Celebração da resistência

Mesclando experiências pessoais e elementos mágicos, "O parque das irmãs magníficas" retrata o cotidiano de violência e de lutas de um grupo de travestis argentinas
Ilustração: Camila Sosa Villada por Oliver Quinto
02/08/2022

Há um aspecto identitário e ambíguo no título original de O parque das irmãs magníficas que é obliterado na adaptação para a edição brasileira. Las malas (As más, numa tradução livre) diz respeito à imagem feita pela sociedade do grupo de travestis que habita o enredo, mas também à franqueza rascante com que a própria autora trata essas personagens, descritas sem piedade melodramática ou romantização. Isso porque a argentina Camila Sosa Villada traz essas histórias marcadas na pele. Seu livro de estreia se constitui de fragmentos de um registro autobiográfico que se entrecruza com uma série de relatos sobre tipos que fazem ronda no Parque Sarmiento, em Córdoba, em sua maioria para a prática da prostituição. São experiências do vivido contadas, muitas vezes, pela inflexão da crônica, e revestidas por um verniz cuja essência parece extraída do realismo mágico, embora não seja de fato. O que soa insólito e sublime é a interpretação metafórica da realidade, alegorias luminosas para circunstâncias obscuras.

Agente ao mesmo tempo que testemunha dos fatos, a escritora se esconde atrás de uma narradora anônima que conduz o vaivém entre o lugar das lembranças e o curso corrente da trama, situando certos episódios num contexto imaginário. Vinda do interior para fazer faculdade de Comunicação Social e Teatro na capital, a personagem acaba de passar pela transição de gênero quando avista, pela primeira vez, o movimento da “manada” nos arredores do parque. “As travestis esperam sob os ramos ou em frente aos automóveis, passeiam seu feitiço pela boca do lobo, diante da estátua de Dante, a histórica estátua que dá nome à avenida”. Filia-se, então, à congregação que vende sexo como forma de sobrevivência. Nessa mesma noite, ressoa um choro mirim em meio à vegetação. Tia Encarna, a líder do grupo, uma espécie de versão trans de Úrsula Iguarán, de Cem anos de solidão, descobre um bebê de cerca de três meses encafuado numa moita. Apesar de todos os problemas que pode gerar, ela decide adotar o menino, dando-lhe o nome de O Brilho dos Olhos. E o ato se torna a chave definitiva para o ingresso nesse universo e a linha guia ao longo do processo de urdidura do texto.

A entrada pelos corredores do romance é o refúgio no casarão rosa de dois andares, de onde registra a rotina interna das residentes e propaga os sons acumulados no peito que estas trazem de fora, nos gritos, nos choros, nos lamentos. Transitando de uma personagem a outra, e usando de situações individuais para desenhar um cenário recorrente, Villada (ou melhor, seu eu ficcional) detalha o horror da violência e da discriminação, das instituições que marginalizam e condenam, das doenças incuráveis e dos crimes de ódio. Os furtos, o vício em drogas e a rivalidade por pontos e clientes são abordados do mesmo modo; “somos hipócritas também, urgentes travestis que, por dinheiro, se encavalam sobre qualquer coisa que se mexa”, declara. Porém, apesar do nítido sentido de manifesto, da voltagem de contestação, nunca se transforma numa peça panfletária, tampouco em elóquios apelativos sobre a brutalidade. A autora demonstra uma desenvoltura admirável para inserir os comentários como partes intuitivas do andamento narrativo, estabelecendo uma atitude que impulsiona o leitor a assumir naturalmente uma perspectiva crítica, engajado pelo impacto e pelo poder de atração da escrita.

Fantástico como representação trans
Instaladas essas lentes, a literatura militante não precisa ser agressiva para abordar a agressividade, desdobrando-se em formas de representação que encontram no deslocamento do real seus códigos de deciframento. É próprio do realismo fantástico tirar do absurdo pontos correspondentes para certos alvos de interpretação. A prosa mista de Villada lança mão desses elementos para tocar em aspectos latentes do sestro da transexualidade. Tia Encarna, com a idade de 178 anos, é a existência paradoxal utilizada para ilustrar o abominável panorama de que as travestis latino-americanas têm uma expectativa de vida de 30 anos. Outra personagem, Nadía, “a sétima filha homem de sua família que, nas noites de lua cheia, se converte em lobiscate”, faz referência ao doloroso e estigmatizado rito de transmudação do corpo. Ao passo que María, a Muda, a jovem que começa a notar penas brotarem da pele, expressa o simbolismo da liberdade, da mudança em pássaro para se livrar das amarras e do preconceito social, tal qual a escritora trans que se projeta para o mundo pela força da sua arte, ou a personagem Valentín, de O beijo da mulher-aranha, de Manuel Puig, que, encarcerada, acalenta um ideal de ganhar o mundo, despendendo-se das teias de um sistema que exila aqueles que, mesmos livres, se diferenciam pela condição sexual.

Passado sem encantamento
Operar sob os véus da fantasia, no entanto, está longe de ser uma dissimulação para a contundência dos mecanismos que regulam a vida coletiva, punindo as condutas consideradas clandestinas e delinquentes, excluindo os desviantes da ordem e da moralidade. A exploração do suprarreal leva o fato para um nível de apreensão mais amplo, evidenciando os catalisadores de conjunturas tão disparatadas que transcendem a normalidade — aqui, a Justiça, a Igreja, a Família. “As travestis padecem mais além da morte os olhares dos curiosos, os interrogatórios da polícia, os cochichos dos vizinhos sobre o sangue ainda morno e cremoso que unta a cama”, aponta.

Talvez por isso, nos acessos ao próprio passado, a narradora se depare com uma lucidez mais profunda e, menos vibrante e magnética, sua voz adquire o tom de quem se sabe parte central de uma história pesarosa que, mesmo ficcionalizada, não consegue totalmente desnaturalizar. São crônicas de uma vida dupla moldada pelo medo do pai violento e conservador, pelo estupro que definiu a perda da inocência e por uma juventude assombrada por temores e inseguranças, por um desejo inquietante de “demonstrar que era possível prescindir de quase tudo que disseram ser imprescindível”. Em meio a essa rotina de repressões, o único alento era o ritual de se travestir com as roupas da mãe, as maquiagens velhas das primas e o perfume furtado da farmácia, espelhando-se na figura de Cris Miró, a primeira vedete travesti da Argentina a aparecer na televisão e a ser aceita pelos meios de comunicação. No futuro, ao se recordar do menino incapaz de traduzir o que passava dentro de si, a personagem se dá conta de que o desconcerto causado pela aparição de Miró determinou seu destino. O reconhecimento naquela que se colocava à mostra, quando o habitual era se esconder; que se tornou emblema na luta pelo direito de existir.

O parque das irmãs magníficas é, em resumo, uma celebração da resistência. Porém, constituído de uma estrutura multifacetada, que pode ser lida como o testemunho de uma vida, a radiografia de um grupo, uma fábula ou uma narrativa de terror — às vezes, uma cornucópia; às vezes, uma caixa de Pandora. Villada mescla atmosferas e cores, sabendo comover e indignar ao se valer de recortes da realidade para trazer a lume as tragédias vinculadas ao cotidiano das personagens que aborda, ao converter seus dramas pessoais em elementos subjetivos para transmitir mensagens coletivas. É combativo e encantador. Uma leitura marcante como um choro de bebê que ecoa pela noite fria e, se não for identificado e acolhido, só mostra como nos tornamos seres desprezíveis e irracionais.

O parque das irmãs magníficas
Camila Sosa Villada
Trad.: Joca Reiners Terron
Tusquets
208 págs.
Camila Sosa Villada
Nasceu em 1982, em La Falda (Argentina). Formou-se em Comunicação Social e Teatro na Universidade Nacional de Córdoba. Em 2009, como atriz, estreou seu primeiro espetáculo, Carnes tolendas, retrato escénico de un travesti. Em meio a diversos trabalhos nos palcos, no cinema e na televisão, passou a dedicar-se à escrita. É autora do livro de poemas La novia de Sandro, do ensaio El viaje inútil e dos romances Tesis sobre una domesticación e O parque das irmãs magníficas, que, em 2020, recebeu o prêmio Sor Juana Inés de la Cruz, da Feira Internacional do Livro de Guadalajara (México).
Sérgio Tavares

Nasceu em 1978. É autor de Cavala, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, publicado em Portugal com o título Equação sobre o abismo. Também publicou Queda da própria altura, antologia finalista do Prêmio Brasília de Literatura. Alguns dos seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês, o espanhol e o tâmil. Escreve sobre literatura brasileira e hispano-americana para jornais e revistas, além de editar o site A Nova Crítica.

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