Esqueletos no armário

Ao escrever sobre o sagrado matrimônio, Sándor Márai não usou luva de pelica e chutou o pau de muita barraca enquanto atirava pedra em tetos de vidro
Sándor Márai, autor de As afinidades eletivas
27/06/2020

Conúbio, desposório, conjúgio, juntar os trapos, dividir os lençóis, enforcar-se, consórcio ou simplesmente casamento. Os nomes e apelidos são muitos, mas o resumo da missa é o mesmo.

Tudo começa com o amor. Palavra que pretende abarcar ao mesmo tempo céu e terra, mas que por vezes não chega a lugar algum. Ou ainda pior, transforma a vida dos desavisados num verdadeiro inferno. “Amor vincit omnia: o amor tudo vence, dizia Virgílio. Ele conhecia o céu e o inferno (especialmente o inferno), mas não sabia nada do amor”, escreveu Cabrera Infante. E afinal de contas, quem sabe? Uns juram de pé junto que amar de verdade é se doar incondicionalmente e abrir mão de qualquer individualidade em nome de um nós. Outros, defendem que amar é ser livre de deixar livre, no melhor estilo viva e deixe viver. No fim, pouco importa quem está com a razão.

Quando digo fim, me refiro ao temível e chorado término, com suas infinitas dores, lamúrias e queixumes. Infinitas pelo menos até a próxima paixão, os próximos sonhos e planos de casa com varanda e cercas brancas em quintal largo com o novo ou nova pretendente.

De acordo com a lógica social ainda vigente, com o amor geralmente vem o casório. Intrincado mecanismo de moer vontades, desejos, sonhos e esperanças. Não importa cor, credo ou classe social. No casamento, a aposta é alta e as garantias são poucas. Negócio que só dá jogo para quem nasceu sem vocação para curioso, já que o matrimônio é se compromissar com um Deus que não responde a perguntas. Ou você vai com fé, ou melhor ficar onde está. E mesmo a maior das devoções não garante sucesso na empreitada.

Sándor Márai sabia disso. Disso e de muito mais. Conhecia os pequenos mecanismos do mundo burguês em decadência, as minúsculas engrenagens que ainda fazem o mundo andar de um jeito e não de outro. Era bom observador dos costumes e conhecedor do baixio da psique humana. Ao escrever sobre a maridança, Márai não usou luva de pelica e chutou o pau de muita barraca enquanto atirava pedra num mundaréu de teto de vidro.

Em 1937, o escritor húngaro de nome difícil publicou a novela Divórcio em Buda. Na trama, Kristóv Kömives deixa seu cargo como juiz em assuntos criminais para atuar como juiz de divórcios e se vê às voltas com um problema dos grandes. Religioso e de grande recato, acabou por assumir a tarefa de separar aquilo que Deus uniu. Na veneta do juiz Kömives, o casamento não é perfeito ou imperfeito, mas sim “uma convenção moral que dava forma divina para a convivência de duas pessoas de sexo diferente, para a família”. Para ele, e para muitos doidivanas de porta de igreja, o casamento é “uma graça especial, intenção divina; o homem devia aceitá-lo como tudo que vinha de Deus sem tocá-lo com suas mãos profanas”.

Já em De verdade, Márai arrisca ir mais fundo no terreno pantanoso da vida a dois. Escrito ao longo de mais de 30 anos (a segunda parte foi publicada na década de 1970), o livro mostra quatro pontos de vista de uma mesma história, cheia de nuances, desencontros e segredos, muitos segredos. Assim como Kömives, Marika, a primeira narradora do romance, acredita que casamento é eterno. É uma instituição sagrada e o divórcio é um sacrilégio. Uma vez casado, sempre casado:

Não acredito que depois da separação as duas metades do casal possam continuar sendo boas amigas. Casamento é casamento, e separação é separação […] Tornei-me inimiga dele no instante da separação, e assim será enquanto eu viver.]

Nas relações entre os personagens, as camadas superficiais dos laços vão sendo lentamente retiradas. Amizades traiçoeiras, silêncios oportunos, convenções e sacrifício. Uma cruel sinceridade perpassa toda a narrativa — sinceridade que não dá as caras no convívio cotidiano. Frente a seus ouvintes, Marika, Péter, Judit e o jovem sem nome são corajosos, falastrões, detalhistas e cheios de picardia. No entanto, na hora do vamos ver, da lida diária com os parceiros que a vida lhes deu, beiram a covardia. Como consequência, carinho e afeto vão sendo lentamente sufocados pelo abraço do orgulho e do medo: “A maioria das pessoas não sabe dar e receber amor, por covardia e vaidade, receia o fracasso”.

A ideia de que dentro da pessoa que amamos existe aquilo que Fernando Pessoa chamou de “eu profundo” pode incomodar. É que ela arrasa com a presunção de que conhecemos absolutamente tudo a respeito de quem aceitamos dividir uma vida. Afinal, é próprio dos casais apaixonados o gosto por alardear aos quatro ventos que conhecem seus companheiros de cabo a rabo. Enganam-se mutuamente, mesmo sem querer. Não é incomum que, de quando em vez, desafiem outros casais para saber quem conhece melhor a companhia que têm. Estes geralmente não sabem perder.

Felizes para sempre?
Para o recém-casado, felicidade é a palavra de ordem. Nela se apoiam os noivos quando questionados da razão do compromisso. É um júbilo só, o encontro da felicidade em forma de gente. Mas quase nada resiste aos caprichos do tempo e da convivência. Nem mesmo aquilo que preguiçosamente denominamos felicidade.

“Não vivemos para sermos felizes”, dispara uma das vozes amarguradas em De verdade. “Vivemos para sustentar a família, para criar pessoas honestas, sem esperar por gratidão nem felicidade […] Nada traz felicidade.”

Em As afinidades eletivas (1809), Goethe, como quem não quer nada, lançou no ar a ideia de que seria ideal que o casamento tivesse o tempo pré-estabelecido de 5 anos, durante o qual o casal seria impelido a prestar maior atenção aos prazeres, aos disparates da vida a dois na medida em que o tempo avança. “Pelo menos dois, três anos transcorreriam de modo aprazível”, concluiu. A ideia não é de todo mal, mas nenhum figurão da lei se habilitou a matar no peito o passe feito pelo velho e safo escritor alemão, que só se sentiu pronto para juntar os panos de seda com a florista Christiane Vulpius depois de 18 anos de convivência — não sem antes ter pintado e bordado na corte de Weimar.

Talvez Goethe tenha encontrado a mulher de verdade, aquela que, na perspectiva da narrativa marainiana, está “sempre viva em algum lugar”. Durante boa parte do romance de Márai, os personagens se debatem com a possibilidade de uma terrível constatação: a de que, enquanto a pessoa de verdade não chega, partilhamos a vida com o amor da vida de outra pessoa. Quem ou o quê seria então capaz de apontar quem é a mulher e/ou o homem de verdade de cada um? O amor, por si só, seria suficiente para lidar com tão escabrosa questão?

“Não se pode amar com uma intenção. Não se pode amar com angústias, de modo imbecil”, sustenta Marika para a amiga que mais tarde a irá trair. Como é possível então amar? Não estaria esse tipo de amor reservado apenas aos santos? São eles, os santos, que transformam o mundo, diria Otto Maria Carpeaux, que os via como verdadeiro sinal dos tempos: “O santo é um homem que possui a graça de levar o mundo mais a sério do que ele o merece […] Levar o mundo a sério é a lição dos santos”. E de santo, venhamos e convenhamos, o mundo anda bem escasso.

Enquanto quebramos a cabeça para saber se existe de fato o homem ou a mulher de verdade, a vida marcha com a pressa de sempre, indisposta a parar ou diminuir a velocidade. Do alto de seu pessimismo, Márai acena aos desavisados: “Todo amor é egoísmo selvagem” e mais hora menos hora, os esqueletos no armário sempre voltam para assombrar os vivos.

Sándor Márai
Nasceu em Kassa, no antigo Império Austro-Húngaro, em 1900. Perseguido pela ditadura comunista, passou a maior parte de sua vida no exílio. Viveu na Suíça, Itália, Inglaterra e Estados Unidos, onde cometeu suicídio, em 1989, antes de ver suas obras novamente editadas em seu país. Entre romances, peças de teatro, diários e compilações de textos jornalísticos, conta com mais de 60 títulos publicados.
Jocê Rodrigues

É jornalista, escritor e editor.

Rascunho