A peça jamais vista

Além de poeta e compositor, Renato Russo foi também dramaturgo; por 30 anos, ninguém soube
Ilustração: Igor Oliver
26/05/2018

Vamos aos fatos: em setembro de 1982, Renato Manfredini Jr., aos 22 anos, escreveu uma peça de teatro — A verdadeira desorganização do desespero. Comentou com alguns amigos, tacou e trancou uma cópia na gaveta e presenteou duas pessoas, até onde se saiba, com um exemplar.

Nos anos seguintes, como a história nos conta, ele abriu mão do Manfredini, assumiu o Russo e se tornou uma das figuras mais importantes da música brasileira. À frente da Legião Urbana e em carreira solo, vendeu 25 milhões de discos e passou a responder pela alcunha de “poeta do rock nacional”. Pois o poeta era também dramaturgo, e, só a partir de 2012, a informação chegou ao público por meio deste que vos escreve.

Naquele ano, um amigo próximo e ex-amante de Renato, que havia sido um dos privilegiados a receber uma cópia, confiou ao jornal onde eu trabalhava um exemplar, movido pela “responsabilidade” de levar a informação adiante. “Já pensou se eu morro e ninguém sabe disso? São 30 anos com essas folhas. Passou da hora”, contou-me no instante. Meu instinto inicial foi recorrer à família e amigos próximos, que confirmaram a informação. De fato, Renato havia escrito uma peça de 39 páginas, embora tanto a minha cópia como a da família tivessem apenas 37 páginas. “Essas duas páginas sumiram, perderam-se com o tempo”, comentou à época Carmem Manfredini, irmã de Renato.

Pois localizei a destinatária da segunda cópia original, uma antiga amiga de classe de Renato que se mudou para os Estados Unidos há anos. Ela tinha as duas páginas, o que gerou uma catarse na família, até então detentora de um exemplar incompleto. Claro que todo esse drama e essa trama renderam extensa reportagem. Mas minha relação com aquele material transgrediu o ofício jornalístico e me carregou para o meio acadêmico, mais especificamente para a pós-graduação do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília (UnB). Hoje, ali, esmiúço cada uma daquelas 39 páginas e pesquiso toda a dramaturgia que circula em torno da obra e da pessoa de Renato Russo. É a primeira vez que o lado cênico de Renato aparece sob a investigação de uma dissertação ou tese. O lado musical, como não poderia deixar de ser, embalou alguns bons pesquisadores país afora, assim como o lado poético e literário (que talvez até interesse mais aos leitores do Rascunho). Mas a faceta teatral ainda permanecia intocada.

Uma das provocações da pesquisa, conduzida sob orientação do professor, diretor de teatro e amigo de Renato, Fernando Villar, é justamente jogar luz sobre as lições da esfera cênica que o líder da Legião Urbana pode nos trazer. Principalmente, no que diz respeito à metateatralidade. Em poucas palavras, a peça releva uma grande brincadeira sobre o próprio teatro. Nos moldes de Pirandello e seus “seis personagens à procura de um autor”, Renato nos apresenta personagens à procura de uma plateia, de um diretor, de um desfecho. Personagens dispostos a debater o próprio papel no enredo e, consequentemente, todo o processo em torno da peça. Não de uma terceira peça, mas daquela peça em si. A metalinguagem como convite para desnudar o processo dramatúrgico. E lá estão figuras como Robert, Vulcão, Oceano, Coro e Plateia dialogando entre si, debatendo a presença do público e questionando as funções do teatro.

E seria um desperdício, acredito, não me fazer valer dessa ferramenta ou artifício que Renato suscita ao ter a oportunidade de escrever para um jornal literário. Assim como seria improvável que esta pesquisa chegasse até aqui senão por meio de alguém com uma relação pessoal e de carinho com Renato. Por isso, convido a querida Carmela a terminar este texto e, já munido de provocações metalinguísticas, peço ao editor que apresente as palavras dela em itálico, de forma a diferenciá-las das minhas.

Se o Diego começou este texto, sem medo algum, fazendo uso de um clichê preguiçoso (“Vamos aos fatos…”), imagino que nada me impeça de fazer o mesmo. Pois começo dizendo que nada é por acaso. E não foi à toa que esse lado teatral de Renato chegou aos jornais ou ao meio acadêmico.

Claro que o nome de Renato costuma ser o bastante para gerar interesse, mas anos debruçados sobre o mesmo material e dias e noites dedicados a uma peça já pedem algo que transgrida a paixão efêmera e invada camadas mais viscerais.

Ou você acha que o impacto que Diego sentiu ao escutar “Meninos e meninas” pela primeira vez não tem nada a ver com isso? Ou você acha que o fato de Renato Russo ter sido professor na Cultura Inglesa, exatamente na mesma unidade onde Diego lecionou também não traz provocações? Ou ainda que foi ele (Renato) a inaugurar o auditório daquela filial como ator, em 1979,

Diego Ponce de Leon

Carioca, foi professor por mais de uma década. No Correio Braziliense, escreve para o caderno de Cultura, além de ser crítico de teatro e colunista do periódico.

Rascunho