À sombra de um fantasma

"Um prefácio para Olívia Guerra", de Liana Ferraz, aborda nuances da relação entre a filha e a mãe suicida
Liana Ferraz, autora de “Um prefácio para Olívia Guerra”
01/12/2023

O mesmo suicídio que separa uma menina de oito anos de sua mãe é o que dá origem a um novo fenômeno da literatura brasileira, aos poucos transformado em ícone cult com direito a canecas, frases de efeito, camisetas e debates intelectualizados sobre seu legado e o quanto suas metáforas se tornam ainda mais elegantes à luz da semiótica.

A morte em questão funciona como ponto de partida e de chegada de Um prefácio para Olívia Guerra, romance de estreia de Liana Ferraz. No enredo, Maristela, filha de uma poeta considerada genial por críticos e acadêmicos e editores, é convidada a escrever o prefácio de mais uma das obras póstumas da mãe.

A tarefa, no entanto, não é das mais simples. Maristela já está exausta de viver à sombra de um fantasma, em meio a leitores que a enxergam como uma espécie de continuação da mãe e a editores dispostos a lucrar ao máximo com as palavras escritas pela autora já falecida.

Além disso, Maristela lida com a memória de uma Olívia Guerra que poucos conhecem: calada, emocionalmente distante, triste e, acima de tudo, mãe. Assim, a intimidade dessa personagem é revelada pouco a pouco, por meio de bilhetes e recordações da filha e cartas e poesias escritas pela mãe.

Na condição de narradora, Maristela proporciona aos leitores a oportunidade de conhecer Olívia Guerra para além do mito, sem que para isso tenha que se render às pressões da espetacularização. Sua perspectiva, aliás, caminha na contramão disso, ao se aproximar do tom confessional, com frases curtas, silêncios constantes, fugas malsucedidas e explosões arrebatadoras.

Ao longo da narrativa, seus comportamentos denunciam o luto não vivido e a dificuldade em se desvincular da figura materna, ao mesmo tempo que evidenciam o desejo de se afastar do espectro que tenta reduzi-la ao nada.

Muito disso vem do meio literário, com editores em busca de escritos inéditos, repórteres que querem extrair novas aspas repletas de sofrimento, críticos que competem entre si e leitores que buscam se sentir íntimos da escritora pop da vez (ainda que ela esteja morta). Todos esses aspectos são muito bem representados ao longo de todo o romance, com uma charmosa e assertiva acidez.

Introspecção
No entanto, o que mais se destaca na prosa de Liana Ferraz é sua linguagem madura, poética e precisa. A autora apresenta uma trama introspectiva e capaz de se sustentar muito bem a partir de pensamentos e sentimentos que beiram o existencialismo e assumem um papel mais importante (e até mesmo mais interessante) que as ações.

A estrutura do texto também chama a atenção, com letras minúsculas, frases que se quebram quando necessário e bom uso de elementos da diagramação, como negrito, itálico e tamanhos variados de fonte. Liana Ferraz, inclusive, utiliza muito bem esses recursos, ao priorizar o que faz sentido na trama ao invés de simplesmente fazer escolhas conceituais aleatórias.

Também há metalinguagem e movimento impulsionado pelo raro lirismo de quem se propõe a escolher cuidadosamente as palavras e deixá-las livres, seja para flutuar ou se jogar da sacada.

Mãe e filha
E por falar em sacada, embora Maristela rejeite traços associados à mãe, é nesse espaço que ela lida com o tormento contínuo. Além de a sacada do apartamento lembrar o suicídio de Olívia, ela insiste em convidar a filha para que também salte. Na maioria das vezes, o pensamento é prontamente afastado, mas em outras a personagem parece desejar a coragem necessária para atender ao chamado.

A protagonista também vivencia uma rotina em que o silêncio não é conforto, mas sim desgaste. Funciona como muro para relações ou justificativas para o que é cômodo. Foi assim durante seu casamento com Cacá, relação que começou por acaso e se estendeu exclusivamente pela falta de fôlego para o rompimento.

Também há o silêncio do irmão mais velho, um homem de quase cinquenta anos que ainda vive com a avó, numa situação de dependência que se apoia na sensação de abandono vivenciada por ele desde quando a mãe era viva. O irmão evita Maristela de todas as formas e se vê à parte de tudo que envolve Olívia Guerra, desde sua vida pessoal até sua obra literária.

Em contraposição ao silêncio, Maristela já não tem energia para lidar com a figura emblemática da mãe. Por isso, assume — para si mesma e para uma repórter — que não considera tão boa a poesia escrita por Olívia. O posicionamento causa estranheza e levanta dúvida a respeito de sua motivação: a crítica se baseia em seu gosto pessoal enquanto leitora ou funciona como objeto de transferência de uma raiva reprimida?

Há indícios para ambas as possibilidades, mas acertadamente Liana Ferraz não se preocupa em oferecer respostas prontas. Afinal, seu romance caminha por temas complexos e repletos de subjetividade, como luto, suicídio, relações familiares, identidade e até mesmo mercado editorial.

Mortos que escrevem
O livro ainda aborda de forma sensível incômodos comuns vivenciados por pessoas que seguem vinculadas a artistas já falecidos. A leitura, inclusive, me remeteu a uma entrevista de Alice Ruiz, na qual ela relata seu desgaste com jornalistas que insistem em direcionar suas perguntas a temas ligados a Paulo Leminski, escritor com quem a autora foi casada.

O incômodo, evidentemente, não vem apenas pelos desdobramentos sensíveis que o tema da saudade pode provocar, mas, sobretudo, porque muitos desses repórteres ignoram a vasta e relevante produção literária da escritora e a enxergam exclusivamente como a viúva de Paulo Leminski.

Em meio a essa importante discussão, Um prefácio para Olívia Guerra traz vivos que falam e mortos que escrevem em uma delicada história sobre partidas abruptas, cicatrizes ainda abertas e busca por identidade. Não por acaso, o romance de estreia de Liana Ferraz se prova uma obra literária sensível, crítica e capaz de ecoar por muito tempo além daquele dedicado à leitura.

Um prefácio para Olívia Guerra
Liana Ferraz
HarperCollins
192 págs.
Liana Ferraz
Nascida em Bragança Paulista (SP), em 1982. è escritora e atriz. Publicou três livros, sendo o mais recente o de poesias Sede de me beber inteira (Planeta, 2022). É doutora em Artes Cênicas pela Unicamp e pós-doutora pela USP. Um prefácio para Olívia Guerra é seu romance de estreia.
Bruno Inácio

É jornalista e escritor. Autor de Desprazeres existenciais em colapso (contos) e Desemprego e outras heresias (romance)

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