Entre, por favor

Consagrada como romancista, Margaret Atwood mostra-se uma poeta segura e sublime em A porta
Margaret Atwood, autora de “A porta”
27/08/2015

Ainda me surpreendo com nossa capacidade de descobrir coisas novas. O livro sobre o qual escrevo, por exemplo, me apareceu na encruzilhada de duas buscas literárias — nesse sentido é quase como se o livro tivesse me escolhido, não o contrário, não importa o quão isto soe na original.

A primeira de tais buscas era por um livro de poesia. Porque há algum tempo deixei de acreditar que não gostava de poesia só por não diminuir o passo quando abordado na Flip por poetas vendendo seus peixes — deve haver boas descobertas no ato de parar e escutar, mas nunca me permito. E deixei de ter medo de não entender, um dos tantos medos bobos que perdemos pelo caminho.

A segunda tem a ver com um projeto pessoal que estabeleci para o ano: conhecer mais livros de ficção científica. Como o gênero permanece uma lacuna nas minhas leituras, decidi que em 2015 leria pelo menos um a cada mês. Creio ser esse preenchimento de lacunas — essa vontade de conhecer mais — um dos principais motivos para sempre estar com um livro ao alcance da mão e gostar tanto de ler.

“It chooses you”, diria Miranda July. A encruzilhada se deu quando, na seção de poesia da livraria, encontrei um título de autoria de Margaret Atwood. “Ué”, pensei, “ela não era uma escritora de ficção científica?”. Porque, sim, eu já tinha recebido indicações nesse sentido — O conto da aia é uma lembrança constante — e porque eu já começara a procurar outras escritoras que escrevessem sci-fi, principalmente desde que achei A mão esquerda da escuridão, de Ursula K. Le Guin, bem superior a O homem do castelo alto, de Philip K. Dick.

Dei uma lida na orelha do livro e nela Celina Portocarrero enfatiza o acerto na escolha da tradutora: Adriana Lisboa. As duas autoras — Atwood e Lisboa —, mais conhecidas mais por seus livros de prosa do que por suas incursões no terreno da poesia, se uniram em uma obra que me pareceu de indispensável leitura. Sendo assim — e me lembrando da linguagem poética que há uns cinco anos me conquistou em Rakushisha, de Adriana — levei o livro para casa.

Ou seriam os livros? Dividido em cinco partes, A porta se assemelha a uma antologia poética, como se os melhores versos de cinco livros distintos fossem reunidos no mesmo volume. Cada parte finge ser a respeito de alguma coisa e depois muda de ideia, sua unidade temática se esclarece apenas com as releituras. E se me expresso assim é porque tento condensar a experiência de leitura: não creio que poesia seja matemática, como se houvesse uma equação poética a ser solucionada; como se, não havendo uma “unidade temática”, um princípio organizador, os poemas colecionados no livro não pudessem ser considerados bons.

Na primeira parte, há todo o apreço pelas coisas que definham, das quais só restam memórias: o pai, a mãe, uma casa de bonecas, a visão de uma iridescente mancha de gasolina. Há algo bíblico, mais especificamente de “Eclesiastes”, quando ela decide que:

Este é o ano de classificar,
de jogar fora, de devolver,
de peneirar os amontoados, as pilhas,
os detritos, as dunas, os sedimentos,

ou, dito com menos poesia, as prateleiras, os baús
os armários, caixas, cantos
no sótão, nos esconderijos e guarda-louças —
o lixo, em outras palavras,
que foi soprado lá para dentro, ou atirado
no meu caminho por ondas despercebidas.

Na segunda parte, a poeta canadense explora o êxtase provocado pela literatura. Partindo de alguém que “vende o coração. Era isso ou a alma.”, há referência à experiência mística que move tanto leitores quanto o próprio vendedor. O que há de idealizado nesta seção ganha cores mais realistas no poema Uma mulher pobre aprende a escrever, uma referência fácil a tantas mulheres invisíveis na literatura, que escreveram na lama que a História teima em apagar.

O que diz a lama?
Seu nome. Não podemos lê-lo.
Mas podemos adivinhar. Olhe para o seu rosto:

Flor Alegre? Radiante? Sol sobre a Água?

A terceira parte talvez seja a de tom mais pessimista — e a que mais me lembrou das sinopses dos romances de ficção científica da escritora. Se na primeira parte o definhar é visto de modo pessoal, aqui há um lamento pelo definhar do planeta, pelas marcas indeléveis da busca pelo progresso e das guerras. Entre os momentos mais marcantes, há uma nota sobre a versão de quem perde um combate — “Perder, contudo. É diferente/ A derrota cresce como um vegetal mutante, /inchando com o não dito./ Acompanha-o sempre, espalhando-se sob a terra,/ alimentando-se do que já não há mais:/ seu filho, sua irmã, a casa de seu pai, a vida que você deveria ter tido.” — e os poemas Santa Joana D’Arc num cartão-postal e Lamento de urso, que contrapõem a plasticidade das imagens que imaginamos à dureza da realidade.

Na quarta parte há menos deslumbramento e êxtase ao narrar o fazer poético. Atwood fala das dúvidas de antes, durante e após a escrita. Em Atividades possíveis ela imagina um jeito mais tranquilo de escrever: “Você poderia sentar-se em sua cadeira e catar o idioma/ como se fosse uma tigela de ervilhas./ Muita gente faz isso./ Poderia ser educativo./ Sequer precisa da cadeira,/ poderia fazer malabarismo com pratos de ar.” Mas faz parte de seu ofício o incômodo: seja o próprio, de Interrogar os mortos, seja o dos leitores. Em A linha: cinco variações, estes dialogam com a parte anterior:

que conversa fiada
você nos fez engolir! Que história ruim!

Veja se não mexe em nada
da próxima vez! Não toque nesse papel!
Não precisamos de lorotas extravagantes sobre
os excessos da guerra por aqui. Não
precisamos de mais “E então”.

Mas você nunca escutava.
Acha que é algum tipo de poeta
Agora veja o que fez,
você e seu maldito verso —
se emporcalhando com a criação.

Tinha que mexer nessa história.
Não podia deixá-la em paz.

Por fim, a autora dedica a última parte do livro a um longo adeus: “Há empurrões e tumulto,/ coletes salva-vidas de menos”. Funciona como um epílogo, como notas de fim de texto, como uma conversa franca, sobre a vida e o que dela você tira, da autora com o leitor que perseverou até o fim. Há um retorno aos toques que chamei de bíblicos, em especial no poema que dá título ao livro.

No mesmo ano em que A porta foi originalmente lançado (2007) se deu a publicação de Nesta cidade e abaixo de teus olhos, de Annita Costa Malufe. O eu lírico da obra diz:

preciso desesperadamente falar, te falar
hoje não acordei tendo fé no universo, não acordei e fui para a esquina te esperar com o envelope repleto de folhas mal escritas, eu precisava apenas falar, apenas dizer da minha angústia,[…]

Ainda que tenha apreciado a leitura de Malufe, gosto de saber que se tem publicado uma poesia que não trata apenas do indizível, mas vai lá e diz. E não só “diz”, como fala ao leitor com uma limpidez de Angélica Freitas, abrindo uma porta a quem pensa não gostar de poesia. Esse é um dos principais méritos do livro de Atwood.

A porta

Margaret Atwood
Trad.: Adriana Lisboa
Rocco
128 págs.
Margaret Atwood
É canadense e graduou-se em Artes na Universidade de Toronto. Recebeu o Man Booker Prize por O assassino cego e o Príncipe de Astúrias pelo conjunto de sua obra. Seus livros — entre eles O ano do dilúvio, A Odisséia de Penélope e O conto da aia — já foram traduzidos para mais de trinta idiomas.
Arthur Tertuliano

É escritor e mestrando em estudos literários pela UFPR. Escreve no blog O Leitor Comum.

Rascunho