Entre o perigo e o conforto

As idéias vanguardistas do século 20 brasileiro ainda estão muito presentes na primeira geração do século 21; no entanto, certa calmaria embala a produção dos autores contemporâneos
Ilustração: Tereza Yamashita
01/08/2009

No caso do Brasil, a história da literatura sempre se ligou à idéia de construir o novo em oposição ao velho, e conseqüentemente à construção de novas autoridades. Sobretudo a partir do fim do século 19, com o realismo de Machado de Assis e Aluísio Azevedo, e do início do século 20, com a ruptura vanguardista de Oswald de Andrade e Mário de Andrade, inserir-se na modernidade, nomear a diversidade geográfica e humana segundo projetos sociais, filosóficos, estéticos e científicos up-to-date, tem sido a principal meta dos nossos criadores.

Essa fascinação pelo novo resultou freqüentemente em formas originais, como o modernismo brasileiro inaugurado na Semana de Arte Moderna de 1922 e o movimento de Poesia Concreta iniciado nos anos 50. Essa retórica da inovação, do rompimento, da transgressão, da descoberta das raízes nacionais, ou seja, a idéia e as posturas de vanguarda que marcaram todo o nosso século 20 estão muito presentes na primeira geração do século 21. Às vezes assumidamente, às vezes subterraneamente, pois alguns autores, tragados pelo redemoinho da contemporaneidade ou da vaidade, costumam esconder ou ignorar suas fontes.

Tempos perigosos e desafiadores
Sempre que olho para trás, para os anos 70 ou, recuando mais ainda, para meados do século 20, e comparo nosso cenário literário atual com os cenários mais afastados, isso me deixa inquieto, preocupado, perplexo. Comparar esses momentos literários muito próximos (os anos 70 e agora, ou os anos 50 e agora) provoca em mim a sensação de que, mais ou menos na altura da virada do milênio, nós saímos de uma paisagem acidentada e perigosa — sempre provocadora — para entrar numa planície segura e confortável demais.

A paisagem acidentada e perigosa da literatura de décadas atrás, no Brasil, era desafiadora e surpreendente. Em meados do século 20 havia grupos literários excêntricos, atrevidos, belicosos, que se chocavam nas praças e nos jornais. As últimas utopias sociais e artísticas ainda excitavam os produtores (escritores, músicos, artistas plásticos), a crítica especializada e os consumidores. Havia Clarice Lispector e Guimarães Rosa na prosa, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade na lírica, quatro autores vigorosos completamente diferentes, que renovaram nossa literatura. Havia também o misticismo da Geração de 45 e o formalismo da Poesia Concreta.

Nos anos 70 o poeta João Cabral de Melo Neto, consenso entre a vanguarda e retaguarda, estava no auge de sua carreira, produzindo coletâneas maravilhosas, influenciando multidões de novatos. Nessa época o conto conquistou o grande público, motivando as editoras a lançar centenas de novos contistas. Em plena ditadura militar, Rubem Fonseca, Roberto Drummond e Sérgio Sant’Anna firmaram-se nas livrarias, com livros consistentes e transgressores. Os três vieram se juntar aos veteranos Murilo Rubião, José J. Veiga, Lygia Fagundes Telles e Dalton Trevisan.

Não dá para olhar para trás sem ser ofuscado pela efervescência criativa. No cinema o furacão Glauber Rocha desconstruía a realidade terceiro-mundista, enquanto no teatro o demolidor Nelson Rodrigues jogava luz na sexualidade mal-resolvida da classe média. No humor político Henfil e Millôr Fernandes, e todo o pessoal do jornal O Pasquim, driblavam com rara perspicácia a censura imposta pela ditadura. Na pintura o abstracionismo geométrico de Volpi, suas bandeirinhas e seus mastros de festa junina, encantavam tanto o especialista quanto o observador ingênuo. Na música popular brasileira a Tropicália veio propor um diálogo inteligente com a bossa nova e o melhor pop norte-americano. O pobre e o nobre, o requinte e a esculhambação, a baixa e a alta cultura apareciam abraçadas no Teatro Municipal, na Bienal e na televisão.

Então vieram os anos 90. A última década do século passado ameaçou começar bem, muito bem, mas ficou somente na vontade, na querência, na ameaça. Para a surpresa de todos, essa década começou mal, muito mal. Os militares não estavam mais no comando, mas em seu lugar o presidente mais atrapalhado que o Brasil já teve fazia e desfazia: Fernando Collor de Melo, o primeiro presidente eleito por voto direto após o regime militar. Também o primeiro a sofrer um processo de impeachment por tráfico de influência e corrupção.

Os anos 90 foram péssimos para a literatura brasileira. Logo no início da década a equipe econômica de Collor, com poucos dias no poder, bloqueou a poupança das pessoas físicas e jurídicas, e os brasileiros ficaram sem dinheiro. O objetivo dessa ação suicida era conter a espiral inflacionária. Não deu certo. A produção cultural nacional sofreu horrores. As editoras diminuíram o número anual de títulos publicados. Os teatros esvaziaram. Mas nenhum setor sofreu tanto quanto o cinema. Valendo-se de diversas medidas provisórias, Collor autorizou que leis de incentivos e órgãos culturais fossem extintos, dentre eles a Embrafilme, o Concine e a Fundação do Cinema Brasileiro. Com isso, por dois anos o Brasil teve a sua produção cinematográfica praticamente estagnada.

Tempos cautelosos e confortáveis
É sempre bom lembrar que dos romancistas em atividade hoje no Brasil, três dos mais conhecidos e prestigiados nacional e internacionalmente surgiram nos anos 90: Milton Hatoum (a matéria-prima de suas narrativas é a memória familiar, cheia de tensões e áreas escuras, e os conflitos vividos por clãs de origem libanesa), Bernardo Carvalho (criador de identidades instáveis e quebra-cabeças torturantes) e Chico Buarque (em seus livros predominam as crises sociais, sempre vistas por um filtro de estranhamento). Não são meus romancistas prediletos, mas é preciso reconhecer que os três são autores talentosos e disciplinados. Hatoum, Carvalho e Buarque, certamente pela competência cautelosa e elegante que sempre demonstraram, têm tido o reconhecimento da crítica especializada e já receberam os principais prêmios literários do país.

Se comparada aos anos 90, a primeira década do século 21 tem sido ótima para a literatura brasileira. Com a inflação sobre controle e o crescimento econômico ampliando o poder aquisitivo da população, a oferta de bens culturais aumentou visivelmente. Mais pessoas estão escrevendo, lendo, publicando, vendendo livros, circulando pelas feiras, bienais e festas literárias. A queda no custo industrial do livro possibilitou a qualquer cidadão abrir uma editora, e o número de editoras — principalmente de pequenas empresas alternativas — cresceu assombrosamente nos últimos anos. Até mesmo os escritores mergulharam nessa onda, tornando-se pequenos editores.

A planície segura e confortável demais, de que falei no início deste artigo, é esse momento literário de produção abundante e regular, em que não há mais conflitos poéticos nem ideológicos. Hoje todas as escolas do passado e do presente convivem pacificamente. Pela primeira vez na história da literatura brasileira, os estilos estão sendo tolerantes uns com os outros, não há mais crises nem combates efetivos. Esse estado de coisas, ao permitir que uma grande profusão de escritores encontre seus leitores, nivelou a qualidade. Praticamente não há mais maus escritores, tampouco escritores geniais. As novas Clarices, os novos Drummonds, os novos Rosas e os novos Bandeiras desapareceram das livrarias. E creio que não exagero ao afirmar que essa situação é global, visto que os Hesses, os Lorcas, os Cortázars e os Ginsbergs também pararam de aparecer.

A combinação de vários fatores virtuosos — o aquecimento da economia, o barateamento da produção, as novas políticas públicas eficientes — levou ao aumento da produção e principalmente do consumo de boa literatura no país. O crescimento do número de leitores interessados em literatura de qualidade acompanhou o crescimento da população. O Brasil passou a ser um mercado interessante para as multinacionais do livro, notadamente as espanholas. Prêmios substanciosos, grandes feiras, workshops, oficinas e outros eventos literários se multiplicaram, atraindo a atenção da mídia. O debate literário foi para a tevê, com a disseminação de programas de entrevistas e de revistas eletrônicas especializadas em literatura.

Da Geração 90 à Geração Zero Zero
A prosa de ficção da Geração Zero Zero surgiu e se fortaleceu nesse contexto. Essa prosa busca, sob as novas categorias de pensamento e produção, rever os temas e as formas da literatura canonizada, em especial da brasileira, mas adotando novos padrões de escritura e novas estratégias de circulação. Com a diminuição dos custos editoriais e gráficos, o conflito entre a chamada literatura de consumo (best-sellers internacionais, livros de auto-ajuda e esotéricos, do tipo Paulo Coelho e Zibia Gasparetto) e a alta literatura (contos, poemas e romances com qualidade estética) começa a enfraquecer, pois cada grupo de produtores passa a se concentrar apenas no seu público específico. O lema agora é: “Ao leitor refinado o que é de seu desejo, ao deus Mercado o que é do seu agrado.”

Agora há leitores para todos os tipos de literatura. No campo da alta cultura, multiplica-se o número de pequenas editoras fundadas por escritores e dedicadas a certos segmentos do mercado editorial: Ciência do Acidente, Livros do Mal, Demônio Negro, Kafka Edições, etc. A democratização da escrita, promovida pelo computador e pelo baixo custo editorial, possibilita que qualquer pessoa publique um livro em pequena tiragem de cem, duzentos exemplares. Isso provoca uma explosão de títulos novos (“Da quantidade sempre brota a qualidade”, dizia Marx). Há também os autores que, dando as costas para o tradicional livro de papel, mergulham fundo no ciberespaço e começam a escrever apenas para esse meio de comunicação: a internet. São os escritores do papel virtual e digital.

Essa produção teve grande impacto no país, lançando novos nomes como Clarah Averbuck, Cardoso, Cecília Gianetti, Marcelo Benvenutti, Daniel Galera, Daniel Pellizzari, Ana Paula Maia, Paulo Scott, João Filho e outros, mas ainda é pouco conhecida fora daqui. Em parte pela dificuldade de se estabelecer parâmetros críticos e de qualidade, em parte pela dificuldade com as traduções, já que se trata de obras que utilizam linguagens muito contemporâneas, às vezes regionais, carregadas de gírias e expressões idiomáticas. Trata-se de uma prosa que abre caminho utilizando-se da cultura popular e de massas: os quadrinhos, os seriados de tevê, as telenovelas, o cinema, a música popular, a fotografia, o grafite e o design gráfico.

A prosa produzida pelos jovens escritores, por essa moçada que estreou em livro depois da virada do século, é bastante diversificada. Nunca se publicou tanto e tão bons livros. Ao ler A morte sem nome (2004), de Santiago Nazarian, ou Ainda orangotangos (2003), de Paulo Scott, ou Além da rua (2002), de Rogério Augusto, ou os Contogramas (2004), de Flávio Viegas Amoreira, ou Corpo presente (2003), de João Paulo Cuenca, ou Mãos de cavalo (2006), de Daniel Galera, ou Encarniçado (2004), de João Filho, ou Húmus (2002), de Paulo Bullar, ou Mal pela raiz (2004), de Jorge Cardoso, ou Morte porca (2002), de Wir Caetano, ou Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi (2007), de Cecília Gianetti, ou O cheiro do ralo (2002), de Lourenço Mutarelli, ou Osculum obscenum (2008), de Paulo Sandrini, ou Gran Cabaret Demenzial (2007), de Veronica Stigger, ou Os opostos se distraem (2005), de Rogério Ivano, ou Dedo negro com unha (2005), de Daniel Pellizzari, ou Pressentimento do umbigo (2003), de Leandro Salgueirinho, ou Regurgitofagia (2004), de Michel Melamed, ou Subitamente agora (2004), de Tiago Novaes, a surpresa e o espanto brigam com a mais pura inveja. Os novos autores apresentaram nesta década coletâneas e romances de estréia muito superiores aos dos estreantes da década passada.

A atmosfera comum a toda essa prosa exclusivamente urbana é a do bizarro. Atmosfera que, tendo em vista apenas a estrutura formal, aparece das mais diferentes maneiras: ora em linha reta, ora em ziguezague, ora fragmentada, ora pulverizada e misturada, mas sem jamais perder a sua consistência bizarra. Isso logo de saída resolve o cabo-de-guerra entre lírica e sociedade, conforme discutido por Adorno e tantos outros. A propensão para o nefasto, para o sinistro, para o agourento, afasta desses novos autores o dilema sofrido pela maioria dos artistas desde que a economia de mercado se estabeleceu: produzir para as massas ou para a elite? Vender trezentos mil exemplares ou só trezentos? Todos eles, consciente ou inconscientemente, escrevem para a pequena elite intelectual da qual eu e você, querido leitor, fazemos parte. Porque escrever para o leitor médio, ingênuo e de gosto pouco apurado, está fora de cogitação.

Em todos os livros citados quem dá as cartas é o grotesco, o perverso, o escabroso, o hediondo. Nesse mundo desconcertado não há heróis nem grandes exemplos de conduta, há apenas figuras física e moralmente malformadas, mutiladas, debilitadas, abortadas, aberrantes, doentias, demoníacas. A alucinação, a demência, a malemolência, as obsessões, a falta de caráter e os piores vícios minam o espírito, destroem a harmonia, corrompem a sociedade. Os seres humanos, quer vivam na periferia quer nos bairros nobres, são criaturas pequenas, tolas, criminosas, ignorantes, sempre massacradas pelos instintos mais baixos. Pela ganância, pela luxúria, pela cólera.

A absoluta convicção de que tudo é vão, de que tudo é vazio, de que as pessoas são só marionetes, de que as suas angústias, as suas alegrias e as suas ações são apenas fatias de pesadelos, é a única convicção nesse mar de insegurança e dúvida. Tanatos, senhor dos suicidas, encampou todo o território de Eros, que, acuado, resume-se agora ao sexo violento, frenético, insaciável. Se há beleza e equilíbrio no mundo, isso não é para nós. É para os hamsters, as iguanas, os animais do zoológico. Porque no momento em que nos tornamos seres racionais tudo desandou. Um filtro cinza se interpôs entre nós e a realidade, que se tornou estranha, corrupta, traiçoeira. Ao menos é o que esses jovens autores se esforçam em demonstrar.

Calmaria e relativização crítica
Diferente do que aconteceu no início do século 20, em que a produção de arte e literatura estava nas mãos da elite econômica, a literatura dos anos 90 e 2000 revela principalmente o DNA e as idiossincrasias dos produtores de classe média ou da periferia. Hoje a maior plataforma de lançamento de novos autores são os blogues e as revistas eletrônicas. Muitos jovens autores, cujos livros fazem sucesso entre os críticos e os leitores refinados, começaram publicando primeiro na internet. Essa constatação possibilita outra linha de raciocínio, outra forma de juntar os pontos no céu noturno. Seguindo os links mais instigantes, não é difícil fazer surgir a constelação da Geração Web, da qual fazem parte os poetas e ficcionistas para os quais o fetiche da internet é muito mais sedutor do que o velho fetiche do livro de papel.

Os blogues, e conseqüentemente a literatura feita diretamente na internet, sem passar pelo papel, é hoje o meio mais acessível de inclusão no circuito cultural. Os blogues têm em sua raiz uma concepção ultraliberal, expressa no Manifesto cluetrain (também chamado de Manifesto do trem de evidências), bíblia da primeira geração de blogueiros brasileiros e indiretamente dos blogues de literatura, “diários virtuais” recheados de influências juvenis, como os beats e os marginais, e de referências de fora da velha tradição brasileira: o rock, o grunge, a cultura nerd, o cinema americano. A Geração Zero Zero e a Geração Web bebem dessas fontes contemporâneas, ainda quando não as reconheçam explicitamente. E faz parte da rede de blogues, de sua juventude e jovialidade atrevida, o não reconhecimento de uma série de balizas históricas, consideradas ultrapassadas ou mortas. Novamente em cena, a idéia de construir o novo em oposição ao velho. É nesse desdém pela tradição que está parte de seu vigor bárbaro.

A confirmação da democracia, as melhoras na economia, as mudanças na configuração da população e a apropriação social da internet foram fatores determinantes para que um grupo maior de pessoas passasse a fazer parte da comunidade literária: a planície segura e confortável demais em que estamos atualmente. A explosão criativa arrebatadora, prolífera, prolixa e sem limites denota, por outro lado, certa crise da crítica e da reflexão. Eu não poderia deixar de assinalar, aqui, a queda de prestígio da crítica acadêmica, que pouco a pouco foi abandonando a vida social literária até se enclausurar dentro dos muros das universidades.

Também a crítica jornalista perdeu prestígio nas últimas décadas, fenômeno cujo efeito mais visível foi a extinção de diversas revistas e de inúmeros cadernos literários. Trata-se da crise da própria epistemologia, que já não dá mais conta da avalanche de contradições e subversões dos meios de difusão, dos gêneros literários, das categorias leitor-autor, da definição de qualidade. A afirmação de Pound de que “o esmero na linguagem é a única obrigação moral do escritor” abarca várias interpretações e meia dúzia de critérios móveis, movediços, muitas vezes excludentes. É o triunfo da relativização. Outro bom nome para a planície segura e confortável demais: relativização.

Colaborou Maria Alzira Brum Lemos

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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