Crônicas da travessia

Em "Um apartamento em Urano", o filósofo Paul B. Preciado entrelaça violência, corpo e política em artigos que acompanham também sua transição de gênero
Paul B. Preciado, autor de “Um apartamento em Urano”
24/03/2021

A incômoda história contada nas páginas 173 e 174 resume bem os principais temas de Um apartamento em Urano, coletânea com artigos publicados pelo filósofo espanhol Paul B. Preciado na imprensa europeia. A cena transcorre no aeroporto de Kiev, mais precisamente em frente ao guichê de imigração. O agente ucraniano lhe revira o passaporte na tentativa de desvendar a incongruência. “Não é você. É uma mulher”, afirma o funcionário. “Sim, sou eu. Eu sou mulher”, responde, tentando suavizar a voz, que, devido às injeções semanais de testosterona, vacila e desafina vez em quando.

Naquela época — era 2015 —, Paul ainda não havia renascido para o aparato estatal com nome e documento novos. Sendo assim, apenas uma revista íntima resolve o impasse: a mão da lei apalpa os genitais do passageiro. Nesse curto episódio, estão evidentes a violência que opera submetendo e humilhando os dissidentes; as fissuras que alguns corpos, por sua pura existência, causam na régua do binarismo de gênero; a política de Estado que seleciona quem deve gozar do direito à própria identidade. Os três temas, sempre nítidos e organicamente entrelaçados, são a base dos 73 textos sobre variados assuntos, escritos entre 2011 e 2018 em países e continentes diferentes.

Salpicados aqui e ali, relatos de violências físicas ou psicológicas ganham às vezes contornos brutais, como o caso do adolescente trans que se suicida após reiterados ataques transfóbicos de colegas. Mas a caneta que denuncia é a mesma que traça rotas de fuga às crueldades contemporâneas, daí deriva a força do conjunto. Mesmo sendo, em geral, uma reação aos fatos que se sucediam no noticiário, o livro pode servir como introdução à obra do professor e como registro de suas reflexões, porque não se apequena num mero apanhado de críticas, ainda que contundentes, ao status quo — algumas, aliás, já bastante difundidas nos meios de comunicação.

Avança, então, quando aponta saídas em direção a um mundo que conscientemente oponha um “não” aos adjetivos “individual”, “patologizado”, “colonial”, “financeiro”, “binário”. Está dito aqui, por exemplo: “Salvar Alan exigiria uma pedagogia queer capaz de trabalhar com a incerteza, com a heterogeneidade, capaz de aceitar a subjetividade sexual e de gênero como processos abertos e não como identidades fechadas”. E também no texto O preço da sua normalidade é a nossa morte: “O único tratamento de que [pessoas trans] necessitamos é a mudança de paradigma. Mas, como a história ensina, dado que o paradigma da diferença sexual e de gênero é a garantia da manutenção de um conjunto de privilégios patriarcais e heterossexuais, essa mudança não será possível sem uma revolução política”.

Travessia
E revolução, no fim das contas, talvez seja outro nome para travessia, que, se não ocorre desde já na sociedade, acontece a princípio no próprio corpo. Não é à toa que o subtítulo explica o volume como as crônicas dessa viagem instável entre gêneros e universos, ou melhor, multiversos diferentes. Destino, como se pode antever, seria termo mal-empregado ao pressupor algum tipo de chegada. Na verdade, o objetivo de Preciado não é a paragem, e sim o entrelugar, o abandono dos parâmetros historicamente construídos segundo os quais “só existem duas possibilidades do humano: pênis penetrante, vagina penetrada”. “Somos vítimas de um kitsch pornocientífico”, avalia. Por isso não é possível acompanhar as intervenções médicas por meio da hormonização e sua consequente metamorfose no organismo sem notar que as observações dele estão embebidas em certa dose de sarcasmo. “Isso que a convenção social e a regulação médica chamam de ‘transição para a masculinidade’ parece mais com um processo de virar animal, virar cavalo”, escreve em Etimologias. “Essa voz surge como uma máscara de ar vinda de dentro. Sinto uma vibração que se propaga na garganta como se fosse uma gravação e sai pela boca, transformando-a num megafone do estranho”, imprime-se no primeiro parágrafo de outro texto.

Assim, com essas transformações hormonais e celulares, vai se desestabilizando o que havia sido prescrito no receituário das subjetividades toleráveis, e imediatamente toma conta das instâncias de poder um pânico generalizado. O que fazer com os corpos que não se submetem mais à lógica produtivista, reprodutiva, consumidora e libidinal? Resta coagir, sujeitar, suprimir os inadequados. É especialmente impactante a elaboração sobre o tema do “Ne(©r)oliberalismo”, em que Preciado, ao antepor a um compilado de palavras o prefixo “necro”, observa como a política estatal devora, com sua pulsão de morte, tudo o que seja, em essência, humano e, portanto, diferente. Quem se encarrega de executar esse prazeroso trabalho de aniquilamento são os instrumentos técnicos, reguladores e assépticos do Estado liberal. Geralmente, a extinção é física e corporal, com a patologização dos divergentes ou a perseguição às identidades; às vezes os termos são simbólicos, como quando, para oficializar Paul Beatriz Preciado, a antiga certidão de nascimento dele foi destruída e a nova data publicada no jornal, num reforço do binarismo.

Essa autoridade, porém, até pouco tempo considerada definitiva e eterna, enfrenta hoje profunda crise — despedaçam-se o homem branco colonial, a sexualidade opressora, a democracia dentro do Estado liberal, as divisas entre países, as nacionalidades. Assim, evidencia-se a cada dia que “inventar formas de viver soberanas diante da dupla hélice Estado patriarcal/mercado neoliberal” é uma oportunidade dos nossos tempos e, mais que isso, um imperativo para as pessoas que desejam construir uma vida toda sua, mesmo que coletivamente, mesmo que nos interstícios da derrocada.

Vários excertos esmiúçam o que seria essa invenção para Paul; entretanto, um deles deve servir:

Trata-se de modificar a produção de signos, a sintaxe, a subjetividade, os modos de produzir e reproduzir a vida. Não estamos falando apenas de uma reforma dos Estados-nações europeus. Não estamos falando de mover a fronteira de lá para cá. De tirar um Estado para instalar outro. Estamos falando de descolonizar o mundo, de interromper o Capitalismo Mundial Integrado.

Acrescento ainda mais:

Nós não vamos chorar o fim do Estado de bem-estar social, porque o Estado de bem-estar social também tinha o monopólio do poder e da violência e vinha acompanhado do hospital psiquiátrico, do centro de inserção para deficientes, da prisão, da escola patriarcal-colonial-heterocentrada. 

A substituir “identidade” por “multidão”, a alterar o paradigma atroz em que se encontram, a reafirmar a própria existência cotidianamente já estão dedicados, de uma forma ou de outra, uranistas de toda sorte. Esse termo foi cunhado em 1864 pelo jurista Karl Heinrich Ulrichs para explicar, de um modo ainda muito marcado por aquele século, as orientações sexuais não conformes por meio da teoria do “terceiro sexo”; a palavra que inventou foi inspirada na mitologia grega e é tomada de empréstimo ao deus Urano, de cujos genitais decepados nasceu Afrodite, a deusa do amor.

O nome do alemão adquire importância histórica por um motivo decisivo: foi ele o primeiro cidadão europeu a se denominar, de público, com o vocábulo e a tentar mostrar, diante de um auditório lotado de profissionais de sua área de atuação, que não era doente sexual nem criminoso; em outras palavras, Ulrichs foi um dos primeiros a requerer as chaves de um apartamento em Urano.

Um apartamento em Urano
Paul B. Preciado
Trad.: Eliana Aguiar
Zahar
317 págs.
Paul B. Preciado
Nasceu em Burgos, em 1970. É um dos principais filósofos contemporâneos dedicado a temas como corpo e gênero. Publicou Manifesto contrassexual (2002), Testo junkie (2008) e Pornotopia (2010).
Alan Santiago

É revisor de textos da UFPR. Já foi repórter nos jornais Folha de S. PauloAgora São Paulo e O Povo. Publicou o livro de contos A lua de Ur num prato de terra (2009, 7Letras)

Rascunho