As ruas de Drummond

Como a geografia urbana do Rio de Janeiro permeia a obra de Carlos Drummond de Andrade
Ilustração: Tereza Yamashita
24/02/2016

O quinto poema do primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade, Alguma poesia (1930), se chama Construção. Nele lemos: “O sorveteiro corta a rua”. No oitavo, Lanterna mágica, o poeta atravessa várias cidades; a sétima é — pela primeira vez — o Rio de Janeiro: “Meu coração vai molemente dentro do táxi” — portanto, em situação de travessia urbana. O poema seguinte é A rua diferente, com o registro das rápidas transformações da paisagem: “Na minha rua estão cortando árvores/ botando trilhos/ construindo casas”. Encontramos ainda nesse livro de estreia Coração numeroso — “Foi no Rio./ Eu passava na Avenida quase meia-noite” — e Moça e soldado — “Meus olhos espiam/ a rua que passa”: relações incidentais com o espaço urbano.

Será na outra ponta de sua obra, já próxima ao fim, que Drummond vai declarar o amor mais explícito à cidade do Rio de Janeiro, e tornar esse espaço geográfico-social não referência de ocasião, mas o núcleo do texto. Refiro-me aos poemas Retrato de uma cidade e Elegia carioca, do livro (de 1977) Discurso de primavera.

Mas nem sempre a cidade é solar e festiva. Existe um Rio de solidão, em A bruxa (de José, 1942): “Nesta cidade do Rio,/ de dois milhões de habitantes,/ estou sozinho no quarto,/ estou sozinho na América”, e um Rio de desconforto, em A flor e a náusea (de A rosa do povo, 1945): “Vomitar esse tédio sobre a cidade”.

Gostaria, porém, de propor a leitura de duas ruas não nomeadas, presentes em dois textos de forte carga simbólica: um deles, muito conhecido, é a Canção amiga, de Novos poemas, 1948. Outro é o bem menos famoso Paredão, de Menino antigo (1973). Referem-se a ruas, que apontam, todavia, para sentidos e sentimentos bem distintos.

Atravessemos a rua universal da Canção amiga, mas, antes, contextualizemos o texto.

Depois da poesia bélica, engajada de A rosa do povo, e com o término da Segunda Guerra Mundial, nasceu certa esperança na paz universal, com a derrocada do nazifascismo. Esperança que logo se frustraria com o advento da chamada Guerra Fria. Muitos falam da passagem brusca do Drummond combativo de A rosa do povo, de 1945, para o Drummond “alienado” de Claro enigma, 1951, pleno de especulações genealógicas e metafísicas, caracterizado pelo cultivo das formas fixas e dos versos metricamente regulares.

Mas há um elo perdido, uma transição entre as fases. São os Novos poemas. Apenas 12, alguns deles obras-primas. Certos textos prolongam o clima engajado do livro anterior: A Federico García Lorca, Notícias de Espanha. Há um soneto, Jardim, em decassílabos perfeitos, sem rima. O último poema se chama O enigma, em prenúncio ao Claro enigma. A Canção amiga é um texto-ponte na oscilação entre formas livres de 1945 e desejo de regularidade, métrica e estrófica de 1951. Compõe-se de quatro quadras, o que remete à regularidade, e de um terceto, que a desfaz. Não apresenta rima. Os versos iniciais de cada estrofe contabilizam sete sílabas — simetria; os seguintes transitam entre sete e nove.

A seu modo, a Canção amiga não deixa de ser um texto engajado. Costumamos associar o engajamento apenas à palavra em combate; aqui, o discurso também se engaja, mas num projeto de desarmamento e paz.

Canção amiga

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me veem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

A seu modo, a Canção amiga não deixa de ser um texto engajado. Costumamos associar o engajamento apenas à palavra em combate; aqui, o discurso também se engaja, mas num projeto de desarmamento e paz.

O presente do indicativo é absoluto em quase todo o poema, exprimindo uma ação que não cessa: eu preparo agora e preparo sempre. O presente é a expressão temporal daquilo que não quer se extinguir.

Na primeira estrofe o poeta opta por elaborar uma canção, uma vez que a linguagem da música independe de fronteiras para ser apreciada. Ele sai do particular (“minha mãe”) para logo atingir o coletivo de “todas as mães” — não por caso, com o pronome indefinido, a fim de que nenhuma fique excluída. Em “fale como dois olhos” elabora uma sinestesia auditivo-visual: assim como o som, a imagem é universal. Um paquistanês e um boliviano, mesmo que não se entendam linguisticamente, podem compartilhar sensações parecidas diante de um quadro ou de uma canção.

Na segunda estrofe, mesmo movimento centrífugo: o poeta parte do específico (“uma rua”) que desemboca no genérico (“muitos países”). Novamente comparecem o visual (“vejo”) e o auditivo (“saúdo”), mas sob o impulso da generosidade ato generoso, no gesto que se faz sem cobrança de retribuição, como pura dádiva: “Se não me veem, eu vejo”. O eu também se desloca da esfera consanguínea (a mãe, a família) para o espaço social da amizade. E “amiga”, adjetivo no título, se concretiza no substantivo “amigos”.

A ideia de doação sem demanda de retorno abre a estrofe 3: “Eu distribuo um segredo” — no compasso reiterado desse passar do mundo íntimo (o segredo) ao público (segredo distribuído), na esperança de um espaço onde essas fronteiras se diluíssem. Os “dois carinhos” inserem o componente tátil, após o visual e o auditivo, em dimensão ainda mais íntima e acolhedora, pois tanto o visual quanto o auditivo poderiam ocorrer mesmo com os corpos afastados. Em “dois carinhos se procuram”, pela primeira vez o outro responde, doando-se em reciprocidade .

A convocação da alteridade é alimentada pelo desejo de congraçá-la numa unidade maior. É o que se lê na estrofe 4:

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

A primeira pessoa do singular (“minha”) logo cede o passo à primeira do plural (“nossas”), e ambas se soldam na imagem unificada do diamante: que agrega os atributos da solidez (o mais duro mineral), do valor (pedra preciosa), da limpidez, da transparência. A seguir, uma talvez involuntária, mas muito bela, descrição do ofício de um poeta: “Aprendi novas palavras/ e tornei outras mais belas”. Ressalta-se que a palavra vem sempre de um outro: o poeta é um perpétuo aprendiz, não cria do nada; devolve à comunidade as palavras que dela recebeu — mas as restitui banhadas de beleza, como um carvão subitamente transformado em diamante.

Na estrofe derradeira torna-se mais explícito o apelo ecumênico:

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

Homens, todos, para além das mães, dos amigos, dos amantes. Há uma nítida oposição complementar entre “acordar os homens” — inseri-los na possibilidade de um mundo real e solidário, para o qual estão de olhos fechados — e “adormecer as crianças” — permitir que elas possam continuar a sonhar. Nesse quadro o verso 2 injeta um suplemento de sentido: “acordar”, além de “despertar”, significa “colocar em acordo”, “harmonizar”, com o radical “cor”, de “coração” , e de que temos exemplo em “acorde” musical, ou no adjetivo “acorde”.

Por fim, uma feliz coincidência: Milton Nascimento musicou o poema e em 1978 gravou a Canção amiga num vinil cujo título é Clube da esquina nº 2. Clube remete a associação, consórcio e “esquina” traduz o encontro de duas vias; no jeito mais natural, duas ruas se procuraram, ambas oriundas de Minas.

Passemos, agora, ao espaço opressivo de Paredão. O poema, conforme dissemos, integra o livro Menino antigo, de 1973, memórias em verso de Drummond, que se ocupa, maciçamente, dos tempos de infância.

Paredão

Uma cidade toda paredão.
Paredão em volta das casas.
Em volta, paredão, das almas.
O paredão dos precipícios.
O paredão familial.

Ruas feitas de paredão.
O paredão é a própria rua,
onde passar ou não passar
é a mesma forma de prisão.

Paredão de umidade e sombra,
sem uma fresta para a vida.
A canivete perfurá-lo,
a unha, a dente, a bofetão?
Se do outro lado existe apenas
outro, mais outro, paredão?

O título se estampa com o sufixo aumentativo “(“ão”). Se casarão é uma casa ampliada, paredão não é exatamente uma parede com mania de grandeza: além do tamanho, releva o fato de ser algo deslocado do interior da habitação para uma área limítrofe do externo. Atua como barreira, inviabiliza e invisibiliza o acesso ao dentro, na contramão da transparência da Canção amiga.

Quanto à forma, porém, algo da Canção ecoa no Paredão: a convivência entre regularidade e desvio. Predominam versos brancos, mas há alguns rimados. As estrofes têm número próximo, mas não idêntico, de versos (5-4-6). Catorze versos são octossílabos, mas existe um decassílabo, a impedir a simetria perfeita — exatamente o que abre o poema.

Nesta leitura, tentarei pôr em evidência o processo da isomorfia, isto é, a correspondência entre forma e sentido: a materialidade do poema em diálogo com aquilo que o conteúdo declara. Retomemos a primeira estrofe:

Uma cidade toda paredão.
Paredão em volta das casas.
Em volta, paredão, das almas.
O paredão dos precipícios.
O paredão familial.

O verso 1 apresenta uma espécie de síntese — a cidade-paredão — que a seguir se desdobra, ou se demonstra em camadas: paredão das casas — espaço fora das pessoas; almas — dentro; precipícios — fora; familial — dentro. E ainda: paredão das casas — concreto; das almas, abstrato; dos precipícios — concreto; familial — abstrato. Para isolar ainda mais os homens, todos estão enclausurados não só semanticamente pelos paredões, mas graficamente pela presença de um ponto no fim de cada linha.

A sensação de emparedamento é intensificada não por algo presente na estrofe, mas pela ausência de uma categoria: o verbo, que implicaria ação; sem ele, reina a imobilidade. Dez dos 15 versos do poema não contêm nenhum verbo. Em duas das três ocasiões em que surgem flexionados, o sujeito, ironicamente, não é o homem, mas o próprio paredão (v.7; vs. 14-15). Nas demais ocorrências, os verbos que poderiam indicar movimento, resistência — passar, perfurar — vêm “congelados” no infinitivo impessoal, isto é, sinalizam ações potenciais, mas sem que ninguém a esteja deflagrando. Portanto, a isomorfia aí se estabelece: o conteúdo opressivo da paralisia é manifesto na forma do texto pela quase ausência da categoria gramatical (o verbo) que remete à ação. Outro exemplo de isomorfia é a utilização gráfica do signo “paredão”. Ele vai murando a própria estrofe, cercando-a no fim (verso 1), no começo (verso 2) e no meio (verso 3).

Algo similar ocorre na estrofe 2:

Ruas feitas de paredão.
O paredão é a própria rua,
onde passar ou não passar
é a mesma forma de prisão.

As ruas ocupam o começo do verso 1 e o epílogo do verso 2, mas suas duas extremidades encontram-se bloqueadas pelo paredão: quando ela principia, o paredão a interrompe no fim (verso 1), e, quando ela termina, (verso 2), o paredão já a bloqueava no início. Tal informação não é veiculada pelo conteúdo, mas pela forma do texto; para captá-la, não basta ler o poema, é preciso também vê-lo em sua espessa materialidade. Entre as pontas das ruas, a presença intransponível do paredão. E a primeira rima do poema (paredão/prisão), reforça, pela identidade fônica, a identidade semântica ou sinonímica entre ambos os vocábulos.

Na estrofe final,

Paredão de umidade e sombra,
sem uma fresta para a vida.
A canivete perfurá-lo,
a unha, a dente, a bofetão?
Se do outro lado existe apenas
outro, mais outro, paredão?

percebe-se que a palavra “paredão” bloqueia os pontos extremos do primeiro e do último versos, para que nada ou ninguém dele escape. O miolo da estrofe relata as inúteis tentativas de libertação.

Descrito, no verso 1, como espaço de “umidade e sombra”, o paredão prolonga a ideia de prisão, advinda da estrofe anterior. Tal espaço de sombra opressora é o oposto do brilho e da luz diamantina da Canção amiga. Os versos 3 e 4 — “a canivete perfurá-lo/ a unha, a dente, a bofetão” — revelam a inutilidade do esforço humano, pela desproporção entre o objetivo — a derrubada — e os parcos recursos para empreendê-la. “Agredido”, o paredão responde com sua infinita capacidade de autopropagar-se. Nos versos finais, surge, no “outro lado”, uma imagem multiplicada em abismo, em que paredões emparedam outros paredões, inviabilizando, desse modo, qualquer “fresta para a vida” — vida que, no poema de 1948, pulsava numa rua livre e universal , capaz de simultaneamente acolher o trabalho dos homens e o sonho das crianças.

Por isso, neste poema de impasse, no meio do caminho tinha um paredão. E no outro, poema de esperança, no meio do caminho tinha uma canção.

Antonio Carlos Secchin

É poeta, ensaísta, professor emérito da UFRJ e membro da ABL. Em 2017 publicou Desdizer, poesia reunida, editada em Portugal no ano seguinte. Seu livro Percursos da poesia brasileira, do século XVIII ao XXI ganhou o prêmio da APCA para melhor livro de ensaios publicado no país em 2018.

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