É tempo de ler Joan Didion

Lançamentos e reedições dão uma amostra da prosa única da musa do new jornalism, uma das figuras centrais para a compreensão da cultura do século 20
Ilustração: Joan Didion por Fabio Miraglia
01/10/2021

A retórica clássica grega desenvolveu a noção de ekiphrasis, fundamental para entender e apreciar a arte e o engenho da palavra na prosa de Joan Didion. A ekiphrasis é uma figura retórica que se cria quando se investe na potência que a linguagem verbal tem em invocar e tornar vívidas experiências sensoriais, predominantemente através da visão, mas também podendo ampliar-se em relação a outros sentidos. Ela ocorre quando se traduz uma experiência estética-sensorial numa fruição performativa do texto que consegue reproduzir no domínio verbal essa mesma experiência. O exemplo mais direto disso seria um texto que consegue reproduzir a comoção estética provocada por uma obra de arte: uma tela quando descrita de forma vívida o suficiente para provocar no leitor uma experiência que convirja com a fruição da própria obra. Didion impera absoluta sobre esse domínio. Seus textos nos projetam para dentro das cenas e situações que ela descreve como ninguém em seus ensaios jornalísticos.

A safra de ótimas traduções das principais obras de Didion que chegaram às livrarias no Brasil faz justiça à magnitude do brilho dessa escritora e jornalista extraordinária. É tempo de ler Joan Didion. O público brasileiro já a conhecia da leitura de O álbum branco, coletânea de ensaios publicada originalmente no final da década de 1970 e que aqui chegou numa tradução em 1987 assinada por Walter Wehrs e Lúcia Alves pela Nova Fronteira. Agora O álbum branco é reeditado pela HarperCollins, em tradução de Camila Von Holdefer. Ambas as versões conseguem captar a potência evocativa de imagens do estilo característico de Joan Didion em seus ensaios. Além deste título, também está sendo relançando a prosa memorialística O ano do pensamento mágico.

Junto com Blue nights, lançado em edição de capa dura em 2018, a autora compõe com O ano do pensamento mágico um dístico da sua dolorosa experiência da perda de seu marido, o escritor John Gregory Dunne e logo em seguida a morte prematura de Quintana, a filha do casal. Em ambos os livros, Didion abre mão do estilo que marcou seus ensaios para desenvolver uma escrita como processo de elaboração de um luto. Notáveis são a coragem e a virtude de não se deixar levar pelo recurso mais óbvio e fácil, um tom sentimental hiperbólico. O luto de Didion é um vórtice de reflexões de cunho existencial de uma lucidez comovente. Suas escolhas e caminhos nunca são óbvios, previsíveis. É como se ela dissesse em silêncio que o segredo do insight é a comoção do leitor pela surpresa. E ela surpreende sempre com uma elegância e delicadeza incomparáveis. Não existe possibilidade nos textos de Didion para qualquer lugar-comum.

Geração psicodélica
Dentre todos os títulos que chegaram às livrarias brasileiras o mais importante talvez seja Rastejando até Belém. O livro é a primeira coletânea de ensaios de Didion originalmente publicado no começo dos anos 1970. Sua publicação lhe valeu a inclusão no fenômeno do new journalism, colocando-a ao lado principalmente de Tom Wolfe, assim como Truman Capote, Gay Talese, Susan Sontag e Hunter Thompson.

O título vem de um poema de William Buttler Yeats, A segunda vinda, e é utilizado como epígrafe da coletânea. Em seus dois últimos versos, lê-se: “Que besta bruta, de hora enfim chegada,/ Rasteja até Belém para nascer?”. O principal ensaio do livro também leva o mesmo nome e é resultado da incursão de Didion no universo hippie de San Francisco nos floridos anos 1960.

Didion e Dunne haviam mudado com sua filha Quintana para uma casa de praia em Los Angeles e Didion resolveu retratar a movimentação que acontecia em San Francisco em torno da cena da contracultura. Hippies de todos os cantos do país “rastejavam” até o cruzamento das ruas Haight com a Ashbury. Uma horda de outsiders que simplesmente abandonavam carreiras, famílias e demais vínculos com o mundo “normal” para se lançar na aventura da geração psicodélica. Só lembrando que até 1966 o LSD não era uma substância regulada pelas leis americanas.

A Califórnia entrava em erupção e a boca do vulcão era San Francisco. Lava-lamps, luzes estroboscópicas e principalmente a música de grupos como Grateful Dead e Jefferson Airplane somavam-se à vida que pulsava em centros de peregrinação hippie como o Filmore West, o Matrix e o Avalon Ballroom (todos eram casas cujos palcos deram origem ao acid rock, um estilo singular marcado por grandes linhas de improvisação e experimentação musical). Didion faz uma verdadeira etnografia dos tipos que circulavam por essa cena. No começo do seu “ensaio”, a autora descreve um ensaio do Grateful Dead e a movimentação de fãs em torno da banda.

Joan Didion surpreende sempre com uma elegância e delicadeza incomparáveis. Não existe possibilidade nos textos de Didion para qualquer lugar-comum.

Didion e Wolfe
Não é incomum em artigos acadêmicos sobre a autora a aproximação e muitas vezes até a comparação com o trabalho de Tom Wolfe. Ambos são representantes do new journalism. Ambos são figuras apolíneas. Wolfe era conhecido como “o dândi da imprensa americana”. Didion também tinha uma imagem feérica que foi construída principalmente pelos fotógrafos que a captaram pilotando o seu Stingray esportivo. Nada poderia ser mais distante do estoicismo hippie que rejeitava os símbolos da cultura de consumo do american way of life.

Embora essa distância seja fato em ambos os casos, tanto Wolfe quanto Didion conseguem produzir um efeito simpatético com seus textos jornalísticos, que projetam o leitor para dentro das cenas que são retratadas. Em ambos os casos o leitor se convence que tanto Wolfe quanto Didion são hippies drop-outs, que caíram fora do sistema para seguir a maré das flores. Na verdade, os dois não são poetas, mas cumprem à risca a advertência de Fernando Pessoa quando ele diz que todo poeta é um fingidor. Ao ler Rastejando até Belém e O teste do ácido elétrico, de Wolfe, tem-se em mãos os relatos que melhor descrevem as contradições mas também os momentos luminosos dessa geração que conforma o fenômeno histórico da contracultura.

Documentários e filmes
Para além do mundo das editoras e dos livros, o público brasileiro também pode conhecer um pouco mais sobre Joan Didion com o documentário The center will not hold, disponível na Netflix. O filme é de 2017 e foi dirigido por Griffin Dunne, sobrinho de Didion, e vale pela atmosfera de intimidade garantida pelo parentesco de Dunne, que constrói com sua câmera um retrato de sua tia atento aos detalhes e sutilezas de sua trajetória. A autora, mulher e personagem de Didion se mostram em toda sua riqueza. Griffin Dunne encadeia a interlocução com a tia em seu apartamento em Nova York, onde atualmente ela vive, com imagens de arquivos pessoais e de pesquisa em centros de documentação. Todas as principais obras são revisitadas e enriquecidas com informações sobre o contexto histórico e cultural que as emolduram. Desfilam pela fala de Didion figuras que vão desde Jim Morrison, vocalista do The Doors, até Dick Cheney, o ex-vice presidente de Bush Filho.

Um dos momentos mais interessantes é quando o ator Harrison Ford conta como se tornou amigo do casal Didion e Dunne quando ainda trabalhava como carpinteiro, antes de tornar-se astro de cinema. Foi Ford um dos responsáveis pela reforma da casa na qual o casal foi morar na época que Didion produziu os ensaios que depois formaram a coletânea de Rastejando até Belém.

Além de The center will not hold, também é possível conhecer uma outra importante faceta de Didion. A Netflix também tem em seu catálogo o filme A última coisa que ele queria, com roteiro de Didion. A narrativa do longa é sobre os crimes e esquemas da política americana em El Salvador, na América Central. A personagem principal, interpretada por Anne Hathaway, é uma jornalista que desvenda uma rede de relações clandestinas do comércio ilegal de armas do exército americano. Ela contracena com Ben Affleck e Willem Dafoe.

Para escrever esse roteiro ficcional, Didion viajou até El Salvador para realizar um trabalho de coleta de relatos e de consulta a arquivos e documentos. A autora e seu marido escreveram e trabalharam em muitos roteiros para Hollywood. O casal realizava muitas vezes o que eles chamavam de “clínica de roteiros”. Os estúdios os contratavam para resolver inconsistências narrativas e dramáticas de roteiros. Talvez o roteiro de cinema mais conhecido e importante que Joan Didion escreveu seja Nasce uma estrela, vivido por Barbra Streisand e Kris Kristofferson em 1976. Em 2018, o remake desse filme foi rodado a partir de um roteiro reescrito por Eric Roth e Will Fetters, com Lady Gaga e Bradley Cooper (que também assinou o roteiro desenvolvido a partir do original de Didion) nos papéis principais.

Referências
De volta ao mundo dos livros, para quem gosta de explorar os circuitos dos sebos é possível encontrar lançamentos mais antigos como a ficção Democracia, cuja tradução foi publicada em 1985 pela Nova Fronteira. Também a novela que deu origem ao roteiro do filme A última coisa que ele queria, lançada pela Record em 1999. Vale lembrar, também, o ensaio da crítica literária Michelle Dean, Afiadas — As mulheres que fizeram da opinião uma arte, que situa a produção de Didion numa paisagem de nomes de grandes autoras mulheres que foram fundamentais para a definição da literatura, do pensamento e das artes do século 20.

Rastejando até Belém
Joan Didion
Trad.: Maria Cecilia Brandi
Todavia
240 págs
O ano do pensamento mágico
Joan Didion
Trad.: Marina Vargas
HarperCollins
240 págs.
O álbum branco
Joan Didion
Trad.: Camila Von Holdefer
HarperCollins
256 págs.
Joan Didion
Nascida em 1934, na Califórnia, despontou ao vencer um concurso de redação organizado pela revista Vogue e se tornou conhecida por suas narrativas sobre cultura e comportamento.
Silvio Demétrio

É jornalista e professor na Universidade Estadual de Londrina (UEL).

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