A terra da letra

Os poemas de "O mistério de haver olhos", de Luciana Eastwood Romagnolli, cavam fundo em busca de novos sentidos para a vida
Luciana Eastwood Romagnolli, autora de “O mistério de haver olhos”
01/09/2021

Entro no livro O mistério de haver olhos, de Luciana Eastwood Romagnolli, por um dos poemas mais complexos e reveladores de uma estética sedenta por artificializar gestos em direção à vida:

cavo a terra da letra
atrás do verme que lá mora
até que o sentido morra 

de ver-me ao fundo da cova
abre-se a fenda narcísica
por onde vaza a metafísica

A letra como tempo-espaço de reconquista da espessura da vida. A poesia como lugar de estar. Não para fugir ao que dói, antes, para tomar de novo nas mãos algum sentido no mundo precário assombrado pela morte. Para isso, Luciana cava fundo. Não apenas a terra ou a letra, mas talvez, principalmente, a carne de uma memória que precisa ser rearticulada.

A rearticulação em poesia muitas vezes se alcança com a recomposição da palavra — quando não com sua decomposição. Mas o gesto dessa poeta parece ser ainda outro.

Olhar para si, como numa “fenda narcísica”, é como haver-se com o verme que já comeu corpos amados. Ter de sentir o gosto da terra “sob a relva” é trabalhar entre os dentes as palavras com que dizer de novo algo que valha a pena, que fissure o estado sem sentido criativo das coisas. Para que este, estagnado em ausências, se mova, é preciso novamente um olho atento às coisas esdrúxulas, como as duas proparoxítonas que estabelecem a música final no poema (“narcísica”, “metafísica”). O eu lírico precisa se fazer meio de vazão a algum sentido suportável; e isso pode estar, sim, na vida ordinária.

Em meio à escolha poética de reavivar palavras para rearticular sentidos de si, Luciana Romagnolli mais chama a atenção para a composição das palavras do que para sua decomposição. Não se trata de rearranjá-las para compor novos sentidos, e sim de fazer ver de novo como elas já são, como quem aponta mais uma vez para o patético da vida. Patético no sentido que Drummond oferece naquele incontornável poema O elefante.

É como pronunciar mais lentamente as palavras para que percebamos o modo como elas foram construídas.

Escreve a autora: “sobre o pó/ a perda/ in-di-(vi)-sí-vel” (importante enfatizar que, no livro, a sílaba “(vi)” está grafada em fonte mais apagada). Este verso nos convida a ver a palavra dentro da palavra, bem como o quanto as duas fundem um sentido mais amplo para a perda da poeta. Essas ausências são difíceis de dizer e de separar. Não se pode dizer, nem se afastar.

Alguém ainda poderia recorrer àquele lugar comum: não cabe em palavras. Mas é justamente aí que Luciana opera, ela faz caber em palavras. Ao dizer lentamente a composição “indivisível”, suspendendo a sílaba “vi”, ela aproveita a sonoridade da condensação vocabular e encontra o instrumento para dizer a dolorosa dimensão da perda. É o inefável/indelével. E por ser indelével, sempre estará dito.

Vejamos outro poema:

[(h)a+d(e)+ver-s(-e)]-ativa

Sim, esse é o poema. Fora das suspensões dos parênteses a poeta nos conduz a pensar no que se opõe; algo adversativo, como uma conjunção, por exemplo. No entanto, se lermos os parênteses junto com o que não está suspenso, temos a composição “há de ver-se ativa”, que parece ser o gesto de reação dessa voz poética que quer seguir adiante, apesar das dores e da perda.

Mais do que isso, esse poema está escrito como se fosse uma expressão matemática, com colchetes, além dos parênteses, e sinais de soma e subtração. O curioso é que geralmente tomamos como lugar comum a assertiva de que a matemática nos leva à exatidão, porém, aqui, a matemática do poema parece provocar o efeito contrário, ou seja, adversativo. Talvez o que esteja sendo dito é a exata contradição da vida. É contraditória a ideia de se ver ativa diante da desilusão da ausência, no entanto, é também a equação a ser assumida.

Hesitações propulsoras
O livro está dividido em seis partes: eu me precipito no caos; esse excesso de realidade me confunde; se desmorono ou se edifico; essa coleção de objetos de não amor; se permaneço ou me desfaço e viver é impreciso. Respectivamente, a queda diante da morte, a tormenta, a cicatriz a ser trabalhada, a imprecisão da retomada, o incerto da vida. São hesitações, sim. Mas de quem se atira ainda pra frente. De quem não sucumbe na estagnação.

O verso que nomeia o livro, “o mistério de haver olhos” (uma redondilha maior), aparece ao fim do primeiro poema da última série, viver é impreciso. A série dialoga, claro, com o poema de Fernando Pessoa. Para o poeta do desassossego, viver não é preciso, criar, sim. É o que faz Luciana Romagnolli nesse livro de estreia, cria a imprecisão da vida para não ser devastada por ela:

a devastação chegou com o assombro
desconhecida aos olhos espelhos
da mãe a devastação
no mistério dos seus-meus olhos
o mistério de haver olhos

A chegada de um filho não como solução, afinal, na junção dos olhos, os do filho fitos nos da mãe, não há revelação ou resposta, mas sim mistério. Entretanto, é justamente daí, do mistério, da imprecisão, da incerteza, enfim, que vem a força e a criatividade para não sucumbir. O olho do filho e o da mãe ressignificam os versos do poeta português. Não se trata de não ser preciso, antes, trata-se de ser incerto. Porém, preciso.

Sexo como resposta
O mistério de haver olhos é um livro espelho, narciso, sem ser egótico. É livro de esparramar o eu. De reassombrar-se com o vida. De espelhar-se no olho do outro, de misturar os espelhos. De reencontrar o desejo.

do oco do mundo
do cu do mundo
bota o desejo
de novo
ovo

No reencontro com o desejo, mais ao fim do livro, Luciana traça poemas de espessura erótica libertadora que parecem substituir o risco do precipício pelo da precipitação do risco na pele, no papel, no corpo — “a travessia/ mero traço/ sem razão” ou “eis a ética/ contra o mundo plano/ mover-se em rodopios/ uma prática/ de arrepios”.

O regime de sensualidade em que a poeta inscreve o corpo, sua matriz de sentido, faz operar um corpo libidinoso político, “a tontura como estética/ antiterraplanista”. Ou seja, o sexo como resposta não apenas à dor pessoal, mas também à desolação de uma tormenta histórica. E esse corpo ético libidinoso com que os poemas se inscrevem no encerramento do livro se amplia nas ilustrações que a própria autora assina. Indício de que a poeta

pôs-se ali
linha a linha
corpo contra
página vazia
a riscar-se

Novamente a ambiguidade no nível fonético grita pra gente que o risco no poema pode ser o risco da vida.

O mistério de haver olhos
Luciana Eastwood Romagnolli
Quintal Edições
127 págs.
Luciana Eastwood Romagnolli
Formada em publicidade, trabalhou com jornalismo cultural e hoje se dedica à curadoria de teatro. O mistério de haver olhos é seu livro de estreia na poesia. Vive em Belo Horizonte (MG).
Cristiano de Sales

É poeta e professor de literatura brasileira da UTFPR. Autor de De silêncios e demoras (2020) e Urgências que não são (2021).

Rascunho