Hipóteses de fuga em linhas flutuantes

Os sonhos perpassam praticamente todos os poemas de "Vida: efeito-V", de Carlito Azevedo
Carlito Azevedo, autor de “Vida: efeito-V”
01/07/2025

Depois de oito anos da publicação de O livro das postagens, Carlito Azevedo lança Vida: efeito-V. O lapso temporal é importante para pensar esse novo livro do poeta porque nele cabem a pandemia, as oficinas de poesia online com uma outra diversidade de pessoas — de fora do circuito acadêmico e de uma classe média já conhecida — e, ainda, o trabalho com poesia nas comunidades de Manguinhos, Complexo do Alemão e Rocinha, no Rio de Janeiro. Em entrevista ao podcast 451 MHz, Carlito fala sobre como essas experiências provocaram uma mudança total de perspectiva em relação à escrita e às possibilidades de reinvenção de si mesmo. Outro fator desencadeante de imagens e temas recorrentes no livro, que sem dúvida merece destaque, é o aprofundamento na psicanálise.

Desses temas, uma das vozes que subjaz em praticamente todos os poemas vem dos sonhos. O poeta nos conduz do sonho manifesto à imensidão da “água-mãe”, onde estão contidos os pensamentos oníricos latentes, como se estivéssemos sempre no intervalo entre o sono e a vigília, entre sombras e luzes difusas, entre o familiar e o estranho, em constante deslocamento. Segundo Freud, o deslocamento é o principal recurso da deformação onírica, a que os pensamentos oníricos têm de submeter-se por injunção da censura. Os poemas de Vida: efeito-V trazem esses desvios de rota em imagens nebulosas, que surpreendem, provocam estranhamento e ensejam desvios.

Em tempo, e já que falamos em desvios, é fundamental, para que o recorte dessa resenha dê voz às referências evocadas pelo próprio autor, explicar o título. O V-Effekt, ou efeito V (abreviação do termo alemão Verfremdungseffekt), é um conceito desenvolvido pelo dramaturgo e encenador alemão Bertolt Brecht, frequentemente traduzido como “efeito de estranhamento” ou “efeito de distanciamento”. A ideia central gira em torno de provocar um deslocamento, deformação, desvio, ou até mesmo uma “desilusão” na percepção do espectador, rompendo com a ilusão e identificação provocados pelo drama no teatral tradicional.

Para Brecht, o artista deve parecer “estranho e, mesmo, surpreendente para a plateia”, olhando com estranheza para si e para seu trabalho, de modo que “tudo o que produz tem o toque de espanto”. E é dessa maneira, desviando da ilusão, que a recepção deixa o plano do inconsciente e passa à consciência, com a constatação do sofrimento e das opressões impostas pelas estruturas do poder no mundo real. Ao mesmo tempo, a arte se revela como um vasto território do possível, porque o(a) espectador(a), ou leitor(a), questiona a realidade e pensa nas possibilidades de modificá-la.

Um desvio
Junto com Brecht — em alguns pontos talvez até em relação antagônica — está o francês Georges Perec, principalmente com referência ao livro A vida modo de usar, que traz um alerta logo no início: uma obra literária pode ser apenas um grande quebra-cabeça. Um dos membros do Oulipo, Perec usava a literatura como jogo, matemática, filosofia, lógica, enigmas, elucubração de ideias. Por caminhos inusitados, ele engendra buscas por vivências recalcadas e inacessíveis, no mundo particular de um escritor obsessivo, que guarda um passado marcado pelo trauma da infância, com a morte dos pais de maneira trágica. Essas digressões com Brecht e Perec desviam do nosso assunto principal. Mas é um desvio que propõe o distanciamento para olhar melhor, o estranhamento necessário para a experiência de leitura. Experiência que, por sinal, só será apreendida com a leitura do livro, nunca com uma resenha sobre ele.

Voltando então ao livro, em sua primeira parte, intitulada Baleia branca (Pandemia e psicanálise em 18 cenas), deparamo-nos com os sonhos e a casa da infância, com a calçada da rua Senador Vergueiro e com partes sublinhadas nas páginas dos livros de William James e Eurípedes numa biblioteca délfica, repercutidas pelo poeta rodeado de nuvens auditivas. Encontramos, ao acaso, com o poeta grego Yannis Ritsos, mas também com Ana C. e Jim Morrison, nas reminiscências sensuais e tristes da pluralidade radical dos anos 70. Os poemas conduzem a leitura com uma luz amena, que, no entanto, revela contrastes de sombras e nuvens. A luz, de inverno ou outono, pode surgir de repente numa baleia branca pairando no ar, no dia em que Sérgio Sant’Anna se foi. Porque a morte, assim como o sonho, está presente e imanente nos poemas, como a humanidade paralisada frente à pandemia, diante do “Vale do Nada”, para além do qual não se pode ir. Os instantes são transpostos em poesia nas mais ínfimas coisas, quando se olha pro chão, de onde saem vozes maltrapilhas, num quadrado de calçada como qualquer outro.

As sombras das nuvens num outono flexível persistem num efeito de céu que se expande sobre os poemas, um céu “que sussurra um sutra inesperado, desolado e deserto”. Vale a percepção desses opostos que se atraem no jogo de prazer-desprazer que o poeta elabora:

Uma palavra bruxuleante, a irreprimível amargura do azul, e uma sensação científica de ruína.

A palavra bruxuleante vem da poesia, com as linhas flutuantes do verso que convidam à dança, ainda que triste e arruinada. Porque, sim, há o amor, nem tudo é desolação. Em meio aos fantasmas de tristeza e moscas no chá, o poeta supõe a possibilidade do afeto:

Felicidade além de todas as dimensões é aquele espaço onde
você e eu não somos diferentes um do outro, somos iguais.

O poema Pai nos leva de volta a Monodrama, livro de 2009, que termina com o planeta girando com as ausências da mãe, do pai, de Pasolini. É um poema seco, de uma pobre e patética colheita pela eternidade. Mesmo assim, caminhando pelo cemitério, ainda que caminhe “sobre as minas ásperas das almas”, o poeta encontra no chão as setas que indicam uma saída. Em outros momentos, outros poemas, apesar do silêncio inamovível da morte, algo surge do reino do inexplicável.

Estou apenas sonhando comigo mesmo
(e nos meus sonhos a morte não vai a lugar algum,
como prova, pousada em seu ombro, essa borboleta de cinco
mil anos).

Cinco irmãos
Ainda estou na página 44 do livro e falta falar de muito mais dos já limitados recortes a que me propus fazer sobre Vida: efeito-V. Na parte dedicada aos cinco irmãos do poeta, Kinderszenen (cenas da infância e também uma composição de Schumann), persistem a vigília e o sonho, a morte e a vida. Um irmão não nascido é convocado às cenas da infância porque o poeta dividiu com ele o quarto e um sonho de subir em árvores do quintal. Prevalecem aqui o trabalho do sonho, as sombras na casa da infância, a expectativa da adolescência compartilhada num seriado de ficção científica dos anos 1960.

Teria que falar ainda do poema A um vizinho, neurodivergente, de quem o poeta ouve, às três da manhã (e de novo, as vozes) um uivo-meteoro.

Seus berros
Tresvariados
Contra
os pobres
tento pensar que
são berros
contra a pobreza,
tento não
ter raiva,
e quando fica
difícil
imagino
uma montanha
coberta de sombra
que estremece
ao som de um
vento contrário
chamando.
E sem prova alguma
olho para as estrelas
e rezo por você.

Há também pontos de sutura em poemas que redesenham hipóteses de fuga, eventualidades que se apresentam em tentativas de se descolar do espelho da linguagem com inesperadas associações. Paira a tentativa do deslocamento, em busca de um ponto de vista que propicie escapar do arranjo fantasma-circundante da memória. Ou mesmo, a tentativa de olhar para essa memória com estranhamento e afeto. E de novo, Brecht.

Com a esperança de um cineasta
que finalmente encontra
o plano inicial
de seu projeto mais arriscado
você não se cansa
de me pedir
para trabalhar
meus sentimentos,
ressentimentos,
muito obrigado
por não desistir
assim fácil de mim,
que sempre confundi
a vida
com o efeito-V.

Entre as cenas extramuros e as forças em ação na História, de repente irrompe um poema-enigma, quase surrealista, como um fragmento de sonho, recriado a partir do esboço mental do vento, da paisagem ou do adeus dito por alguém agora ausente. O poema A jornada mistura sons de Ondas de Maternot, ruídos giratórios, uma abelha pregada em uma árvore, rochas tremeluzentes, uma pintura de nuvens de fogo e um enorme lagarto-pensador. Inalamos palavras que fazem toda paralisia ser sugada para dentro de um demônio bruxuleante, ou para dentro da poesia, ponto de fuga, de observação e de estranhamento.

Um pouco antes do fim, e In memoriam de Tamara Kamenszain, O céu do Rabi apresenta-nos as linhas flutuantes do afeto. Seria necessário mais espaço para adentrar esse tema, que traz a poeta argentina para o universo onírico e fala da tradução de O livro dos divãs, de Kamenszain, que Carlito Azevedo fez com Paloma Vidal. O poema é uma conversa com Tamara sobre cenas retiradas de um filme de Antonioni, passagens enviadas por e-mail e lembranças quase desaparecidas de um sonho recém-desperto. Penso aqui em Perec, escrevendo sobre Método, no livro Pensar/classificar, que seu pensamento só seria possível se fosse constantemente dispersado, retornando sempre à fragmentação que ele pretendia colocar em ordem. E o que aflorava desse pensamento, como poderíamos pensar da sua escrita (como da poesia de Carlito) “pertencia inteiramente ao domínio do impreciso, do incerto, do fugaz, do inacabado”. E, por fim, convinha conservar o caráter hesitante e perplexo de fragmentos disformes, renunciando à suposição de poder organizá-los.

Em (Coda), o poeta se despede e conclama ao reinício, como um chamamento à rede de sonhos e afetos oníricos da sua escrita. Um fechamento que abre. Porque percorrendo as linhas do afeto, ainda que flutuantes, aceitamos o jogo dos desvios e deslocamentos, percebemos algo a ser partilhado nesse quebra-cabeça iniciado pelo autor. E cada palavra, cada imagem, cada cena são uma peça que examinamos de perto, tentamos combinações, repetimos como crianças os jogos dos adultos, voltamos a tentar. Toda hesitação é parte da sensação nebulosa e inapreensível do prazer — desprazer. Ao entendermos a linguagem poética como transitiva, usando aqui as palavras de Silviano Santiago, aceitamos a Vida em seu efeito de estranhamento, evitando a “morte” ou o “esclerosamento” da linguagem que se produz ao procurar achar uma interpretação fechada, certa, verdadeira e final do que está escrito.

Vida: efeito-V
Carlito Azevedo
7Letras
130 págs.
Carlito Azevedo
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1961. Poeta e tradutor, já em sua estreia na literatura, foi premiado com o Jabuti, por Collapsus Linguae (1991). Dois anos depois, publicou As banhistas, seguido de Sob a noite física (1996) e Versos de circunstância (2001). Em 2001, reuniu seus poemas na antologia Sublunar. Após anos sem publicar, lançou o elogiado Monodrama (2009) e O livro das postagens (2016). Foi editor da revista Inimigo Rumor e atualmente dá aulas em uma oficina de poesia on-line organizada pela 7Letras.
Luciana Tiscoski

É jornalista e escritora. Mestre e doutora em Literatura pela UFSC. Com o coletivo de poetas mulheres Abrasabarca (Florianópolis) participa dos livros Abrasabarca (Medusa, 2018) e Revoluta (Caiaponte, 2019). É autora da coletânea de contos Área de broca (Nave, 2021)

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