Em busca da forma humana

"Paisagem com dromedário", de Carola Saavedra, revigora com brilho as grandes questões insolúveis da existência
Carola Saavedra, autora de “Paisagem com dromedário” Foto: Matheus Dias
01/06/2010

No Brasil, como no mundo, há leitores cultos que se deleitam com obras literárias experimentais. O termo normalmente se refere mais à forma e menos ao conteúdo (pouco importando, no caso, se o experimento é vazio de sentido). Outros, comumente chamados de incultos pelos que não se acham, deliram com as obras ditas “fluentes”, no sentido de “não consigo parar de ler”. Mas não nos iludamos: essa tal fluência em geral pode estar repleta de motivações extraliterárias.

Há ainda os que, como eu, torcem o nariz para estruturas engenhosas que, no fundo, no fundo nada têm a dizer sobre a vida. É como assistir a um filme do Tarantino, sair para jantar com amigos e ficar falando somente de enquadramentos, movimentos de câmera, remissões a cenas que já haviam sido filmadas por outros diretores, a história do cinema, o pop, o pulp e tal. Papo técnico. No entanto, a história da arte não é a arte da história, e tampouco a arte da história, em literatura, é apenas uma questão de linguagem.

“Os três elementos centrais dum desenvolvimento novelístico (o enredo e a personagem, que representam a sua matéria; e as ‘idéias’, que representam o seu significado — e que são, no conjunto, elaborados pela técnica) só existem intimamente ligados, inseparáveis, nos romances bem realizados”, escreveu Antonio Candido. “O romance se baseia, antes de mais nada, numa relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada pela personagem, que é a concretização deste.”

Candido está nos falando também da Grande Forma (uma forma sem fôrma, sempre), aquela que cultiva estreita relação com a natureza humana; aquela cujo discurso se sustenta na experiência dos personagens (incluídos aí os narradores não participantes); aquela que exige autores e leitores em plena forma; aquela que, se bem assimilada, pode nos ajudar a evitar com antecedência livros como os de Fernanda Young e Paula Parisot, resenhados com competência no Rascunho de maio.

Felizmente, esta resenha não é sobre autoras vazias fixadas na presunção ou na bizarrice. Felizmente, há muito que conversar sobre a escrita de Carola Saavedra, e o papo a respeito dela, pelo menos aqui, não versará sobre experimentalismo nem sobre fluência. Definitivamente, Carola não está inventando nada de novo na “literatura brasileira”, e a sua fluidez não é maior nem menor do que a que se conhece desde que o mundo é mundo. O que importa, então? Importa a constância de Carola em procurar a Grande Forma (do viver).

Paisagem com dromedário — romance que, segundo ela própria declarou, encerra uma trilogia (os outros dois seriam Toda terça e Flores azuis) — revigora com delicadeza e brilho grandes questões insolúveis da existência, captando os reflexos espectrais de Clarice Lispector, Rachel Jardim, Lygia Fagundes Telles, Raquel de Queiroz, Anne Tyler e da Lya Luft dos anos 1980. As mulheres de seu universo literário, mesmo quando mal premeditadas como personagens, são infinitamente mais interessantes que os homens, e não tanto pelo que afirmam, mas sim pelo que ocultam.

Triangulação
É o caso de Érika, a protagonista de Paisagem… Hospedada em casa de amigos numa ilha vulcânica turística (não nomeada), ela usa um gravador para expressar sentimentos confusos — de prazer, culpa, compaixão, perda, dúvida — para Alex, com quem ela teve um relacionamento profundo. Em pontos seletivamente oportunos da narração, “alguém” descreve ao leitor, em itálicos, os sons verbais e não verbais que circundam a fala de Érika. Um dos assuntos centrais da oralidade racional dela, aliás, é a jovem amiga Karen, consumida por um câncer em poucos meses.

Érika, Alex e Karen mantiveram um triângulo amoroso explícito e calculado, que os tornou, do ponto de vista de Érika, inseparáveis. A vida de Érika está nitidamente mais atrelada à inusitada sintonia desse triângulo do que à sua profissão de artista plástica, a qual ela contesta, objeta, recusa. Alex é um artista visual criativo e famoso, com um quê de filósofo da arte. Sua seduzibilidade é algo desconfortante. Mas a morte de Karen rompe completamente o equilíbrio aparentemente sofisticado da triangulação.

Érika nutre uma culpa irrenunciável por ter abandonado Karen desde que soube que ela estava doente. Há um processo de expiação em curso, então, impulsionado pela solidão naquela ilha “no meio do oceano”. Essa expiação é velada (Érika evita que os amigos Bruno e Vanessa, donos da casa, e Pilar, a caseira, tomem conhecimento das gravações). Não está sendo construída uma reparatória como a da Briony de Ian McEwan. Não exatamente. Mas fica claro que as questões da personagem estabelecem a tal “forte relação entre o vivo e o fictício” a que A. Candido tanto se referiu.

Para Érika, o fato de sabermos as coisas nos torna culpados. “É sempre melhor quando a gente não sabe, e ainda é possível ser livre.” Foi o que aconteceu a ela em relação a Karen: “Enquanto eu não sabia, era livre para qualquer crueldade, qualquer mentira, ou qualquer delicadeza, livre para ir embora e voltar, ou o que eu quisesse”. Mas, ao evitar manifestar qualquer afeto diante do diagnóstico da doença de Karen, Érika se sentiu leve, como se Karen não houvesse existido. “Mas era mais que isso.”

O discurso dela de que a morte não significa nada é tocante. A morte significa apenas o que a gente quer. A morte tem um quê de arte, e vice-versa, na medida em que interpretamos o que quisermos, na medida em que acreditamos no que acreditamos. E ponto. Se precisássemos apenas da razão para acreditar em algo, é muito provável que não acreditássemos em nada. Haveria um vazio gigante, esse vazio que, aliado à culpa, Érika tenta desocupar. Carola, por meio de Karen, dá voz à ausência, indultando-a: “Já percebeu como é estranho ouvir a voz de uma pessoa que não existe?”.

Às vezes penso, quando eu morrer, a única coisa que espero é que não exista vida após a morte, paraíso, reencarnação, nada disso. Seria tão bom simplesmente morrer e parar de pensar, de existir, o silêncio enfim. É como eu gostaria que fosse a morte, o silêncio enfim. Mas em geral as pessoas, ao contrário, querem continuar vivendo e falando e ouvindo, infinitamente.

Esse olhar original — sincero, até — para o interior das próprias perspectivas aprofunda a situação. O silêncio (o silêncio mesmo) não existe, pois, “ainda que eu fique aqui e não diga nada, há sempre algo acontecendo e fazendo barulho”. Infinitamente.

O lugar da fala
O jogo das 22 gravações (que nomeiam os capítulos) confere uma espontaneidade errática, na qual a riqueza da narrativa se faz sentir. Érika está presa tanto ao jogo da memória quanto à ilha vulcânica, metáfora da aridez e ao mesmo tempo da possibilidade de construir o que quer que seja, tanto pelo discurso quanto pela ação. Dizer qualquer coisa, aliás, “é como achar que seria possível simplesmente sair nadando e chegar a outro país”. O lugar que a fala ocupa, o lugar que ela nos ocupa, é aquele representado pelo outro, quem nos ouve.

Mas não um outro qualquer. Precisamos — e Érika acredita que Alex é esse tipo ideal de ouvinte — de alguém que tenha uma superfície lisa o suficiente para nos refletir. A raiva, o ciúme, o rancor, o júbilo, a solidariedade, tudo, absolutamente tudo que sentimos, precisa de uma forma (não de uma fôrma) de repercussão. Eis a beleza dos achados literários de Carola. Com todas as difusões, sem Karen não há graça. Karen transitava pelas intimidades compartilhadas com mistério, mas também pelo “sagrado” ateliê de Alex. “A gente perde as coisas pelo prazer de encontrá-las depois.”

Literatura é isto: a forma mais fascinante de organização precária dos sentimentos e percepções sobre uma experiência, independentemente da fragilidade do enredo (o enredo de “Paisagem com Dromedário”, como o de outros livros de Carola, chega a ser simplório, se pensarmos bem). Mas a tangência no humano supera a noção estética da autora, e é isso que, a meu ver, deve fazê-la merecedora de atenção.

Porque “a gente vive e pensa que o vivido vai servir para algo, só que não serve para nada, não ficamos melhores ou mais sábios ou mais compreensivos”. O vivido é o sentido (do personagem) que a expressão calibrada (da autora) amplifica, atenua e agudiza. E há ainda as questões estéticas de fundo, afinal Érika e Alex são artistas plásticos e encaram a arte de maneira bastante diversa.

Érika tem o projeto vago, bem vago, de transformar as gravações numa instalação “conceitual”, algo talvez ao estilo Sophie Calle. Esta é a parcela mais, digamos, intelectualizada do romance, porém certeira no tom. A artista Érika — em crise com a carreira, mas não somente com a carreira — tem no áudio a provável matéria-prima da visualidade pretendida. Mas essa visualidade está dada? Talvez não, mas…

“Gosto da ideia de que a escultura já está pronta, dentro da pedra, dentro do barro, e a gente apenas a encontra. Assim como a morte, também já está pronta, desde o início seu formato definitivo dentro do barro, e a gente apenas a encontra”. Antes de Karen (a aluna “aplicada”) entrar na história do casal, Érika e Alex costumavam trabalhar juntos. Assinavam “Alex e Érika Z”. Por outro lado, as criações de Érika só tomavam forma definitiva depois que ela as pronunciava para Alex e recebia a aprovação dele. “Alex, eu daria tudo para estar aí com você e ver a tua cara.”

De fato, a maior parte das pessoas não vive pensando em criar a “grande obra”, ou em ter “a idéia genial”. (Érika ri. Pausa) Por que temos de ser diferentes? “E o que nos interessava tinha tão pouco a ver com Karen. Você dirá, o trabalho, sempre o trabalho. Como se para nós houvesse o trabalho. A obra de arte. Será? (Érika ri)” A vontade de Érika é a tua, a nossa, a de todo mundo: poder gravar tudo, o tempo todo, para que nada mais nos escape. “Mas sempre algo me escapa.”

E por que não uma câmera em vez de um gravador? Afinal, como diz o “insuportável Bruno”, as pessoas querem imagens, imagens, imagens, e não um monte de barulho sem sentido. (Vilas-Boas, o resenhista, ri, e diz: bobagem.) O que a gente quer, na verdade, é apenas uma aproximação com a Grande Forma, mesmo que seja para concluirmos que todo mundo ama igual, sofre igual.

Não somos especiais, é verdade. O que nos une e ao mesmo tempo nos afasta é o desejo de viver uma vida que seja apenas nossa. Não uma vida copiada ou tomada de empréstimo. Queremos uma vida que seja apenas o que ela é. E, como leitores, uma literatura que continue sendo o que a literatura é. Fico na expectativa, então, do que Carola ainda será capaz de produzir, sendo jovem (nasceu em 1973).

(Silêncio. O resenhista deve estar pensando no risco contido no que acaba de dizer. E a voz do resenhista, de novo, ao fundo: prefiro as narrações de Carola em terceira pessoa, como as que entremeiam Flores azuis. Soam-me mais potentes e originais.) “No mais, arte não é o objeto, é o contexto, e o contexto quem decide é você. (pausa) O curioso é que você se levava a sério, acreditava mesmo nessas coisas que dizia. (Érika ri) Mas isso já não importa.”

LEIA A PARTICIPAÇÃO DA AUTORA NO PAIOL LITERÁRIO

Paisagem com dromedário
Carola Saavedra
Companhia das Letras
168 págs.
Carola Saavedra
Autora dos romances Toda terça (2007), Flores azuis (vencedor do prêmio APCA de 2008) e Paisagem com dromedário, todos editados pela Companhia das Letras. Em 2005, lançou o livro de contos Do lado de fora, pela 7Letras. Nasceu em Santiago do Chile, em 1973, e mudou-se para o Brasil aos três anos. Escritora e tradutora, também morou na Espanha, na França e na Alemanha, onde concluiu seu mestrado em Comunicação. Atualmente, vive no Rio de Janeiro.
Sergio Vilas-Boas

É escritor e jornalista. Autor de Perfis, entre outros.

Rascunho