O breve romance Juventude sem Deus, de Ödön von Horváth, é uma pérola da literatura alemã. Um livro poderoso, que revela a luta moral de um indivíduo contra um regime opressivo e contra a perda da ética e dos valores. Horváth elege a figura de um professor secundário como alter ego para oferecer (a todos que leram a obra antes e depois da Segunda Guerra) a consciência do ambiente onde a propaganda e a ideologia nazistas destruíram gerações.
A história é narrada em primeira pessoa pelo mestre, que percebe a crescente perda de seus alunos para o nazismo, e fica chocado com a indiferença e a crueldade que começam a se manifestar nas atitudes desses jovens.
O professor, que inicialmente tenta evitar conflitos, começa a questionar suas próprias crenças e sua responsabilidade moral diante do que observa. A narrativa marca a crítica incisiva ao totalitarismo e à educação para fins ideológicos.
Felicidade é sempre bom, penso comigo, e saudável você é, graças a Deus! Bato na madeira. Mas contentamento? Não, contente, na verdade, não estou. Mas afinal ninguém está.
Por isso, este romance nos inquieta: parece escrito hoje, como uma distopia contemporânea da sociedade globalizada em que vivemos e que, neste anos, se debruça pesadamente sobre ideologia semelhante.
Juventude sem Deus é narrado em primeira pessoa pelo jovem professor do liceu para apresentar a ascensão do nazismo na Alemanha no alvorecer da guerra. Quando o escreveu, em 1937, Horváth já tinha perdido a esperança de que o nacional-socialismo (Nazi Partei) fosse uma onda ideológica passageira. E assim também pensa seu protagonista, cujas confissões revelam grande remorso. De quê? De várias de suas ações, sobretudo a de não se contrapor o bastante como docente e como cidadão.
Desenvolvida com ótimos diálogos (o autor era dramaturgo premiado), a obra pode ser vista como uma alegoria da culpa de quem — mesmo sem o querer — acaba apoiando, por indolência e covardia, os contextos ideológicos criminosos já disseminados nas cabeças dos adolescentes. O que lemos é o seu sofrimento, seus erros, temperados com a análise aguda dos antagonistas.
Que estes rapazes neguem tudo que me é sagrado nem é o pior. O pior é como o fazem, ou seja, sem o menor conhecimento. O pior ainda é que não queiram aprender! Odeiam o pensamento.
O tom da discordância ideológica (e pedagógica) se e amplia, chega ao ápice no confronto do mestre com a escola, com alunos e com a mídia, e é enfático sobre a propaganda, amplificada pelo rádio ( hoje a internet?) , cujas asseverações citará:
Justo é aquilo que beneficia o próprio clã, diz o rádio. O que não nos faz bem é injusto. Tudo é permitido, portanto, o assassinato, o roubo, os incêndios, o perjúrio — e não é só permitido: não existe crime quando ele é cometido no interesse do próprio clã! O que é isso?
Como ler esta obra sem pensar no que vivemos hoje? O “rádio” do professor se amplia para estes anos vinte do século 21, que também elege, sacrifica, cancela e mitifica. O sucesso da persuasão do regime é exemplar no início do texto, na frase da redação de um aluno, a qual o mestre deseja repreender.
“Todos os negros são traiçoeiros, covardes e vagabundos”, escreve um aluno na redação. “Generalização absurda”, pensa o mestre. Mas, em vez do confronto, se limita, a observar apenas: “Os negros também são seres humanos”. Como confessa:
Deixo a frase intacta, porque aquilo que é dito no rádio professor nenhum pode corrigir no caderno do aluno.
Esse é o regime, porém há algo mais: a juventude hitlerista ariana e suas famílias se mostram impenetráveis ao diálogo.
A afirmação tímida do mestre foi contada ao pai pelo aluno; o pai a leva com indignação ao diretor, que adverte o professor; este será o estopim da crise e do desligamento vindouro do mestre.
O que a obra traz do ponto de vista do tempo narrativo é uma análise posterior aos fatos (e feita pelo narrador no silêncio da escrita), o que mostra mais intensa e duradoura a desumanização daquela sociedade. É também, portanto, um livro de memória deste narrador. Nós, leitores, pensaremos como pensa o mestre depois de todos os acontecimentos que o levaram a desistir, mas a escrever.
Já em desgaste na escola, o professor acompanha seus alunos a um acampamento — na verdade, uma espécie de treinamento militar, numa aldeia na floresta, como exigia a inspetoria escolar. Lá conviveu com os meninos, viu-os procurar garotas da mesma idade; e foi lá que ocorreu um crime, no qual o docente foi indiretamente envolvido. A repercussão do fato exigiu, claro, e a presença da mídia, que publicará:
Um de nossos colaboradores esteve hoje de manhã no liceu (…) e fez (ao professor) uma pergunta de graves implicações: poderia o crime ter suas raízes em certo embrutecimento da juventude? O professor negou peremptoriamente. A juventude atual, declarou ele, não estaria embrutecida, mas seria antes, e graças a uma regeneração generalizada, bastante consciente de seus deveres, propensa à abnegação e absolutamente patriótica. (grifo meu)
Como ele próprio teria absorvido a retórica da propaganda nazista? Ao longo da leitura, o leitor se torna de certo modo um instrumento da culpa e expiação. A cada ponto, nós o julgamos, nos sentimos menos solidários com este narrador por falsidades e cinismo. A certo ponto, diz ele:
Quem tem de lidar com criminosos e tolos precisa agir como os criminosos e tolos, do contrário perecerá.
Catarse? Em útlima instância, claro, é a voz do autor que acusa. Sobrevivente dos fatos e da demissão, o mestre encontrará paz junto aos negros odiados por Hitler, que ele defendera tão timidamente.
Amanhã parto para a África. (…) O promotor arquivou o processo contra mim. (…) Junte toda a bagagem, não se esqueça de nada! Não deixe nada para trás. O negro a caminho dos negros.
É assim, com o negro — como um dos representantes simbólicos da certeza criminosa de superioridade nazista — que a obra começa e termina.
Emerge da leitura a desconcertante simplicidade com que Horváth narra o alvorecer da maior tragédia da humanidade até hoje. Que, aliás, foi muito bem traduzida para o português pelo experiente Sergio Tellaroli. Que venham outras traduções de Horváth.
Mesmo lembrando que um resenhista não deve, com sua análise, tentar melhorar a obra, devo dizer que ler este pequeno romance é incontornável. E vale a pena encerrar com a frase do grande Edmond Wilson sobre o romance: “Horváth torna a verdade irresistível”. o Joseph RJoseph