As mulheres e a guerra

"O pomar das almas perdidas" narra a vida de três gerações de mulheres durante a ditadura na Somália
Nadifa Mohamed, autora de “O pomar das almas perdidas”
27/05/2016

Em Três guinéus, livro escrito em 1936 no qual Virginia Woolf reflete sobre a participação das mulheres na guerra, a autora afirma que “homens fazem a guerra. Homens (em sua maioria) gostam de guerra, pois para eles existe ‘uma glória, uma necessidade, uma satisfação em lutar’ que as mulheres (em sua maioria) não sentem ou não desfrutam”.

Se a guerra é um jogo de homens, como a história tem nos mostrado ser, as mulheres há muito são as maiores vítimas de suas disputas. As narrativas que versam sobre a guerra, seja observando a glória do vencedor, seja no lamento dos que perderam, poucas vezes abordam o sofrimento das mulheres, que se torna ainda maior em situações de conflito e independentemente a qual lado pertençam. Seus corpos são o palco dessas disputas por poder, a violência sexual passa a ser uma arma de guerra que tem por objetivo humilhar e destruir a “honra” dos homens e das famílias, corroborando a ideia de que as mulheres são propriedade de alguém. Nos cenários de guerra, frequentemente a voz das mulheres é silenciada e invisibilizada, e elas mesmas são soterradas em sua própria dor.

Ainda que essas histórias de violência continuem a existir, no romance O pomar das almas perdidas, a africana Nadifa Mohamed dá voz a algumas dessas mulheres em plena guerra civil na Somália, nos anos 1980, trazendo a perspectiva feminina para narrar o encontro de três mulheres em um contexto de guerra. Mas o que se retrata aqui não são os eventos bárbaros que prontamente imaginamos ao falarmos em guerra, e sim a violência cotidiana contra as mulheres que certamente acontece em qualquer lugar do mundo. Nesse sentido, o romance amplia as possibilidades de reflexão sobre o assunto, que consegue ser apresentado com uma linguagem por vezes poética, capaz de construir imagens belas e sensíveis a partir de um cenário em ruínas.

As protagonistas do romance são de três gerações e classes sociais diferentes vivendo sob o regime ditatorial. Deqo, Kawsar e Filsan são as três protagonistas deste romance que fala das muitas perdas sofridas por essas mulheres e de todas as violências que fazem parte dos seus dias. É por trazer a perspectiva feminina, criando personagens complexas que tentam compreender seus próprios sentimentos e ações e demonstram capacidade de agência, que o romance de Nadifa Mohamed se engrandece.

Aos nove anos, Deqo é uma menina nascida em um campo de refugiados. Abandonada pela mãe logo após o nascimento, desde cedo aprendeu a cuidar de si mesma. Contando com a boa vontade de algumas pessoas que trabalhavam no campo de refugiados, ela consegue sobreviver, mas o que mais deseja é uma família, além de compreender por que a mãe a deixou. Com a promessa de que vai ganhar um par de sapatos, artigo muito desejado para quem perambula pelas ruas diariamente em busca de comida, Deqo aceita dançar na festa de aniversário da revolução que colocara no poder uma ditadura militar, apesar de não compreender por que as pessoas vivem brigando ou o que de fato acontece ali. Para ela, difícil mesmo é viver no campo de refugiados, sem família, sem comida e sem perspectivas. Diante do estádio repleto de pessoas, a menina se desconcentra e erra a coreografia da dança, sendo punida por isso.

Enquanto o país mergulha em uma sangrenta guerra civil, o destino de três mulheres se encontra demonstrando a violência que afeta todas as mulheres, independentemente de classe social, idade, etnia ou posição ideológica.

Grande encenação
Kawsar é uma mulher de quase sessenta anos, viúva de um policial respeitado e em luto pela morte da filha adolescente que lutou contra o regime junto aos demais estudantes e não sobreviveu aos traumas vividos na prisão. Por ter dinheiro, vive em condições um pouco melhores que as demais mulheres da vizinhança, que se ajudam e se apoiam constantemente, mas todas são obrigadas a participar da festa de aniversário da revolução no estádio da cidade, já que seriam presas caso se negassem a celebrar o ditador, pois “ele precisa de mulheres que o façam parecer humano”. Toda a cena da festa é uma grande encenação, a falta de liberdade e a repressão do que é viver em um regime ditatorial ficam evidentes.

É verdade: elas são idênticas, só que Maryam tem vinte e poucos anos, Zahra está na faixa dos quarenta, Dahabo e Kawsar quase chegando aos sessenta, e a pobre Fadumo é uma encurvada com mais de setenta. Parecem ilustrações de um livro didático, todas iguais nas mesmas roupas, com apenas algumas rugas no rosto ou as costas curvadas para marcar a idade. É desse jeito que o governo parece querê-las — cartuns sorridentes sem nenhuma exigência nem necessidade própria. Agora esses cartuns ganharam vida — não arando a terra, tecendo ou trabalhando em uma fábrica como nas notas de xelim, mas marchando penosamente para uma celebração a que são obrigados a comparecer.

Filsan é uma jovem soldado, filha de pai militar, que tem se dedicado unicamente à sua carreira no exército, algo no qual acredita, certamente por influência do pai, de quem sempre quis conquistar aprovação. Apesar de sua competência, a vida no exército não é fácil para uma mulher, dado o sexismo que ainda predomina nas instituições militares. Filsan sente raiva a cada vez que os colegas a provocam com comentários insinuantes ou olham para o seu corpo como se isso fosse a única coisa que existisse. Apesar de estar em uma situação de poder diante de Deqo e Kawsar, logo percebemos que Filsan também está sujeita às mesmas violências de gênero, sendo desrespeitada em seu trabalho, pelo seu pai em sua família, e seu “poder” é apenas um poder emprestado, pois está sempre em posição subalterna. A raiva que ela extravasa de forma violenta em diversas situações é reflexo dessas violências contidas e silenciadas ao longo de sua vida. Apesar disso, sua solidão revela o quanto ela também já sofreu com suas perdas.

As três mulheres se encontram no dia da festa da revolução no estádio em Hargeisa, onde grande parte do romance é ambientado. Ao ver Deqo ser espancada pelos policiais por ter errado a dança em homenagem ao ditador, Kawsar decide intervir, pois viu na cena “um momento de verdade dentro de uma ficção”. Mesmo correndo riscos, ela decide fazer o que julga certo, já que Deqo era apenas uma criança em pânico diante da multidão. Então ela é presa por Filsan, a jovem soldado que assusta as demais pela agressividade que demonstra. Esse encontro afetará a vida das três personagens, cada uma apresentada separadamente no segundo capítulo, e elas só se reencontram no capítulo final e de forma surpreendente.

São muitas as violências contra as mulheres retratadas por Nadifa Mohamed em O pomar das almas perdidas. Para citar apenas dois exemplos, podemos considerar a violência que logo cedo as meninas passam a temer (por serem mais suscetíveis do que os homens no campo de refugiados) e também a violência que Kawsar relata sobre a mutilação genital feminina, realizada ainda na infância, algo frequente e reproduzido sob a máscara da tradição mesmo nos dias de hoje, que afeta para sempre a saúde e a sexualidade da mulher. No entanto, é o pomar que resiste em meio ao caos da guerra, transformando as dores em novos frutos, o melhor símbolo para a história construída por esta jovem escritora. Mais do que um livro sobre a vida em um regime militar, O pomar das almas perdidas é uma obra tocante sobre a condição feminina.

O pomar das almas perdidas
Nadifa Mohamed
Trad.: Otacílio Nunes
Tordesilhas
296 págs.
Nadifa Mohamed
Nasceu em Hargeisa, Somália, em 1981, e foi educada no Reino Unido. Estudou história e política no St. Hilda’s College, Oxford. Atualmente, mora em Londres. Seu primeiro livro, Black Mamba Boy (ainda sem tradução no Brasil), foi publicado em 2010. Foi eleita pela Granta uma das melhores jovens escritoras britânicas em 2013.
Paula Dutra

É professora, tradutora e doutora em Literatura pela UnB.

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