A festa do intelecto

Resenha de “Vozes”, de Ana Luísa Amaral
Ana Luísa Amaral, autora de “Vozes”
06/01/2014

Sob o selo editorial da Iluminuras, Ana Luísa Amaral acrescentou, em 2013, seu mais recente volume de poemas às livrarias brasileiras (trazido a lume em Portugal, pela Dom Quixote, dois anos antes). Com experiência nas variadas latitudes do terreno literário — ensino, tradução, ficção, teatro —, a autora publica Vozes, seu décimo quarto livro de poemas, ratificando sua posição de destaque na lírica portuguesa contemporânea. A edição traz, ainda, um posfácio de razoável fôlego assinado por Vinicius Dantas, no qual se analisam os variados vieses temáticos e formais da escritora.

Obra dividida em seis blocos com diversidade temática, mas interligados por considerável isotopia formal, Vozes revela notável vigor meditativo, em que a escrita cosmogônica e a inquisição etiológica se irmanam, devolvendo ao poético sua função de interrogar o mundo. Vivências agudas, como certa fobia aeronáutica, sempre elevam o tom reflexivo: “E será que o seu último/ juízo/ foi de paz/ e profunda alegria// antes de derreter/ as suas asas/ e tombar cá do alto/ para o sólido/ e carinhoso chão?”. Se, em decorrência dos topoi, o trecho é micrologicamente de mediana tensão, ganha interesse na inversão da matriz mítica e na indagação que remete à hipótese camusiana do Sísifo em júbilo. O poema (Do ar: apontamentos) finaliza com a antítese cômica e inevitável do viajante em pânico: “O medo/ ou a alegria/ que o chão traz”.

O expediente paródico sobre a tradição mítica, aliás, revela-se freqüente na escritura de Ana Luísa Amaral. Em Estados da matéria, Cupido perde o poder persuasivo e o amor, sem correspondência, realiza-se apenas na utopia poética: “Eros caiu sozinho de cansaço/ de tanto tempo se encostar ao verso e não a ti”. Do mesmo modo, a lacuna amorosa do famoso poema camoniano, que já traz sua parcela significativa de clamor, potencializa-se e põe o amante vizinho do assassinato ou do suicídio: “Nem é essa que dói e não se sente,/ mas ferida a bramir fúrias de razão […]// […]E chegam os punhais, os comprimidos, sonha-se a veia a rebentar em cor”. Nesse caso, a paródia se vislumbra no subtítulo “variações”, confirmado inclusive pela alteração da forma fixa do soneto de Camões. Em outro momento, numa flagrante reescrita da versão consolidada, Inês de Castro esquiva-se ao seu destino e, no futuro, ganha um retrato pouco ideal e mais humanizado. Agora habitante de tempos modernos, subtrai a surdez da velhice com um “aparelho mal sintonizado” e o desinteresse pelos assuntos de Pedro, por seu entediado novelo verbal, gera-lhe um descuido de Penélope desencantada: “mas também é vasto o sono/ e o tricô de palavras do marido/ escorrega-lhe, dolente, dos joelhos […]”. Talvez por isso a voz poética já houvesse dito, ajustando Bocage, que as angústias de uma vida efervescente — “maligno dragão, cruel harpia” — valem mais do que qualquer modorra afetiva: “Se a escolha é entre tu e harpas (ou santo),/ Prefiro o teu maligno e cruel canto,/E à paz celeste as garras afiadas”.

Toda essa remissão ao mundo, porém, vem filtrada pela inquisição sobre a linguagem, sobre a caixa acústica do texto. Leitmotiv da obra, evidenciado no título, a reflexão metalingüística suspende qualquer fé incondicional no verbo: palavras dizem pouco e desnorteiam mais, como o trocadilho seguinte aponta: “palavras// que não chegam/ — mas cegam”. O interlúdio da poesia com seus próprios meios constitutivos chega a expor, em forma de diálogo de namorados, o timbre fechado das Vozes de Amaral. Quando o cavaleiro de Trovas da memória fala reiteradamente dos infernos (sem que um referente claro se ofereça), sua interlocutora e par idílico devolve com ironia: “Não sei de que inferno/ faláveis ali,/ não era decerto/ o inferno daqui”. No dueto, o canto órfico do apaixonado quer retirar a amada do papel, fazê-la carne: convertê-la de musa utópica em amante de fato, ao que ela resiste o quanto pode. A hesitação feminina desliza pela dicção melódica e lembra, em muito, o Choro bandido de Chico Buarque e Edu Lobo (“e eis que, menos sábios do que antes, os seus lábios ofegantes hão de se entregar assim…”).

A metalinguagem, mais adiante, cumpre novamente seu papel: “Já sei o que faço:/ baralho-vos rimas, métricas e tudo./ Volto à redondilha/ à língua que é minha”, diz o poeta. O retorno à redondilha indica a recusa do palaciano (a língua inglesa, o acento francês, em que vinha discursando) e segue o desejo do viver popular e camponês, a que a métrica remete. A seção “Escrito à régua” reforça tal linguagem auto-especulativa e com anseios de geometria, que o objeto evoca. Nesse instante, Ana Luísa pretende “ancorar o sentir/ em instrumento certo e/ objetivo”: trata-se da ordenação do difuso, de uma paixão medida drummondiana, do fixar vertigens de Rimbaud. Sob o signo da alta modernidade, o teor construtivista é tear da poesia.

Intervalo fascinante
Ao investir seu texto de elementos que sinalizam o gênero — como a melopéia evidente na recorrência de bilabiais, nas aliterações (ainda que discretas) e na imagem à margem do ciclo literário —, a autora certamente produz poesia lírica. Todavia, poderíamos situar a linguagem de Ana Luísa Amaral, sua comunicabilidade mediata, na senda contemporânea do lirismo hermético, de “transparência impossível”, para usar a feliz expressão de Fábio Andrade. Ou seja, está mais próxima do verso denso e opaco de René Char do que do confessionalismo translúcido de Musset. Uma breve amostra da poética de Amaral podemos ler em A vitória de Samotrácia: seus poemas em tom condicional servem de obstáculo à “cabeça ausente” e, também, à “prosódia mediterrânica, jubilosa, ardente, leopardo musical”.

Como podemos observar, imagens de acentuada plasticidade, como a do felino sonoro, pronunciam-se em Vozes, porém traçadas em sintaxe igualmente desfamiliar e que exige do leitor permanente atenção estética. Dando idéia da capacidade que Ana Luísa Amaral tem de reimantar o mundo corriqueiro, o poema Biografia (curtíssima) denota a aquisição da experiência não com a metáfora da pedra que se vai polindo até a escultura, mas com a imagem de uma pedestre cebola que se descama, em acidez minguante. Um beijo amoroso “de vez em quando/ cumpria uma cebola”, caía uma casca, uma decepção. Mais adiante, lemos que há “vestidos por tirar,/ camadas por cumprir”, o que sinaliza, já de saída, a densidade imagética da autora. Em compósita analogia, a figura sugere a inocência por perder (veio erótico), mas também os sonhos por largar.

Muitas vezes, as comparações se elaboram por elipse e expandem a imaginação com similitudes quase sem filiação. Aqui, por exemplo, a parede em pó convoca os dedos (imagem literalmente palpável e, por que não dizer, erótica), como o verbo entrópico pede a expressão: “O granulado/ Da parede agora/ A evocar um toque, palavras/ Enroladas/ Sob a língua, / Desejos de falar”. E na clave da subtração elíptica, a pauta de Ana Luísa parece uma pausa em fermata — o que, naturalmente, é pura aparência. Noturnal, desatraindo o som faz pensar nessa caminhada rumo ao silêncio: o poema semelha saboreio verbal, texto sem evento. Mas a gata aguarda a dona insone, que não resiste àquele olhar de lâmina e convite. O mais curioso é que, à medida que a noite avança e a sedução se encorpa, a quintilha inicial vai minguando ao dístico de quem adormece — ou ama (a ambigüidade do substantivo “gata” põe o sentido em suspensão). Isso, todavia, é mero exemplo do quanto o intelecto, em Ana Luísa Amaral, é indispensável à recusa do excesso que defrauda, em favor do intervalo que fascina.

Por tantas razões, Vozes — lava transfigurada em lavor — oferece, mais uma vez, uma poesia que agrega ao prazer estético um horizonte claramente pedagógico. Seu leitor, ao encampar o escrutínio do silêncio, sai mais ciente do “gume de espada” a que o texto trivial do mundo serve de bainha. Ana Luísa Amaral guarda a consciência de que a literatura não significa um decalque do mundo. Antes, quer revertê-lo em puro palimpsesto para uma escritura refratária e infinita.

Vozes

Ana Luísa Amaral
Iluminuras
120 págs.
Ana Luísa Amaral
Nasceu em Lisboa, Portugal, em 1956. Professora associada na Faculdade de Letras do Porto, seus livros estão editados em países como França, Suécia, Holanda e Venezuela. Além de poesia, publicou peças teatrais, ficção, literatura infantil e traduções, com foco em Emily Dickinson. Vozes obteve o Prêmio de Poesia António Gedeão.
Peron Rios

É mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco e doutorando em Literaturas Africanas pela Universidade de Lisboa e pela Université Paris III – Sorbonne Nouvelle. Autor do livro A Viagem Infinita: estudos sobre ‘Terra Sonâmbula’, de Mia Couto, é professor de Literatura do Colégio de Aplicação da UFPE.

Rascunho