Escrevo esta resenha durante o carnaval. As fantasias dos foliões pelas ruas se embaralham com minhas reflexões a respeito de literariedade e redundância da palavra poética escrita, não resisto ao desejo de verter ao português um poema de Morgenstern (Artifícios dos trajes) que sintetiza com humor minhas pungentes indagações linguísticas:
A palavra, que em si nada é afinal,
Se prepara pra a farsa do carnaval.
Ele ergueu, o esperto peralta,
O topete como uma torre alta.
Ela disfarçou os quadris delgados
Com fabulosos bastos babados.
O baile foi um festival pleno de surpresa.
O próprio rei se admirava: “Que beleza!”
Ao efêmero fausto, porém, novo dia sobrevém:
Arrastam-se de volta aos barracos dois pobres zés-ninguém.
O poema (Toilettenkünste) estende-se em interlocuções literárias, tanto com as ambiguidades ficcionais pelo carnaval de Veneza na novela Princesa Brambilla, de E. T. A. Hoffmann, como com a filosofia da linguagem de Fritz Mauthner, a quem o poema é dedicado. Ao analisar a obra de Morgenstern e compará-la com as colocações de Mauthner, o crítico literário austríaco Leo Spitzer faz notar que, se em alguns poemas de Morgenstern os objetos e animais refutam seus nomes, rebelam-se contra as designações, Mauthner se contrapõe ao fetiche das palavras. Esse último, cuja seleção da obra, O avesso das palavras, foi publicada pela Editora 34 recentemente, adverte em Contribuições a uma crítica da linguagem, contra o enrijecimento da língua. Cada degrau que serve de apoio na ascensão ao pensamento crítico, deve ser logo descartado, uma vez que a linguagem é viva. É uma imagem que se assemelha àquela da escada do filósofo Ludwig Wittgenstein, pela qual se escala mas que em seguida deve ser trespassada. Questionamentos sobre o substancialismo e o antropomorfismo da linguagem estão igualmente manifestos na Carta de Lord Chandos, de Hugo von Hofmannsthal, escritor da mesma geração, um texto que já foi várias vezes traduzido ao português e faz parte do repertório do leitor brasileiro.
Eis, portanto, a evidência de que a poesia de Christian Morgenstern estava em diálogo com o pensamento que identificava uma crise da linguagem que lhe era contemporânea. Mas o pensamento e a poesia seguem nos inquietando.
Panorama
Jogo da forca proporciona um panorama da recepção de Morgenstern no Brasil, na medida em que sistematiza um material que se encontrava disperso. Há entre os pesquisadores uma série de tentativas de compendiar os projetos de tradução literária do alemão ao português, é uma satisfação ilustrá-lo com essa iniciativa bem-sucedida, que certamente trará insumos a outras da mesma natureza. Samuel Titan Jr. — organizador de Jogo da forca — conta que, desde que herdou do pai o livrinho Canções da forca, ele volta e meia se deparava com uma e outra tradução esparsa, bem como com menções feitas nos anos 1930 por estrangeiros recém-instalados no Brasil, ensaios críticos vibrantes de autoria de intelectuais distintos, um texto puxa o outro, até que se deu conta do valioso material que tinha em mãos, compreendendo um arco temporal de muitas décadas. Eram ensaios de Haroldo de Campos, Flora Süssekind, Sebastião Uchoa Leite, Arnold Rosenfeld, traduções isoladas de Roberto Schwarz, Paulo Mendes Campos, Rubens Rodrigues Torres Filho, Augusto de Campos, Ricardo Domeneck. Foi a partir daí que surgiu a ideia de apresentar a fortuna brasileira da poesia de Morgenstern.
O título do primeiro livro desse poeta — Galgenlieder [Canções da forca], 1905 — alude a uma excursão que ele fez em companhia de amigos ao Galgenberg [Monte da forca], topônimo de extraordinária acepção da qual o jovem se apropriou para alinhavar seus poemas impregnados dos tons de humor e horror. Esses primeiros poemas de humor grotesco, tanto Canções da forca como Palmström, logo lhe conferiram renome e até hoje justificam sua posição bem particular como referência do humor criativo e refinado na literatura de língua alemã. Seu temperamento mundano se transformou quando ele se voltou mais às leituras de Nietzsche, Kierkegaard e Meister Eckhart. Além disso, ele se tornou um aficionado adepto da antroposofia de Rudolf Steiner, e essa filosofia marcou sua lírica posterior.
Através do poema Gingganz, cuja tradução (de Montez Magno) a seguir consta de Jogo da forca, é possível acompanhar um dos procedimentos de Morgenstern em suas criações poéticas, que consiste em chamar a atenção para os elementos constituintes dos substantivos compostos, frequentes no idioma alemão.
Uma bota e o seu criado seguem
de Leipzig em direção a Dresden.
De repente, sem menos nem mais,
a bota ordena: “Descalce-me, rapaz!”
O criado reage: “Não é possível, porém
diga-me, patrão, descalçar a quem?”
A bota estanca, perturbada a cuca:
“É verdade, pela Santa Nepomuca,
eu andavatoda fora de mim…
Você sabe, eu fiquei assim
desde que perdi o meu senhor..”.
O criado ergue os braços com estupor,
como quem diz: “E agora, o que faço?”.
E os dois prosseguem passo a passo.
O substantivo composto (Kompositum) “Stiefelknecht” permite a operação de se desmembrar a palavra e dar destaque às respectivas parcelas. O livro informa, aliás, que outros já tinham atentado à anedota inerente nesse substantivo composto — o tira-botas ou a descalçadeira — transforma-se em duas figuras: a bota (Stiefel) e o criado ou servo (Knecht). A bota e o servo caminham juntos e entabulam uma conversa estapafúrdia que remete à semântica da descalçadeira. Considerando que o sentido funcional do objeto geralmente assoma em primeiro plano, o cômico grotesco deriva nesse caso da literalidade morfológica.
Com referência a outro procedimento, o das combinações sonoras no poema Das große Lalulã [O grande Lalulã], numa carta de 1911, Morgenstern esclarece a uma leitora que não se trata de “Un-Sinn” (besteira) ou “Ohne-Sinn” (nonsense), antes de uma dedicação prazerosa, muito comum no dia a dia das crianças, mas que os adultos todavia esqueceram, como esquecem tanta coisa e, por isso, quando se deparam com elas configuradas esteticamente, só são capazes de enxergá-las como bizarras.
Não obstante o relevo de Morgenstern para as gerações posteriores, certamente foram outros os motivos que levaram os dadaístas a se aplicarem à composição de poemas sonoros. As composições dadaístas, para além do movimento estilístico em termos da subversão sintática e semântica e do enfrentamento específico com a linguagem enrijecida, pautava-se pelo significante crítico (“luminous detail”, diria Ezra Pound).
Seja como for, a maioria dos poemas de Morgenstern representa considerável desafio ao processo de tradução, os jogos de palavras, as alusões cifradas numa estrutura gramatical de lógica diferente dificultam principalmente a tradução do seu humor, e assim Jogo da forca estabelece um marco literário do gênero.
Sim, há um precioso terreno de veia cômica na literatura de expressão alemã. Às vezes é subestimado, tendo em vista que a academia se inclina à seriedade. Talvez se deva, tenta entender Odo von Marquard [Exílio do riso], ao fato de que o cômico é “algo com que não conseguimos lidar, e certamente não através da teoria”. Ou, como o humorista Robert Gernhardt dizia, o humor genuíno se expressa melhor pela barriga, não pela cabeça. Gernhardt, F. W. Bernstein e outros editavam a revista satírica Pardon (1962-1982) que surgiu para se confrontar com a arbitrária sisudez da Era Adenauer. A marca registrada da Pardon foi concebida pelo caricaturista F. K. Waechter: o capetinha erguendo o chapéu-coco num aceno irônico. É o humor cáustico autocrítico, crítico dos fatos e das figuras em voga, ou simplesmente o humor irreverente profanando severas gramáticas, que nos leva às risadas diante dos livros de Wilhelm Busch, Christian Morgenstern, Joachim Ringelnatz, Kurt Schwitters, Kurt Tucholsky e Karl Valentin!