Dinossauros, tartarugas e outros bichos

Munido de ironia e concisão, Augusto Monterroso ataca a tolice e a alienação intelectual
Ilustração: Theo Szczepanski
01/09/2014

É voz corrente que temos de ler Monterroso com “mãos ao alto”.
Gabriel García Márquez

Apesar da frase definitiva do escritor colombiano na epígrafe acima, a fama de Augusto Monterroso entre nós deriva, se não estou enganada, de seu citadíssimo conto de uma linha só: “Cuando despertó, el dinosaurio todavía estava allí”. (Quando despertou o dinossauro ainda estava ali.)

Antes de mais nada, o conto surpreendeu e despertou curiosidade. Foi também interpretado como piada, ou escandalizou pela chocante brevidade. No entanto, esse minúsculo conto nos convida a pensar sobre a graça e, ao mesmo tempo, a seriedade da literatura.

Para começar, apesar de tantas interpretações, o sentido de “dinossauro” no conto passou batido. Sabemos, contudo, que tradicionalmente “dinossauro” não significa apenas “espécie fóssil de réptil marinho da era mesozóica”, mas também, metaforicamente, situações ou entidades arcaicas e opressoras, por isso mesmo evocando a figura do ditador.

Para ficar apenas na tradição de nossa língua, recordo o grande romancista português José Cardoso Pires (1925-1998), cujo livro Dinossauro excelentíssimo teve três edições em 1972, após a morte de Salazar. O entrecho fala de “certo reino”, governado “outrora” por um “imperador astuto, diabo e ladrão”. Dele também são O burro-em-pé e A república dos corvos, este com a seguinte epígrafe, maldosamente equívoca: “Cada homem transporta dentro de si o seu bestiário privado”.

Cardoso Pires era contemporâneo de Monterroso (1921-2003), ambos sofreram ações de ditaduras (o guatemalteco foi preso, depois exilado, aos vinte e três anos, no Chile e no México, onde viveu a maior parte de sua vida); não por acaso ambos também são amantes de bestiários, impressionados com “os inumeráveis tipos da tolice humana”.

Em relação ao item da brevidade, o autor de A ovelha negra nos deixou anotações singulares, muitas vezes no corpo de alguns contos, como em A mão de Onetti (em La vaca), em que desenvolve uma notável filosofia do conto, que colocaria de cabelo em pé a desenvoltura da literatura contemporânea. Segundo ele, só haveria três ou quatro temas para um conto; com isso era necessário trabalhar. Como se não bastasse a heresia, afirma que o bom contista não sabe o que é conto; quando sabe, o leitor logo percebe e o conto não presta.

Trata-se, sem dúvida, de uma referência desdenhosa ao clichê, aos efeitos ou temas que se alastram pra todo lado quando emplacam no mercado.

Dentro da mesma preocupação, o último texto de Cuentos intitula-se A brevidade. Nele, Monterroso imagina ironicamente que o maior desejo de um escritor de textos curtos seria o de escrever intermináveis textos longos, mais fáceis, sublinha, pois que “a imaginação não tem que trabalhar, em que atos, coisas, animais e homens se cruzam, se buscam ou se evitam, vivem, convivem, se amam ou derramam livremente seu sangue sem sujeição ao ponto e vírgula, ao ponto final”.

Portanto, surpreendentemente, o conto é mais exigente do que textos longos e a “sujeição” é imposta de saída pelos sinais de pontuação, destinados a marcar as pausas que determinam o ritmo das frases. Não tenho dúvidas de que essas conclusões se devam ao profundo conhecimento musical de Monterroso, que abandonou a escola aos onze anos para estudar piano e ler os clássicos. Os entreveros da militância política, a partir dos dezesseis anos, atrapalharam estudos regulares. Mas a diferença estabelecida por ele entre textos longos e curtos, e entre prosa e poesia, cuja distinção “só se pode fazer em casos concretos”, trai sua atenção às artes da medida.

Confusão
Retomando o “dinossauro”, percebemos que mesmo os que confessam sua admiração têm dificuldade em encará-lo, e acabam por desviar o olhar, confundindo-o com outros bichos. Será por distração? Talvez descuido? Erro?

Monterroso parece não se irritar com tais julgamentos — sua arma é a ironia — e prefere aludir às contínuas e fatais mutações que a vida exerce nas palavras, nas interpretações e nos seres vivos, sem deixar de lado os inventados. O texto mais específico que escreveu sobre o tema é La metamorfosis de Gregor Mendel (em La vaca), que lembra vagamente as extraordinárias Vies imaginaires de Marcel Schwob. Vale a pena conferir.

Para chegar às menções equivocadas do célebre dinossauro, citado por Vargas Llosa como unicórnio, por Lezama Lima como crocodilo e como hipopótamo por Carlos Fuentes, Monterroso abre o leque das associações e percorre alguns mestres apaixonados pelo espetáculo da transformação, sejam eles cientistas ou escritores. Ele próprio gostava de mudanças, pois nascido hondurenho, elegeu mais tarde a nacionalidade guatemalteca. Tudo muda, insiste, para o que também concorrem “leis biológicas ou do acaso”.

Assim, escolheu dentre os amigos da inconstância, o monge agostiniano, botânico e entomologista Johann Mendel, nascido em 1822 na Silésia austríaca. Suas preferências recaíam decididamente nas mutações; começou por mudar seu nome de batismo pelo de Gregor, quando aos 21 anos ingressou no monastério. Entretanto, afirma Monterroso, “em seu retiro se interessou mais pelas coisas da Terra do que pelas coisas do Céu”, onde, como se sabe, tudo quanto é, existe eternamente e permanece idêntico a si mesmo, para todo o sempre. Uma chatice. Dedicou-se então a observar minuciosamente qualquer ser vivo a seu alcance, fossem as ervilhas no jardim do convento, os cães que o saudavam aos pulos ou as baratas que fugiam desabaladas a qualquer aproximação; acabou por descobrir que tanto as baratas quanto os cachorros, as ervilhas e demais viventes, ficavam diferentes de um dia para outro, de minuto a minuto.

O bondoso Gregor, conclui Monterroso, querido por todos e sem nenhuma fama até morrer, foi um dos fundadores da ciência genética, trinta anos antes que os cientistas estudiosos do assunto, inteiramente perplexos, o descobrissem.

O segundo deste rol é Henri Fabre (1823-1915), que devotou a vida ao estudo do comportamento e anatomia dos insetos. Escrevia sobre a vida desses bichinhos em forma de biografia, numa linguagem sem o truque dos termos científicos, o que despertou a crítica dos colegas.

Monterroso nos conta que na primeira juventude leu As lembranças entomológicas como literatura (Fabre era também poeta e pintor) e que sua busca por escaravelhos o fascinou quase tanto quanto os romances de Alexandre Dumas. Este por sua vez, sem ser o primeiro, misturou tramas históricas e ficcionais, o que nunca mais saiu de moda, embora alguns distraídos pensem que se trata de uma invenção contemporânea.

Vamos com isso pouco a pouco nos aproximando da literatura e do vértice das transformações, o verdadeiro nervo do capítulo, em que também entram acasos derivados de descuidos. É o caso do livro da “señorita Christine Ammer”, It’s raining cats and dogs and other beastly expressions [Chove a cântaros e outras expressões com animais]. Ela também é autora de um Dicionário da música, e de A saúde da mulher de A a Z. A variação de temas tão distantes entre si, sublinhada por nosso autor, não deixa de apontar ironicamente a volubilidade dos interesses da autora, talvez de olho no mercado.

Monstruoso inseto
Dito isto, qual não foi o espanto de Monterroso ao encontrar, no dicionário citado, seu amigo Gregor Mendel, o botânico austríaco, completamente transformado — e não pelas leis da natureza — num personagem de Franz Kafka. Pois na entrada “barata”, leu estupefato: “peste doméstica no mundo inteiro, a humilde barata se tornou famosa graças a dois escritores bem diferentes. O escritor tcheco Franz Kafka transformou Gregor Mendel, protagonista de sua novela A metamorfose, em uma barata desde o começo de seu relato…”.

Monterroso conjectura no que teria pensado o caixeiro viajante Gregor Samsa, como sabemos o verdadeiro protagonista de A metamorfose, ao despertar naquela manhã depois de um sono intranquilo, transformado, não “em um monstruoso inseto”, mas sim no tranquilo monge austríaco Gregor Mendel.

A correção de Monterroso, substituindo “barata” por “um monstruoso inseto”, que é o que Kafka realmente escreveu, faria a alegria de Modesto Carone, ficcionista poderoso, nosso tradutor de Kafka, que vive clamando contra essa equivocada tradução. Por outro lado, podemos também pensar que Adorno jamais imaginaria a voga do que interpretou a respeito do autor de A metamorfose, isto é, seu uso da deformação como método. Essa constante salada de bichos e gentes não parece o reforço de sua interpretação crítica?

Já que estamos neste ponto, podemos fazer uma pergunta arriscada: haverá algum traço de união entre Monterroso e Kafka, do ponto de vista literário? Ou será essa hipótese mera obediência à moda de originalidade crítica a todo custo?

Certamente o escritor guatemalteco demonstrou grande intimidade com a obra de seu colega tcheco, não pelo “bestiário íntimo” (é provável que o famoso “dinossauro”, etimologicamente “réptil monstruoso”, seja uma versão literária microscópica do “inseto monstruoso” de A metamorfose); também não pela coincidência de temas raros (sereias silenciosas de um versus sereias afônicas de outro), mas pela interpretação ficcionalizada de Kafka que Monterroso foi capaz de elaborar no conto A ceia (La cena, em Cuentos). Aqui ele usa Kafka como um personagem que representa, no sentido de que performa, o próprio estilo do escritor tcheco.

A trama, que cabe inteiramente em cinco parágrafos, é a seguinte: após a última seção de um Congresso Mundial de Escritores realizado em Paris, cinco participantes, entre eles Kafka, tratado intimamente por Franz, são convidados a cear no apartamento do escritor peruano Bryce Echenique. Afirmou-se que o endereço era fácil de encontrar, como provava o roteiro fornecido aos convidados.

Às dez horas da noite, todos estão reunidos, menos Franz, que havia dito aos amigos estar em busca de uma tartaruga, para com ela felicitar Monterroso, “como recordação da rapidez com que o Congresso se havia desenrolado”. A partir dessa afirmação altamente irônica, que dá as cartas para o jogo do texto, acompanhamos o extravio de Franz no labirinto de Paris, segundo ele cheio de armadilhas, metrôs, ônibus, escadarias sem saída e portas trancadas. Mas apesar da ausência, é ele quem estabelece o formato e a respiração ofegante do relato, ao fazer soar insistentemente o som do telefone na sala onde o esperavam, com o fim de descrever seus mínimos, mas fatais enganos na busca do endereço. Para culminar, afirma, tinha de interromper a caminhada a toda a hora, para dar água à tartaruga.

O último telefonema soa às duas da manhã. Desta vez não se trata do ausente, e sim do vizinho de Echenique, que morava no mesmo andar.

Vale a pena ler o desfecho, que resume todo o relato, como se fosse um pequeno espelho pregado em seu interior:

Às duas horas da manhã soou a campainha da porta. O vizinho de Bryce, que mora no mesmo segundo andar, direita, não esquerda, vestido de roupão e com certo alarme, disse que há pouco um senhor havia interfonado insistentemente para o seu apartamento; que quando por fim abriu a porta, esse senhor, constrangido sem dúvida por seu equívoco e por tê-lo despertado, inventou que sua tartaruga estava na rua; que havia dito que ia buscá-la, e que se o conhecíamos.

O estranhamento e confusão do vizinho, após seu encontro com o personagem Kafka, estão perfeitamente resumidos nessa espécie de “cavalo de pau” com que Monterroso freia a velocidade das descrições, fazendo a frase tropeçar na enfiada de “quês” e finalmente capotar (“y que si lo conocíamos”). Fazer o pronome relativo colidir com a conjunção condicional se, que traz embutida uma interrogação, é inesperado, mas acontece, provocando o choque. Choque que atinge “com certo alarme” o vizinho, certamente os convidados, o leitor e a narrativa, interrompida sem oferecer exatamente um desfecho.

Mal-estar
A este ponto da leitura certo mal-estar começa a perturbar o leitor. Percebemos que o citado Franz não é exatamente Kafka, mas um personagem de Kafka, infantilizado pelo “eu” que narra, que só identificamos com Monterroso porque está num livro assinado por ele. E não estaremos nós também incluídos nessas trapaças? Pois como Franz, nós também não conseguimos chegar lá, nosso caminho foi traçado na imitação do extravio do protagonista, acompanhado de seu duplo, a tartaruga.

Trata-se sem dúvida de uma paródia, à semelhança de outras que Monterroso escreveu, a respeito da ação de ditadores, sempre em ação, ou das façanhas religiosas nos primeiros séculos, não da descoberta, mas da invasão da América, que foi o que realmente aconteceu. Sem dúvida, em A ceia encontramos as principais características desse procedimento: função lúdica e repetição distanciada de um texto-base, com função crítica.

Vejamos: o entrecho se desenrola à margem do título do conto, brincando com seu sentido. Isto é, a nós é oferecida uma ceia que não acontece, ou que não é descrita ou iluminada, assim como estão fora de cogitação as supostas pesquisas dos intelectuais. Toda a atenção se concentra no convidado ausente, parceiro extravagante de uma tartaruga. Símbolo, afirma ele, do desembaraço com que transcorrera um Congresso Mundial de Escritores em Paris. O telefone que soa de modo teatral e agoniado sublinha a urgência do tempo.

Mas tudo isso não será mera justificativa? Ninguém duvida que fazer uma tartaruga simbolizar a rapidez não passa de zombaria. Pois qualquer coisa, menos rapidez seria possível, não só na descrição de um réptil, como também na apresentação de intermináveis trabalhos apresentados num Congresso Mundial que, além de tudo, desenrolou-se rapidamente. Será que o autor quis marcar sua desaprovação, a respeito dos aspectos mundanos, burocráticos, festeiros a que foi reduzida a atividade literária? E, além de improvável, não será o título do Congresso um pouco ridículo?

Mesmo levando em conta, nos textos de Monterroso, a ironia permanente em relação à tolice e à alienação intelectual, aqui ele não esquece os lances do jogo. E assim, mais uma vez, à imitação de Kafka, ele puxa o tapete sob nossos pés, por um fio desenrolado da primeira frase do conto, cujo laconismo fica de certo modo encoberto pela minuciosa descrição dos equívocos de Franz. A frase simplesmente informa: “Tive um sonho”. Voltamos assim ao início do relato. Tudo então não passou de um sonho? Foi narrado para que o esquecêssemos? Ou, ao contrário, para que o interpretássemos?

Na primeira página de A metamorfose, Kafka afirma: “isto não é sonho”. Mas havia dormido e acordado. E quando despertou, o inseto monstruoso estava ali, era ele próprio.

Talvez possamos transferir, em parte, a crítica demolidora da família burguesa, contida na novela de Kafka, para a recusa do mundo das letras no universo de Monterroso, segundo ele condescendente e burocratizado. Essa recusa é bem-humorada, pero no mucho. Porque, se ninguém parece escapar da banalidade das festinhas e das comemorações, nem o próprio personagem Monterroso ali bebericando, existe uma resistência obstinada e subterrânea a tudo isso. E levada a cabo por quem menos se admite: um escritor mais clown do que escritor, apresentado aos leitores como desajeitado, inadaptado, o absurdo duplo de um réptil. Na melhor das hipóteses uma infantilizada caricatura de intelectual, que pouco a pouco — e inadvertidamente — escorrega da diversão graciosa para o desmascaramento dos bem instalados escritores.

Num ensaio notável sobre A tribulação de um pai de família, conto de Kafka, Roberto Schwarz afirma que, fosse Kafka um revolucionário, “não fabricaria bombas, mas supositórios”. Monterroso foi um revolucionário, embora também não tivesse fabricado bombas. Sua estratégia é a da guerrilha, figurinhas costuradas com fio duplo, escondidas nas trincheiras forradas de bruma. E que, mal percebidas, explodem quando menos se espera, fazendo em pedaços a retórica do pensamento conservador.

Vilma Arêas

Escritora e ensaísta.

Rascunho