A história se repete

O princípio trágico da ambiguidade e da incerteza das ações humanas dá o tom de “Uma orquestra de minorias”, de Chigozie Obioma
Chigozie Obioma, autor de “Uma orquestra de minorias”
01/09/2020

Narradores insólitos não são raros na literatura. Desde o seu início. No início da Ilíada, Homero pede que a musa cante, ele é apenas o “cavalo” da divindade. Mas nem sempre o narrador da história é tão ilustre: em O vendedor de passados, de José Eduardo Agualusa, quem conta a história é uma osga (lagartixa). O narrador inicial de O som e a fúria de Faulkner é um deficiente mental. Em um dos seus romances mais célebres, não posso contar qual, Agatha Christie faz o próprio assassino dar conta do que se passou, coisa que o leitor só descobre, obviamente, no final. Às vezes um narrador nem tão incomum, como uma criança, torna o livro mais divertido e também mais assustador, como no ótimo Festa no covil, de Juan Pablo Villalobos. Mas devo confessar que não estava preparado para o narrador de Uma orquestra de minorias, do nigeriano Chigozie Obioma.

Obioma, jovem e premiado autor, atualmente professor na Universidade de Nebraska—Lincoln, escreveu este segundo romance cercado de expectativas depois do sucesso na estreia com Os pescadores. O novo livro é uma espécie de longo depoimento de uma testemunha-chave em um tribunal. Acontece que a testemunha, que também é um advogado de defesa, é um chi. Obioma é um igbo — etnia com língua, cultura, tradições e uma cosmologia própria. Nesta, um chi é um espírito guardião da pessoa, que por ele é chamada de seu hospedeiro. As relações entre o chi e seu hospedeiro são curiosas e complexas. O hospedeiro tem também uma alma que de certa forma se confunde com ele. O chi, ao contrário, goza de certa independência. Em momentos importantes, ou somente por curiosidade, o chi pode sair do corpo do seu hospedeiro para tentar descobrir algo ou até mesmo para falar com o chi de outra pessoa, sempre tentando fazer o melhor possível.

O chi não pode obrigar seu hospedeiro a fazer algo, não pode nem mesmo haver comunicação direta entre os dois. Mas pode soprar ideias, plantar imagens, sugerir formas de ação. O chi se vale de sua experiência por vezes milenar, pois já encarnou em centenas de homens. Mesmo assim, por vezes o hospedeiro toma decisões que o chi sabe serem perigosas ou até mesmo nefastas. Nesse momento, se a consciência do hospedeiro, última defesa, não se manifestar, o caminho é sem volta. O chi que nos conta a história está em Eluigwe, “terra da luz eterna” diante do deus supremo, “criador de tudo”, Chukwu. Foi até ali para tentar explicar o motivo das insensatas ações de seu hospedeiro, chamado Chinonso. Normalmente, este testemunho diante do deus maior só ocorreria depois da morte do hospedeiro, permitindo que ele fosse residir na moradia dos antepassados. Mas o que o chi de Chinonso tenta demonstrar é que o mal cometido por este não foi proposital.

Incidente e tragédia
O chi que narra a história está ligado a um homem bom e humilde, um “garoto de aldeia”, como sua namorada o chama certa vez. Depois da morte dos pais, ele herda uma granja onde cuida afetuosamente de seus galos e galinhas. Um único incidente muda sua vida para sempre: vê uma mulher prestes a se suicidar jogando-se de uma ponte. Consegue convencê-la a não tirar a própria vida e depois Chinonso segue seu caminho. Ela o procura. Uma linda mulher, chamada Ndali. Logo se apaixonam, apesar das diferenças: ela é formada, estudou no exterior, fala a língua do Homem Branco fluentemente e vem de uma família muito abastada.

A primeira parte do livro é um pouco no estilo Romeu e Julieta: a família de Ndali não aceita Chinonso e faz de tudo para que ele se afaste. Chinonso avalia que o principal obstáculo é a sua falta de escolaridade. Encontra um velho amigo de escola, Jamike, que diz ser fácil estudar e obter um diploma no Chipre do Norte, terra que descreve em tons paradisíacos. Sem que Ndali o pedisse, pelo contrário, Chinonso vende tudo, inclusive suas amadas aves, para financiar seus estudos. Aqui, termina a primeira parte.

A segunda é uma tragédia anunciada: nada dá certo no Chipre, onde nosso herói vive seu inferno. A terceira e última parte conta o retorno de um alquebrado Chinonso à sua cidade, disposto a reconquistar o amor de Ndali anos depois de terem perdido o contato. Todavia, como diz o seu chi logo nas primeiras páginas: “É um fenômeno normal na espécie humana tentar mudar a ordem das coisas: tentar trazer de volta o que já passou. Mas nunca dá certo, nunca.” Ao buscar o impossível, o antes bom homem irá incorrer em um crime gravíssimo, levando o chi do atormentado Chinonso a se apresentar diante de Chukwu para o depoimento-defesa a favor do seu hospedeiro.

Sabedoria ancestral
O espírito-guardião desse homem tão infeliz é um narrador privilegiado. Imaginem: ele lê todos os pensamentos, escuta a consciência do hospedeiro e ainda percebe de que forma suas intervenções impactam na alma de Chinonso. Apesar disso, o chi não pode prever nada. Mas pode conversar com o chi de outra pessoa e até mesmo tentar influenciá-lo ou sondá-lo acerca das intenções de outro hospedeiro em relação ao seu. Com isso, não temos somente uma narrativa do que aconteceu, mas temos um acesso às forças que operam na mente de Chinonso, o que concede uma profundidade emocional envolvente à história. Com toda a sua experiência, tendo sido o espírito-guardião de diversos tipos de pessoas, escravizados por exemplo, o chi vai reconhecendo com certa tristeza e resignação alguns sentimentos e atitudes dos humanos que desembocam em erros e sofrimentos. Depois de tentar demover seu hospedeiro de certas ideias, só lhe resta repetir o que parece ser seu mantra: “Já vi isso muitas vezes”.

Claro que o romance, sobretudo na segunda parte, aborda o preconceito contra o negro e a brutal injustiça de tratamento derivada daí. Chinonso sofre isso na própria carne. O enorme abismo entre ricos e pobres também aparece. E há um retrato muito bem feito da Nigéria: a música, o comércio nas ruas, o caos urbano e a presença cada vez mais forte da religião protestante. Mas isso é o cenário. Muito bem delineado, vivo e imaginativo, mas apenas cenário. O livro não é sobre isso.

A sabedoria dos ancestrais é a todo momento mencionada no livro sob a forma de provérbios como “os antigos pais dizem que o deus que criou a coceira também deu ao homem o dedo para coçar”. Mas talvez o principal deles seja: “Os veneráveis pais de antigamente diziam que o amanhã está grávido e ninguém sabe o que irá nascer”. Aqui, igbos e gregos antigos decerto estariam de acordo. O princípio trágico da ambiguidade e da incerteza das ações humanas se faz presente com toda a força. Ao contrário do herói cristão, que sofre para expiar sua culpa, seus pecados, encarnado no amigo-algoz-amigo Jamike, Chinonso é um herói trágico, que nada fez de errado para que se abatesse sobre ele uma avalanche de desgraças, uma emboscada do destino.

Homem Branco
Embora discursos pedagógicos ou engajados estejam totalmente ausentes do livro, que flui feito um rio caudaloso de imagens, há uma questão que o atravessa do início ao fim: a chegada do Homem Branco e as transformações decorrentes disso. Obioma herda as preocupações de outro autor nigeriano e igbo, o notável Chinua Achebe. Em O mundo se despedaça (1958), de Achebe, a história de Okonkwo serve para demarcar o processo de desaparecimento de tradições com a entrada da religião cristã e dos colonizadores. Chinonso, vivendo quase isolado do mundo em sua granja, cuidando dos seus animais, que ele defende dos gaviões usando um estilingue, é uma espécie de sobrevivente involuntário de uma forma de vida que não existe mais. Não tem televisão e, embora saiba falar inglês, ele prefere a língua “dos antigos pais”. Ndali o aceita como ele é, na verdade, mais do que isso, gosta dele por sua ingenuidade e pureza. Quando sua família rejeita fortemente seu namorado, ela vem viver com Chinonso e passa a ajudá-lo a cuidar das galinhas. É ele que insiste em se modernizar, é ele que não se acha à altura dela. Desconhecia o próprio valor. Podemos dizer que a tragédia de Chinonso simboliza a tragédia da Nigéria e da África como um todo ao abandonar suas próprias tradições.

O livro vai além dessa questão. O problema central é o sofrimento humano, é a condição humana, que atravessa diversos contextos históricos, como o chi do protagonista percebe claramente. Neste sentido, o título é expressivo e seu sentido é indubitável. “Orquestra”, aqui, diz respeito a um coro, que nas palavras de Ndali canta “uma canção coordenada, como as entoadas em cerimônias fúnebres”. Mas “minorias”, na verdade, é um termo enganoso, oprimidos talvez fosse mais claro: “Todos os que foram acorrentados e espancados, cujas terras foram saqueadas, cujas civilizações foram destruídas, que foram calados, estuprados, envergonhados e mortos. Agora ele partilhava um destino comum a todas essas pessoas”.

Como diz o sábio chi da personagem central: “Tudo continua, seguindo em frente como folhas velhas no rio do tempo”. Esse provérbio igbo, de sabor tão heraclitiano, talvez nos dê esperanças de que um dia cesse a canção entoada pela Orquestra de minorias.

Uma orquestra de minorias
Chigozie Obioma
Trad.: Claudio Carina
Globo Livros
456 págs.
Chigozie Obioma
Nasceu na Nigéria, em 1986. Seu romance de estréia, Os pescadores (2015), foi bem acolhido pela crítica e concorreu ao Man Booker Prize daquele ano. Houve quem o chamasse de “herdeiro de Chinua Achebe”, que alguns consideram como o pai da literatura africana. Uma orquestra de minorias, de 2018, levou-o a ser novamente indicado ao Man Booker Prize. Tendo residido no Chipre e na Turquia, atualmente vive nos Estados Unidos, onde é professor na Universidade de Nebraska.
Marcos Alvito

Professor alforriado da universidade, dedica-se a oferecer cursos livres de literatura e ao Urucuia, podcast voltado para ajudar a ler Grande sertão: veredas, sua paixão maior.

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