A escritura da inquietação

Resenha do livro "A cidade devolvida", de xxxxx
Whisner Fraga, autor de “Abismo poente”
01/04/2006

Desde sua estréia com Seres e sombras (1999), seguido pelo premiado Coreografia dos danados (2002), o contista Whisner Fraga vem dando continuidade a um projeto de rastreamento das angústias existenciais. Os contos recentes de A cidade devolvida chamam a atenção para esse jovem autor, engenheiro e professor, mineiro de Ituiutaba, vivendo atualmente no interior de São Paulo.

Em seu novo trabalho, Fraga aprofunda de maneira radical, tanto nos temas, quanto na forma, as inquietações ancestrais, projeções dos desertos interiores de seus personagens. Deparamo-nos com protagonistas vivendo situações-limite, gente que vaga entre as solidões urbanas, os fracassos individuais, a inviabilidade dos relacionamentos desgastados, os dilemas frente às impossibilidades materiais e afetivas e às insolúveis dores espirituais.

O conto que dá título ao livro, por exemplo, é um relato pungente de um personagem estrangeiro em sua própria terra, incapaz de localizar-se no seu território físico, porque perdido em seus labirintos psicológicos, sem um fio de Ariadne que o reconduza à realidade. Acuado pela sua própria vida, não dá mais conta de ultrapassar a simples linha divisória que ele traçou dentro de sua cidade, tudo perdeu o sentido e ele se torna um estranho no ninho social, um ser que perdeu a sociabilidade e vive, intensamente, seu processo de auto-reclusão, no limiar da loucura. É quando descobre o seu abismo e questiona, emergindo, submerso, seu grito de solidão e espanto: “e a cidade? a cidade? a cidade? confusa geografia a me cuspir…”

Esses contos metaforizam a vida contemporânea, seja na urbe ou nos minúsculos, mas vulcânicos escaninhos domésticos, onde reverberam nossas fraquezas. As vísceras expostas da solidão humana, o individualismo, os desajustes sociais, a inadaptabilidade aos fetiches do consumismo, os conflitos familiares e os fracassos coletivos são tratados pelo autor com toda sua carga de tensão. Há uma verdadeira catarse, na tentativa de exorcizar fantasmas pessoais e soltar o grito submerso de uma geração desiludida, que perdeu seus referenciais e não tem mais por que lutar. O vaivém de emoções e desencontros perceptíveis em cada conto retrata uma atmosfera bastante claustrofóbica, mas nem por isso o autor deixa-se seduzir por uma linguagem escatológica. Paradoxalmente, traduz os condicionamentos e a secura do caos moderno mitigando a sua confecção literária com a necessária poesia, não aquela que é fruto das obviedades líricas, mas que nasce do imprevisível, como uma rosa que brota, solitária, e vinga, sozinha, num pântano.

A cidade, com todos os seus labirintos reais e metafísicos ou as projeções delirantes de seus seres, metaforiza a dor e os demônios individuais, encontra eco nesses contos que revelam um autor que procura desnudar as asperezas do quotidiano, ao mesmo tempo em que abre espaço para a ternura. E com isso, cutucando as feridas, dando um soco no estômago ou mergulhando num universo dialético, provoca um susto no leitor e nos instiga a um questionamento sobre a nossa verdadeira condição.

A linguagem agreste, não linear, entremeada de fragmentos, recortada de alusões e citações, interrompida pelo fluxo de consciência, recorrendo ao monólogo interior, resulta de uma fina artesania e reproduz com fidelidade não só a destreza e a versatilidade narrativa do autor, mas acima de tudo o desmantelamento emocional, o desvario e o deslugar de seus personagens no mundo que o cerca.

Sintonizado com as emergências de seu tempo e as demandas da literatura atual, Whisner Fraga consolida seu processo criativo e se insere no rol dos autores que trazem um novo alento à prosa brasileira.

Ronaldo Cagiano

Nasceu em Cataguases (MG). Formado em Direito, está atualmente radicado em Portugal. É autor de Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), O mundo sem explicação (Poesia, Lisboa, 2018), Todos os desertos: e depois? (Contos, 2018) e Cartografia do abismo (Poesia, 2020), entre outros.

Rascunho