Coisas de Afrodite

"A vida obscena de Anton Blau" tem o mérito de provocar discussão, mas acaba fechado em si mesmo pelos excessos
Maria Cecília Gomes dos Reis, autora de “A vida obscena de Anton Blau”
01/06/2012

Bricolagem: “trabalho ou conjunto de trabalhos manuais ou de artesanato doméstico”.

Assim me auxilia o Dicionário Aurélio, e ao mesmo tempo me frustra. Pensava conhecer o significado da palavra, que para mim era uma técnica de juntar materiais e elementos diversos em montagens que resultariam em arte decorativa. E de pronto detecto a origem do meu equívoco: cheguei à errada conclusão na primeira vez em que prestei um pouco mais de atenção ao termo, quando ganhei de presente um quadro com a observação de que era uma bricolagem. Não entendi o que queria dizer a amiga ao me presentear ¾ que a obra havia sido concebida dentro o espírito do it yourself norte-americano, seu conceito original ¾ e assumi que ela se referia à técnica utilizada naquele trabalho em particular, que era uma colagem. Mas a teimosia inata de um taurino de boa cepa não o deixa nunca desistir ao primeiro revés. Encontro na internet, mais precisamente na Wikipédia, essa preciosa informação:

Em seu livro O pensamento selvagem, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss usou o termo bricolagem para descrever uma ação espontânea, além de estender o termo para incluir padrões característicos do pensamento mitológico, o qual não obedece ao rigor do pensamento científico. (…) O pensamento mitológico é gerado pela imaginação humana, baseado na experiência pessoal, (…) gerado pelo surgimento de coisas pré-existentes na mente do imaginador. Desse modo, a mitologia descreve o mundo através de narrativas. Num mundo onde há poucas ferramentas lingüísticas, se faz necessária a utilização de metáforas e narrativas. Na falta de uma palavra para o “ato sexual”, por exemplo, os gregos antigos precisaram lançar mão de toda uma história fantástica para enfim poder dizer “coisas de Afrodite”.

Bingo!
(Antes de prosseguir, porém, devo satisfazer a curiosidade de quem deve estar se perguntando, a todas estas, qual o motivo de tanta preocupação com um termo que não faz parte do jargão literário, nem era aquilo que o resenhista pensava que fosse. Pois explico: além de teimoso, um taurino de boa cepa é também um bicho intuitivo. E, após a leitura de A vida obscena de Anton Blau, de Maria Cecília Gomes dos Reis, “bricolagem” foi a primeira palavra que me veio à mente, ainda que tenha vindo no bojo de uma falácia.)

Tentar acomodar os fatos para que eles possam levar a uma conclusão previamente traçada é algo que a honestidade intelectual sempre deplora. Mas intuição não se despreza, e eis aqui um começo possível para a abordagem de uma obra especialmente difícil de ser resenhada: a definição de Lévi-Strauss, tomada de empréstimo do contexto antropológico, serve como uma luva para explicar como se organiza o segundo livro de Maria Cecília Gomes dos Reis, recém-lançado, bastando para isso que se substitua o “científico” do enunciado por um “racional”.

De que trata A vida obscena de Anton Blau? Não sei dizer com absoluta certeza, e não há como resumir de forma satisfatória aquilo que não foi feito para ser compreendido “racionalmente”. Concebido à margem das relações de causa e efeito que devem nortear o desenvolvimento das ações numa narrativa tradicional, o breve romance (ou novela, ou conto longo, ou tanto faz, porque a obra não se presta a uma classificação assim tão rígida, o que pode ser considerado um aspecto bastante positivo) quer aparentemente se ocupar da vida de um personagem, o Anton Blau do título, mas começa com um narrador em primeira pessoa que se apresenta de um modo tão genial quanto enigmático: “Sou o amigo imaginário da pequena Marta”. Quem é Marta? Não se sabe. Ela aparece na abertura do livro e através de seus olhos nos é descrita a São Paulo do final do século 19, em seguida a do começo do século 20; a idade da criança vai mudando, para mais e para menos, até ela sumir, algumas páginas depois, e nunca mais retornar, mesmo destino do estranho narrador inicial e dos vários outros que virão pela frente.

Abre-se um mundo de possibilidades com a singeleza desse começo, mas a impressão que se tem é a de um valioso material desperdiçado, servindo apenas para conduzir a entrada triunfal do protagonista. E eis que surge Anton Blau, “a mais bem-acabada encarnação de mim mesmo”, no dizer do narrador que pode não ser aquele primeiro. Ele vem na pele do filho arrancado dos braços da mãe solteira e entregue para adoção a uma viúva feia e rica, que morre cedo e o deixa como único herdeiro. A partir dos 12 anos, quando fica órfão da mãe adotiva, até a maioridade, passa a ser tutelado por uma tia, irmã do padrasto que nunca teve. Essa parente postiça, Edla, quase rouba de Anton o papel principal ao se converter do protestantismo a um catolicismo fervoroso e, logo em seguida, apresentar um comportamento sexual esquisito, para se dizer o mínimo, em se tratando de uma dama tão pudica.

Anton Blau, por sua vez, é um tipo absolutamente comum. Com dotes físicos e intelectuais suficientes para perseguir qualquer ambição que tenha na vida, acaba se encolhendo por uma espécie de leniência em relação a seus propósitos, uma situação em nada excepcional, na ficção ou fora dela. Anton vai aos poucos consumindo o rico patrimônio herdado e chega ao ponto de viver às custas dos parcos proventos da aposentadoria como professora de Edla, a quem mais tarde se vê obrigado a interditar por insanidade mental. E sua história acaba, sem nenhum brilho, com a revelação de que ele tem um relacionamento homossexual.

Fechado em si
A tentativa de resumo acima, mais do que evidenciar sua pobreza como matéria ficcional, está longe de servir como um argumento. E, embora me pareça bastante lógico esperar que a trajetória do personagem que dá nome ao livro seja o mais relevante da narrativa, ela não passa de uma linha tênue de coerência central num ambiente de estrutura caótica cuja tradução mais adequada é mesmo “colagem”. O livro não pretende ser um romance de formação. Tampouco o protagonista é aprofundado ou humanizado através da exploração de seus conflitos; ao contrário, apresenta-se plano a ponto de exasperar o leitor que ainda acredita na importância de uma boa e sólida construção de personagem.

Está claro que a intenção aqui não é desenvolver um enredo, mas dar apenas certa evidência a esse fiapo de história, que resta perdido no meio de um emaranhado de outras histórias e situações, no passado e no presente. A lista de elementos utilizados no trabalho de colagem inclui a já esperada intertextualidade ¾ que aparece em sua versão mais arrogante e menos sutil, um triste modismo do momento, mas que aqui combina bem com o caráter da obra ¾, e também a referência às ciências naturais, à história, à geografia. O trecho do Código Civil Brasileiro que dispõe sobre a tutela está transcrito sem nenhuma funcionalidade a não ser a de ilustrar. Com o mesmo objetivo, foram colados fragmentos do processo de interdição de Edla e algumas imagens que, apesar de divertidas, pouco ou nada têm a ver com o conteúdo. Ou talvez tenham tudo a ver nesse universo fragmentado, multifacetado e volátil, construído quem sabe para espelhar o mundo contemporâneo e as paradoxais limitações que ele impõe ao ser humano confrontado com a grandiosidade de sua engenharia.

O livro se divide em quatro capítulos, cada qual dedicado a uma das estações do ano. Não resta claro, contudo, quais aspectos foram levados em conta como critério para essa divisão. O discurso é elevado, elegante e preza a eufonia, salvo nos momentos em que decai, sem nenhuma razão, para o francamente chulo.

A intenção autoral, anunciada na anônima apresentação da orelha do livro, é a de construir um “empilhamento” de narrativas. Tal solução acaba soterrando o pouco que resta de humanidade nos personagens. O complexo e colorido painel de Maria Cecília Gomes dos Reis pesa como chumbo e, mesmo com todo o arsenal bélico hoje disponível para abrir caminhos e apontar possibilidades (ao contrário da escassez de “ferramentas linguísticas” do enunciado de Lévi-Strauss), acaba fechado em si mesmo pelo uso excessivo dessas ferramentas. É provável que essa percepção não seja gratuita e que o objetivo seja causar justamente esse efeito. O problema é que, em literatura ou em qualquer das artes, isso não é o bastante. O que distingue a verdadeira arte de um mero exercício de virtuosismo experimental é seu poder de transcender e apontar para fora de seus limites. Na falta desse valor intrínseco ao que se considera artístico, o mais bem realizado dos projetos, apesar de todos os outros méritos que possa ter, dificilmente conseguirá ser mais do que uma peça de ilustração ou decoração.

Ou talvez não. Talvez eu tenha lido errado ou não tenha dado a devida importância ao prólogo intitulado Instruções para o leitor. Quem sabe voltando a ele descubra uma chave para apagar a péssima impressão que me causou o posfácio, em especial o trecho onde consta que o livro “procura ser claro para facilitar quem tem pouca imaginação”, depois de páginas e páginas onde a clareza não deu as caras. Talvez tenha sido uma ironia, e assim espero, caso contrário tornar-se-ia inevitável retrucar com uma indelicadeza à altura: se um livro precisa de uma bula prévia e de uma justificativa final para ser bem compreendido, não é certamente ao leitor que falta imaginação.

Contudo, é bem possível que outros leitores cheguem a conclusões diferentes. E eis aí outro aspecto a ser valorizado: A vida obscena de Anton Blau é uma obra que nasceu para provocar discussão, algo que em literatura pode significar bem mais do que a difícil conquista de uma unanimidade, por mais positiva que ela seja.

LEIA ENTREVISTA COM A AUTORA.

A vida obscena de Anton Blau
Maria Cecília
Gomes dos Reis
Editora 34
136 págs
Maria Cecília Leonel Gomes dos Reis
Nasceu em São Paulo em 1956. Com doutorado em Filosofia pela USP e graduação em Artes Plásticas pela Fundação Armando Alves Penteado, é escritora e tradutora. Seu romance de estréia, O mundo segundo Laura Ni, de 2008, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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