Como (não) escrever um bom livro

Escrito no século 19, "Às avessas", de Joris-Karl Huysmans, extrapola perseverantes convenções literárias
Joris-Karl Huysmans, autor de “Às avessas”
06/01/2014

Já li e ouvi diversos professores/escritores no ato insano de ensinar a escrever romances. Falam de personagens, tempo, espaço, enredo (que atualmente chamamos de trama) e uma série de outros aspectos. O incauto candidato gastará anos até conseguir se desvencilhar da sórdida rede de regras.

Arrisco dizer, caro leitor/futuro escritor que, caso almeje escrever algo diferente, evite os professores. Digo isso também por ter lido Às avessas (1884), de Joris-Karl Huysmans (1848-1907). Aqui você provavelmente não encontrará um enredo, não na forma como os professores costumam apresentar, e se deliciará com um excelente romance de apenas um personagem. Nos cenários onde deveriam atuar os personagens, você perceberá obras de arte.

Pensou que este aprendiz assumiu sua demência? Ainda não.

Às avessas mereceu uma edição em 1987 pela Companhia das Letras, com tradução do francês de José Paulo Paes, a mesma utilizada na publicação atual. Além do prefácio, também de autoria de Paes, o leitor saciará sua curiosidade com uma cronologia de vida e obra do autor. Ao final, um primor: Prefácio escrito vinte anos depois do romance — J.-K. Huysmans. O viés crítico continua, o leitor pode conferir os comentários de vários autores — entre eles, Zola, Mallarmé e Max Nordau — e o trecho de O retrato de Dorian Gray em que Oscar Wilde se refere ao livro de Huysmans.

As estranhezas de Des Esseintes são reveladas por um narrador em terceira pessoa, minuciosamente objetivo, preciso, seco, contrastando com certos achaques do protagonista. Importante dizer que Des Esseintes analisa várias obras ao longo da narrativa — algumas, inclusive, dos autores citados —, mas não fica restrito à literatura: pintura e música também merecem sua atenção. O personagem, extremamente culto e libertino, tinha como preferência, em se tratando de literatura, a decadentista; apreciava poucos autores, e não seria exagero dizer que se resumiria a Mallarmé, Baudelaire, Verlaine e Edgar Allan Poe.

Mas quem é Des Esseintes?

Descendente de nobres, cuja família foi arruinada por casamentos consangüíneos, freqüentou escolas jesuítas (quando adulto continuava admirando-os, embora ateu). No momento, completara trinta anos e via-se em total paralisia. Nada era capaz de motivá-lo; o tédio ou mal do século ou spleen abandonava-o apenas quando sua imaginação o fustigava com supostos problemas que, em acessos histéricos, pareciam-lhe insolucionáveis. Homem fino, dono de um rigor estético que o leva a desprezar a mediocridade burguesa e o mercantilismo reinante, cansado de tanta orgia, já vitimado pela nevrose (assim se chamava a neurose antes da psicanálise), Des Esseintes deixa Paris e se recolhe, na companhia de dois velhos criados, em uma casinhola nos altos de Fontenay-aux-Roses, local afastado e sem vizinhos.

Ele farejava uma patetice tão inveterada, uma tal execração de suas, dele, idéias, um tal desprezo pela literatura, pela arte, por tudo quanto ele adorava, implantada, ancorada nesses estreitos cérebros de negociantes, exclusivamente preocupados com vigarices e dinheiro e acessíveis tão só a essa baixa distração dos espíritos medíocres, à política, que voltava para casa e se fechava a sete chaves com os seus livros.

(Breve pausa para refletir acerca do ofício de ensinar…

Eu vi, incrédulo leitor, ninguém me contou: um professor ensinando a escrever um romance. Dividiu o quadro negro em mais de vinte partes e apontava o que deveria acontecer de modo a criar suspense e manter o interesse do leitor. Cordatos, os pupilos a tudo copiavam. Menos eu, que nesse episódio não passava de um visitante. Nenhum daqueles atentos alunos, até o presente, escreveu coisa que preste.

Fim da pausa para refletir acerca do ofício de ensinar a escrever um romance.)

Na fronteira
Às avessas é um romance fascinante por uma série de motivos, mas um deles é extremamente peculiar: o fato de não acontecer nada, absolutamente nada. Caso prefira, meticuloso leitor, não acontecer “absurdamente” nada.

Ao final arrisco dizer que quase acontece: Des Esseintes ameaça viajar à Inglaterra. Ruma a Paris sob chuva forte; chegando lá, dirige-se a um restaurante inglês, onde se farta de comida e bebida; logo desiste da viagem.

— (…) Estou saturado de vida inglesa desde a minha partida; seria uma loucura perder, por um desastrado deslocamento, sensações imperecíveis. (…) Vejam — disse, olhando o relógio —, mas chegou a hora de regressar a casa. — Dessa vez, ergueu-se sobre as pernas, saiu, ordenou ao cocheiro que o levasse novamente à estação de Sceaux, e regressou, com suas malas, seus pacotes, suas valises, seus estojos, seus guarda-chuvas e suas bengalas, a Fontenay, sentindo o esfalfamento físico e a fadiga moral de um homem que retorna ao próprio lar ao cabo de uma longa e perigosa viagem.

Des Esseintes é o personagem de Des Esseintes, e diante de tão peculiar criatura, duvido que você sinta falta de outro(s), solitário leitor. Dom Quixote seria outro sem Sancho Pança — menos interessante, sem dúvida. O herói de Huysmans tem parentesco com o de Cervantes; o que é movimento neste transforma-se em passividade, contemplação, análise no escritor francês. O simplório Quixote encontra na arrogância de Des Esseintes o seu contraponto.

Por outro lado, enxugando Às avessas — isso se faz necessário devido aos exageros do autor —, o leitor se verá perplexo frente a uma obra com ares de Esperando Godot, de Beckett, ou de O estrangeiro, de Camus. Nos três casos, nos deparamos com o absurdo da existência humana, e conseqüentemente das atitudes humanas, sem esquecer que Des Esseintes sofria de nevrose. Entediado, dedicava-se à botânica, mas tédio não é coisa que ofereça trégua, e o Quixote de Huysmans exige uma criatura que se movimente — com lentidão, bien sûr. Uma tartaruga é a escolhida. A carapaça é coberta de pedras, de modo a combinar com a tapeçaria.

Caso você tenha entendido como um reducionismo por parte deste aprendiz enquadrar Às avessas como exemplo do absurdo, perdoe, tentarei melhorar. Que tal um romance existencialista? Apesar da nevrose de Des Esseintes.

Seu desprezo pela humanidade aumentou: compreendeu enfim que o mundo se compõe, na maior parte, de sacripantas e imbecis. Decididamente, não tinha nenhuma esperança de descobrir em outrem as mesmas aspirações e os mesmos rancores; nenhuma esperança de acasalar-se com uma inteligência que se comprouvesse, como a sua, numa estudiosa decrepitude; nenhuma esperança de associar-se a um espírito penetrante e torneado como o seu, de um escritor ou de um letrado.

Às avessas é um romance de altíssimo nível — inclua-se a tensão necessária para tal classificação, tensão que o coloca na fronteira: não é bem isso, também não chega a ser bem aquilo. Percebe-se um pouco de naturalismo combinado com um tanto de simbolismo, resultado: obra além das classificações.

Atenção, professores fiéis às regras para se escrever um bom romance! Leiam Às avessas, não percam esta excelente obra, e continuem ensinando o bê-á-bá do romance. Não faltarão discípulos. Eu garanto.

Às avessas

Joris-Karl Huysmans
Trad.: José Paulo Paes
Penguin-Companhia
352 págs.
Joris-Karl Huysmans
Nasceu em Paris, em 1848, filho único de pai holandês e mãe francesa. Depois de uma infância marcada pela morte do pai e pelo segundo casamento da mãe, tornou-se funcionário administrativo do Ministério do Interior, onde trabalharia durante 32 anos. Passou a primeira metade da Guerra Franco-Prussiana no hospital, acometido de disenteria, e a segunda metade sob fogo cerrado, na capital sitiada. Quando se fez a paz, retornou ao Ministério. Três anos depois publicou seu primeiro livro, Le drageoir aux épices (1874), coletânea de poemas em prosa à maneira de Baudelaire. Voltou-se então para o romance, publicando várias obras do gênero. Às avessas, publicado em 1884 e aclamado por Arthur Symons como “o breviário da Decadência”, marcou sua ruptura com o grupo de Zola, e o começo de uma tentativa de ampliar o alcance do romance. Morreu em 1907.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho