Na praça de uma vila sem nome, na Lomba do Pinheiro, dois policiais descem armados de uma viatura. Junto à carroça do verdureiro, a tia assustada abraça forte o sobrinho de quatro anos de idade. O menino sente a pele quente e suada da tia. Sente também
o cheiro ardido do sovaco dela, idêntico ao do sovaco da sua mãe: um cheiro que durante muito tempo ele associaria à ideia de carinho, antes de aprender com o mundo que devia considerá-lo desagradável.
Vera é uma obra ambiciosa e panorâmica sobre a comunidade da vila. São mais de vinte personagens desenvolvidos com complexidade, cujas vidas se entrelaçam ao longo de duas semanas. A cena com o verdureiro, logo no início, é desenvolvida em quatro capítulos. Seis personagens se cruzam na praça, cada um com seu conflito.
A narração se inicia numa sexta-feira. Esse dia será narrado por cento e dez páginas, estendendo-se por mais de um terço do romance. Assim conheceremos Vera e seu filhinho Vanderson (“tão bonitinho que ele é”!), o porteiro mulherengo Marcelo, os adolescentes Davi e Diego, a patroa Iolanda, o romântico e desdentado Aroldo. A história se ambienta provavelmente no fim da década de 1990, o que deduzimos por algumas pistas: o salário de 120 reais, o sonho de ser chacrete, um pager, um carro Vectra. Os dias da semana são marcados pelo ritmo de trabalho: o porteiro trabalha dia sim, dia não; a empregada doméstica tem folga no fim de semana; a garçonete noturna passa o dia de segunda-feira em casa. Tal arquitetura tem um efeito curioso. Se um dia narrativo se estende por trinta capítulos, no cotidiano em essência repetitivo, o leitor perde o senso de imediatez que a construção propõe. O dia durará o tempo de leitura.
Vera, a personagem que dá título ao romance, é o pivô do conflito principal. Na narrativa, porém, ela é mais vítima que agente. Seguindo sua rotina de trabalhadora, provendo pelo filho, ela se verá cercada por homens que a desejam e poderão prejudicá-la. O romance constrói bem a sensação de perigo, jogando com o gênero romance social de forma inteligente. Alguns capítulos com foco em Vera tangenciam a idealização — a mulher abnegada, que só pensa no filho. Com equilíbrio, a narração não se torna condescendente, e oferece soluções narrativas verossímeis e afetivas ao mesmo tempo. Podemos confiar no narrador: o romance tratará bem as personagens.
Os espaços da vila, erguida à beira da mata, são descritos com atenção:
(…) saindo-se do terreno, que dava para o beco, e caminhando-se uns poucos passos à direita, em direção ao matagal, chegava-se a um espaço amplo, sob a sombra de uma figueira majestosa, o qual não pertencia a ninguém, sendo uma espécie de largo semicircular onde terminava a viela e iniciava aquele mar de árvores que se estendia por vários quilômetros…
É um espaço que tem origem:
(…) num passado do qual poucos podiam se lembrar, [ela] desmatara e limpara toda aquela vasta área, reservando um canto para si e vendendo todo o resto em lotes separados.
Metástase civilizatória
O livro não esclarece se a pioneira Dona Helena tinha a propriedade do terreno, ou se trata-se de uma ocupação irregular. O foco narrativo está com os moradores, e na região —“onde nem mesmo o saneamento básico havia chegado ainda” — a terra é de quem limpou a área. O detalhe representa a desordenada e destrutiva urbanização do país, em que o descaso pela população se funde ao descaso pelo espaço natural. Tal aspecto remete a Os supridores, primeiro romance do autor: trata-se de um espaço “onde ainda era possível acompanhar, em tempo real, a ação corrosiva da metástase civilizatória trazida nas caravelas havia mais de meio milênio”.
Na vila sem nome, vive-se “com a geladeira vazia, latindo no pátio pra economizar o cachorro” — como define o adolescente Davi. As falas das personagens se destacam pelos jogos de palavras: “O problema é que até eu provar que eu não sou cavalo, os porco já me fizero comer um tantão de capim”, diz outro jovem, referindo-se aos policiais. O texto brilha quando as personagens se expressam, enquanto os capítulos dominados pelo narrador se tornam às vezes cansativos, em oposição. Um exemplo é o capítulo onze, todo expositivo, que teria se beneficiado de mais artifício, como ocorre no capítulo 65, em que um trabalhador atrás do muro nos conduz ao diálogo entre duas garotas.
Fica um alerta ao leitor impaciente: há um momento, na primeira metade do livro, que a história parece patinar, mostrando-se explicativa e até piegas (chegando à metáfora gasta da “flor que rasga o concreto”, na página 102). Tais passagens cansativas em geral envolvem Vera, aquela mãe que Herivelto Martins descreveu como “o tesouro que o pobre / das mãos do senhor recebeu”. Mas, felizmente, o romance recupera o dinamismo e torna-se cada vez melhor, conforme se encaminha para o final.
Ficamos imersos na vida das personagens, no esforço de subir as ladeiras, caminhar até os pontos de ônibus; na angústia do transporte público, onde apenas com sorte se consegue um lugar para sentar. Andamos de chinelos que soltam as tiras. Quando surge um bairro de classe média alta, nos surpreendemos, como os personagens, “envoltos numa atmosfera que lhes parecia irreal”. Experimentamos “certo constrangimento ao pisar nos ladrilhos lustrosos daquela calçada”, “o asfalto liso da via”, “a lataria espelhada dos carros de luxo estacionados”, “a madeira envernizada das mesinhas espalhadas em frente aos cafés e bares da rua”.
— Que porra é essa, mano? — disse Diego, os olhos arregalados.
— Acho que a gente tava caminhando na direção errada, sangue bom, e em vez de chegar no Pinheiro, cheguemo foi na Europa — brincou Davi (…)
— Mas nem a pau que eu vou passar por aí.
Muitos leitores hão de se reconhecer nessa cena. “Que porra é essa?”, pergunta o jovem. “Mas em que mundo tu vive?”, ironizam outros personagens, numa crônica do autor.
A corda bamba surge numa das cenas finais do livro, como uma metáfora da narração, que está “longe de querer realizar o número às pressas”. Assim como o equilibrista, o romance segue habilidoso e sem pressa. O acrobata encara a corda, como se nada mais existisse. “Aquilo, afinal, não parecia uma travessia.” Assim também é este romance polifônico: mais que é uma travessia, é “um abraço, uma dança, um carinho”.