviou dezesseis bombas a alvos específicos, entre os anos 1978 e 1995, que incluíam renomados cientistas, universidades e companhias aéreas. Com seus ataques imprevisíveis, o Unabomber chegou a matar três pessoas e ferir outras vinte e três antes que a polícia conseguisse detê-lo.

Mas a investigação policial não encontra nenhuma evidência que possibilite debitar a morte de Ida Brown na pesada conta de Munk. Renzi então decide ele próprio investigar o caso. Sob o olhar de desconfiança do FBI, ele se lança a uma busca detetivesca e psicológica para descobrir o que de fato aconteceu com Ida e viaja à Califórnia para entrevistar o criminoso na prisão. Essa é a parte mais envolvente do romance, quando a trama parece finalmente estar tomando um rumo bem definido para explodir num final grandioso. Só parece, porque Piglia adora causar surpresa, mas não tem o mesmo empenho para entregar o caso pronto e resolvido. Noutras palavras, ele não gosta de facilitar a vida do leitor, preferindo chamá-lo a participar da solução.

Além do escrito
Passados os capítulos iniciais, quando a história ainda está sendo montada, o leitor começa a ter a sensação de que lê bem mais do que aquilo que está escrito, embora não consiga perceber o que seja. Parece haver sempre uma história debaixo de outra história, e sob essa, uma terceira, criando-se um universo em camadas, simulacro perfeito do que é a própria vida. A política e a violência nos Estados Unidos, tramas conspiratórias de pequenas e grandes dimensões, o american way of life visto por diferentes ângulos, tudo exposto com sutileza e pela ótica de um estrangeiro, transportam o leitor para um momento muito peculiar do passado recente sem contudo bombardeá-lo com informações enciclopédicas. Já para quem gosta de literatura, o prato é cheio: as referências incluem Conrad, que tem uma participação essencial na trama, Joyce e Melville, dentre outros, além de trabalhos acadêmicos e acalorados debates sobre temas cuja relevância um público leigo dificilmente compreenderia.

Piglia usa a vasta erudição como matéria ficcional, ao contrário de muitos autores que preferem escamoteá-la. O gosto pelas tramas policiais, algo que tem em comum com outros eruditos famosos, como o conterrâneo Jorge Luis Borges, permite que se faça comparações e se coloque Piglia num meio-termo entre o best-seller Dan Brown, e suas aventuras sem pé nem cabeça, e o cultuado hermetismo de Umberto Eco. Uma observação muito particular deste resenhista: já que foi citado Borges, Piglia é um escritor que não nega a nacionalidade, no sentido de que tem com seu ofício uma relação tipicamente argentina: literatura, para ele, é algo a ser levado muito a sério. Falta-lhe, às vezes, um pouco de emoção, algo sempre tão abundante na literatura brasileira… O humor é tão sutil que parece inexistir.

Ao contrário do que possa sugerir tudo o que foi comentado até agora, O caminho de Ida não é resultado de um grande trabalho de engenharia literária. Sua estrutura, aliás, é linear e ortodoxa. O discurso de Piglia, sóbrio e elegante como poucos, é também muito direto. Ele não tergiversa, não se vale de nenhum artifício para enganar o leitor, não faz rodeios nem floreios. Sabe o que quer contar e aonde quer chegar: conta e chega. Ponto. Esse efeito de múltiplas histórias, aparentes e subterrâneas, em parte se deve ao narrador em primeira pessoa e ao tempo passado da narrativa. Renzi narra a história resgatando sua memória dos fatos e na sua exata cronologia, conforme ele os viveu ou percebeu, inclusive no tocante a suas estranhezas. Aqui pode-se pensar em três níveis de narrativa: o primeiro corresponde a essa que está na superfície; o segundo, à história que o narrador vai desvendando por trás; o terceiro, por fim, à história que o leitor vai imaginar a partir do que conta o narrador, mas que ele próprio não vê.

Ricardo Piglia tinha para trabalhar uma boa história desenhada nos mínimos detalhes, um narrador e um tempo perfeitos para a sensação que queria causar no leitor e sua maestria como ficcionista. Dificilmente erraria, e não errou.

O caminho de Ida

Ricardo Piglia
Trad.: Sérgio Molina
Companhia das Letras
245 págs.
Ricardo Piglia
Nasceu em Adrogué, província de Buenos Aires, em 1940. Crítico literário e ficcionista, considerado um dos maiores nomes da literatura universal da atualidade, formou-se em História e tornou-se professor nessa área para só depois chegar à literatura. Autor de contos, romances, ensaios e roteiros de cinema, publicou O último leitor, Dinheiro queimado (que virou filme), Alvo noturno, A cidade ausente, Respiração artificial, dentre outros.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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