Contra a visão simplista de liberdade

Contos de Bernardo Kucinski exploram as heranças da ditadura militar e, sem cair em discursos prontos, focam na ambivalência dos personagens
Bernardo Kucinski, autor de “K” Foto: Renato Parada
01/06/2022

Às vésperas dos 50 anos do golpe militar no Brasil foi instituída a Comissão Nacional da Verdade. Dilma Rousseff era, então, a presidente e trazia consigo o histórico de lutas dos anos de 1960 e 70. O país remexia o seu passado, dando nomes, expondo fatos que, talvez pela ânsia de democracia, tinham sido forçosamente relegados ao esquecimento.

Em 2011, mesmo ano em que se instituía a Comissão Nacional da Verdade, Bernardo Kucinski publicava K. O romance, primeiro neste gênero do já renomado jornalista, retoma o autoritarismo brasileiro que durou mais de duas décadas. O autor conferia uma tônica à sua narrativa a desvendar a preocupação com detalhes e angústias vividas por pessoas que, num primeiro momento, não estavam diretamente ligadas ao movimento político.

Agora, em 2021 e 2022, o paulistano retorna à ficção em A cicatriz e outras histórias: (quase) todos os contos de B. Kucinski. Trata-se de uma coletânea de narrativas breves com distintas datas de publicação, sendo alguns inéditos.

Kucinski está justamente na trilha dessa visão. Uma parte significativa do novo livro segue a preocupação em demonstrar a necessidade de se relembrar a ditadura. E o faz humanizando o tema, apontando como as marcas da repressão permanecem nas coisas mais simples do dia a dia, como, por exemplo, em Um encontro no porão, quando um filho vai em busca de informações sobre seu pai, morto décadas antes, nos porões da ditadura, cuja identidade sempre foi um mistério em sua vida.

Minha mãe não gostava de falar do meu pai. De começo nem o nome Jonas ela falou. Dizia que era Vicente, depois que não, que era Rodrigues, depois que era Carlos, Luiz. Eu me sentia confuso. Como era possível que meu pai tivesse tantos nomes? Então ela disse que não eram nomes, eram codinomes.

Claudia Lage, em O corpo interminável, faz algo semelhante. Fernando Bonassi, com Degeneração, também. Embora sejam autores contemporâneos bem diferentes, todos eles, e muitos outros, se inserem nessa lógica de trazer elementos da ditadura para a atualidade como forma de suscitar ponderações quanto à aparente estabilidade política conquistada, ou mesmo, pensando imediatamente no agora, explicar onde dormia toda a intolerância que se vê na atualidade. É aqui que Kucinski se insere.

Premissa da liberdade
A cicatriz e outras histórias são diversos livros de contos em um só. As narrativas não se prendem apenas aos anos de chumbo. Há, por exemplo, momentos em que o autor proporciona uma incursão à temática da dificuldade de convivência dos judeus no Brasil com o passado de perseguição sofrida na Europa durante a Segunda Guerra — a sua família é de origem judia. Igualmente, temas mais comuns como o envelhecimento, a juventude, burocracia, enfim, coisas aparentemente banais, adquirem proeminência por meio de suas palavras.

Em Um software avançado, estamos diante da história de um aposentado que vai fazer prova de vida por conta de sua aposentadoria e o sistema acusa que ele não existe. No kafkiano O processo, K. enfrenta uma terrível burocracia no cartório para cumprir um dever cívico.

Kucinski é um escritor de detalhes. Os dois exemplos de contos do parágrafo anterior demonstram como noções de direitos como os de ir e vir não são tão claras assim. O seu exercício cobra um preço que nem sempre se está disposto a pagar — ou mesmo não se consegue pagar. O direito à herança ou o direito à aposentadoria encontram barreiras nas próprias instituições.

Essa ambivalência da coletânea é marcante na vida comum. Em A mãe rezadeira temos uma mulher que prefere que seu filho, um preso político, permaneça encarcerado do que solto, pois teme por sua vida quando em liberdade — não existe, em um país com uma trajetória como a nossa, a liberdade plena. O sal da discórdia traz pescadores da Amazônia que, por pura necessidade de sobrevivência, discutem sobre não “desperdiçar” uma tartaruga marinha que encontraram em sua rede durante o período de desova.

O autor mostra que a liberdade não é uma dádiva alcançada, depois de momentos conturbados da vida de um sujeito, que será acompanhada de uma paz absoluta. Ela é ambígua, fruto de circunstâncias e relações. E, inevitavelmente, trará consigo uma série de elementos derivados do passado. A marca de Kucinski é a de traduzir isso na literatura.

Conceitos puros
Não há conceitos puros no conjunto. O autor não se perde em idolatrias. Obviamente, não apresenta um livro contemplativo. Seus personagens são, em grande medida, a despeito do tom cômico de alguns contos, como O crachá e O incrível senhor Nathaniel, atormentados pela ambivalência da própria liberdade que possuem.

Neste ponto, voltamos ao princípio do argumento desta resenha. Talvez a ditadura relembrada hoje tenha esta marca: a de que a liberdade, conforme nos foi ensinada ao longo dos tempos, não é algo perfeito e uníssono. Quando Kucinski retoma o mais recente período autoritário brasileiro — e até mesmo o nazismo evocado ao tratar do tema da ascendência judaica — aponta para questões não resolvidas e que assim permanecerão. Não há ingenuidade. Por mais livre que o sujeito possa ser, ele se encontra preso ante a possibilidade de escolha.

Não seria errado dizer que não é apenas a liberdade que importa — aliás, vivemos em tempos de banalização de discursos. A forma como a escolha deve ser feita, e todo o processo de reflexão do sujeito para seguir tal ou qual caminho, prepondera como o mais relevante. Neste caso, a consciência das circunstâncias em que uma liberdade, ou direito social, ou herança, foram criadas define o sujeito para sempre. No caso de Kucinski, define o seu personagem.

É em decorrência disso que surge um processo de humanização bastante interessante. O círculo do raciocínio da coerência de sua produção se fecha aqui. A partir disso, Kucinski confere a si mesmo a autoridade para falar das incoerências dos movimentos de esquerda em sua batalha contra a ditadura brasileira — sim, isso também ocorreu. Igualmente, pode versar sobre as inconsistências do judaísmo diante da intolerância hitlerista, as dificuldades de um idoso para admitir a velhice e de uma indígena para assumir sua herança cultural.

Alguns desleixos
O livro de 450 páginas traz um belo desenho de Enio Squeff na capa. A orelha fica por conta de Haroldo Ceravolo Sereza. Devido às proporções da obra, o projeto merecia uma maior atenção, sobretudo no que diz respeito à revisão. Na página 140, por exemplo, o nome da protagonista do conto Tia Flora é visivelmente trocado por engano. É como se o rascunho do autor tivesse passado direto. O mesmo ocorre em O processo, entre as páginas 251 e 252. A disposição das narrativas também poderia ser melhor, pois, mesmo divididas em seções, algumas parecem deslocadas, sobretudo na segunda e terceira partes.

Enfim, A cicatriz e outras histórias é uma obra muito bem localizada nos dias de hoje. Tem lugar cativo na estante, rodas de conversa ou aulas de sociologia e história, por sua sinceridade em questionar pontos que, para muitos, eram tidos como superados. A sua atualidade é conveniente, ainda mais em um momento em que se diz que se tem direito de se fazer o que quiser. Não é bem assim. Nunca foi.

A cicatriz e outras histórias
B. Kucinski
Alameda
450 págs.
B. Kucinski
Nasceu em São Paulo (SP), em 1937. Sua primeira ficção, K., foi traduzida para várias línguas e finalista de importantes prêmios. Você vai voltar pra mim, vencedor do Clarice Lispector (Biblioteca Nacional), A nova ordem e Júlia — Nos campos conflagrados do Senhor são seus outros títulos publicados.
Faustino Rodrigues

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

Rascunho