Deformação pela máquina

"Casa das máquinas", de Alexandre Guarnieri, descontinua a percepção do lirismo
Alexandre Guarnieri, autor de “Casa das máquinas”
01/06/2025

Numa corajosa formulação, Pasolini sugere que a vitória do fascismo se faz notar na conformação do pensamento, do desejo e da atitude. E que o capitalismo soube transformar isso em vida ordinária sem ser julgado. Ou seja, o capitalismo se mostrou máquina eficiente da destruição.

À arte quase sempre coube, sem que se assumisse, desde a modernização do mundo pós-revoluções, a desprogramação do pensamento e a não-conformação do desejo. Na contramão da maquinaria fascista, que esfria o sangue e forja os modos de ser da matéria-vida (para aproveitarmos a terminologia poética de Augusto dos Anjos), a poesia se oferece como (agora aproveitando Oswald de Andrade) máquina de guerra. Parece ser assim, como máquina de guerra e de desprogramação do pensamento, que ressurge Casa das máquinas, de Alexandre Guarnieri.

O livro teve sua primeira aparição em 2011. Agora nos chega com substanciais modificações, conforme explica Rafael Tahan no prefácio à segunda edição. A principal delas, a meu ver, a inclusão do poema METRÔuroboros, stimpânque remíqse/steampunk remix, que, além de figurar em uma das partes mais nucleares do livro, no que toca a proposição temática e plástica da Casa das máquinas, remete deliberadamente à capa do livro. A imagem é extraída do filme Metropolis, de Fritz Lang, e o poema sinaliza uma diferente dialética entre a Máquina de Guarnieri e a Máquina drummondiana, embora desta traga importante herança filosófica.

Se na lírica niilista de Carlos Drummond de Andrade, vemos uma flor insegura que rompe o asfalto (A rosa do povo) e que ainda conota uma esperança mínima num mundo em que o “tédio”, o “nojo” e a “polícia” precisam ser driblados para que haja poesia, nesta Máquina contemporânea reeditada o que rompe o asfalto não é a canção, a poesia, a esperança, mas sim o abjeto:

[…] a carcaça da cidade, às claras, se desentranha da rígida epiderme de concreto e pedra, revela as espinhas carcomidas, o esgoto à mostra, maresia decompondo tudo, à putrefação avançada, jaz o cadáver adiado da cidade — metrópole distópica.

Esse trecho é extraído do poema guerra civil (zona sul), ambientado na mesma cidade tediosa que à época de Drummond era a capital do país e onde o chão se abriu no fim de tarde para ver nascer a flor. Se nos versos do mineiro modernista, mesmo que à míngua, uma flor nasce, aqui, no carioca contemporâneo, é a putrefação que emerge.

Devorado pela máquina
No entanto, se engana quem tenta espremer o livro de Guarnieri num dado niilismo radical, à Augusto dos Anjos (inclusive pelo léxico menos orgânico), pois a proposta do livro talvez esteja em mostrar que tudo no mundo que herdamos, não por continuidade, mas por acidente, está devorado e operando em máquina.

A opção da capa (a cidade máquina), o engenho das composições (desde a mancha na folha — blocos rígidos — até o ritmo), a individuação da técnica (para onde também se vai para escutar os sons, a música) e a dialética singular com a tradição ajudam a compor uma parafernália que não deixa escapar ao leitor que o próprio poema é uma incessante máquina de significar.

Há, sem dúvida, uma implacável acusação ao fordismo, sobretudo na parte intitulada Urbi et Orbitron, que nos remete à sugestão de Pasolini, indicada acima, sobre o triunfal fascismo levado adiante pelo capitalismo. Mas há também um não perder de vista que a máquina-vida-poema também é uma forma de descontinuar, ou melhor, de declarar guerra ao fascismo. Portanto, ler esse difícil livro de Alexandre Guarnieri é, entre outras coisas, tentar atravessar uma poética em que o lirismo reconfigurado conversa, sim, com uma tradição (a da máquina) para deixar emergir uma diferente forma de implosão do mundo que conforma o pensamento. A poesia aqui, assim como em Drummond, pode, sim, descontinuar a conformação do mundo, porém, aqui, em uma chave menos alegórica, ou mesmo simbólica (num extremo, metafórica), e mais numa radical elisão do homem com as técnicas.

De Haroldo de Campos, as heranças são duas: 1) Conceitual: repensar a máquina; 2) Poética, aproveitar alguns ritmos. Por mais que Guarnieri pareça se deslocar à prosa, vários de seus blocos estão equilibrados entre 10 e 12 sílabas que forçam o leitor a certa manobra de contrações ou hiatizações para alcançar o metro e o eco desejado (caso dos poemas da primeira parte). Esse ritmo é predominante no grande poema de Haroldo, A máquina do mundo repensada. O efeito rítmico que essa estratégia impõe não é apenas sonoro, é também atmosférico, faz ouvir e ver a poética em constelação; ou se preferirmos, a grande explosão que une-e-diferencia os astros, a linguagem, a ciência, o poema.

Mas há também blocos rígidos mais curtos: octossílabos. Cujo mestre é João Cabral. E deste Guarnieri também traz belas soluções atmosféricas e rítmicas, vejamos:

[…]não é
a pedra que parta ao peso que antepare.
Nem a pedra de ventre onde algum fruto
Arrebente. Mas a pedra de ser pedra
Sendo-a simplesmente. Pedra que não
Desprenda de sê-la possível sempre.

Consciência disruptiva
Essa pedra cabralina, que está em um poema chamado rimas da petroquímica pedra fundamental, é pedra “sem erosão,/ que, inerte, por quantos séculos penetre,/ permaneça tão completa bem como descomunal”. Notamos aqui — para além da conhecida aspereza e ensolaração oferecida pelas vogais tônicas e rimas internas — que, na relação entre quem age e quem sofre a ação, é a pedra que intervém no tempo. Sendo assim, o reconhecimento filosófico à Drummond, de que estamos condenados a continuar andando na “estrada pedregosa”, vem acompanhado de uma descontinuação. Se n’A máquina do mundo o sujeito segue seu caminho “avaliando o que perdera”, na Casa das máquinas o sujeito se reconhece máquina e isso não é uma condenação, antes, é uma consciência disruptiva.

Se o livro de Guarnieri mostra que o próprio poema opera feito máquina (máquina de guerra antropofágica), esse sujeito que segue andando (outrora “de mãos pensas”) tem agora a consciência de saber-se poema. E, se pensarmos na atmosfera cabralina repensada pelo poeta contemporâneo, ele, o sujeito, segue feito máquina-pedra-de-se-atirar contra a conformação fascista do mundo.

O livro de Alexandre Guarnieri ainda mobiliza vasto repertório de bruxos-mestres estrangeiros que escapam, em grande medida, a este resenhista. Mas se maquinamos essa leitura aqui na tríade Drummond-Cabral-Haroldo é para entender que na provisória localização dessa obra reeditada dentro de uma linha poética contemporânea brasileira (tributária do modernismo evocado pelo próprio poeta) a parcial fortuna crítica que já se esboçou desse livro, e que consta dessa nova edição, tem assumido — à exceção de Elvira Vigna, que captou sofisticadamente uma certa música vinda não apenas da parafernália, mas sobretudo da composição poética — uma sorte de confirmação antilírica em Alexandre Guarnieri.

Claro, quem assume essa leitura não está sugerindo a ausência de um lirismo reconfigurado, como bem percebe Betina Moraes. O problema se dá quando essa reconfiguração lírica passa a ser lida como um mero reconhecimento de que as relações humanas se entrelaçaram às técnicas de reiteração e que, portanto, é preciso saber reconhecer a poesia no mundo industrial. Essa é uma positivação interpretativa que nos afasta da complexa dialética (disruptiva) estabelecida pelo livro com a tradição moderna, qual seja, a de que a poesia pode funcionar como declaração de guerra ao fascismo conformador do desejo e do pensamento.

A parafernália transformada em signo poético não é elogio às relações contemporâneas, bem como não reforça a dicotomia subjetividade/objetividade. Ela pode ser apenas uma forma criativa de descontinuar a percepção ainda e sempre romântica do que venha a ser o lirismo. O lirismo contemporâneo de Alexandre Guarnieri não quer reconhecer o mundo como ele está, antes, essa Casa das máquinas talvez esteja tentando descontinuar a própria “jurisdição” discursiva que conformou no mundo uma ideia de lirismo. É livro forte e que vem forçar novas zonas de não-conformações críticas.

Casa das máquinas
Alexandre Guarnieri
Patuá
284 págs.
Alexandre Guarnieri
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1974. É poeta e historiador da arte. Integrante do corpo editorial da revista Mallarmargens. Ganhou o prêmio Jabuti em 2015, na categoria poesia, pelo livro Corpo de festim. Publicou ainda Gravidade zero (2016), O sal do Leviatã (2018), Nikola Tesla [entre o templo da estética e o castelo da técnica] (2023) e a plaquete Cangaço (2023).
Cristiano de Sales

É poeta e professor de literatura brasileira da UTFPR. Autor de De silêncios e demoras (2020) e Urgências que não são (2021).

Rascunho