Cada um escreve à sua maneira, isso é ponto pacífico; o máximo que podemos, ao tratar de “como escrever”, é compartilhar o que aconteceu no nosso caso.
Abri a primeira portinha dessa toca de coelho nos anos 1990, aos vinte anos. Nas aulas de roteiro cinematográfico, entendi como transformar em história o que girava pela minha mente. Descobri a ficção, ainda não literária.
Os dois primeiros roteiros que escrevi — e que tiveram relativo sucesso na comunidade em que eu caía de paraquedas (o mundinho dos alunos e professores de cinema) — eram fantasias. Ou seja, projeções de angústias e desejos, que tomavam forma de personagens e agiam de forma romanesca — com paixões, ambições, traições, segredos e reviravoltas. Para escrever fantasia, abrimos o alçapão e libertamos nossos espíritos obsessores. Quanto mais neuroses, quanto mais livremente elas se transformarem em cenas e diálogos incômodos, tão mais forte será a ficção.
Um dos roteiros que escrevi, aos dezoito anos, falava de um país governado por uma mulher — uma caminhoneira clássica, no vocabulário sapatão — que se via ameaçada por um candidato da oposição, atlético e atraente, inspirado no Fernando Collor de Mello. Era 1993, fim do mandato de Luiza Erundina como prefeita de São Paulo.
O charmoso concorrente ganhava a eleição, seduzia a esposa da prefeita, e, no clímax desse confronto, descobríamos que ele era um zumbi. Isso porque seu pênis de carne podre se desprendia (ficava preso na vagina), no coito com a mulher alheia.
Eu não tinha, é evidente, nenhuma vivência de zumbis, ou prefeitos, ou jogos de poder. Só projetava meus desejos reprimidos num cenário político que conhecia da TV. Ficou divertido? Sim! O roteiro ganhou menção honrosa num concurso interno da universidade — o que foi uma proeza, para uma caloura.
Provavelmente, eu teria conquistado mais dinheiro e público se seguisse por esse caminho. Horror, neuroses e humor são ingredientes certos para um prato popular. Tipo creme de leite, alho desidratado e Sazón. Porém… como acontece às moças bonitas e assediadas, aos geminianos com ascendente em câncer, ou às crianças tagarelas com pais rígidos… por qual seja o motivo, o sucesso me amedronta.
Há o que conseguimos fazer, e há o que queremos fazer. Muitas vezes queremos o que ainda não conseguimos. E nessa idade me aconteceu querer algo bem difícil: escrever como Tchekhov. Ao abrir a portinha atrás da cortina, na toca do coelho, descobri o livro Minha vida. Esse livro foi, para mim, o país das maravilhas. O drama modesto e contido, sem ornamentos, de aparência autobiográfica — tão “comum” que parecia uma pessoa qualquer contando de sua vida qualquer. Sem golpes de cena.
Por que isso me encantou? Talvez eu estivesse cansada de batalhas familiares. Cansada do esforço para crescer, merecer, aparecer. Sentia uma nostalgia do que é pequeno.
Escrever sobre nada, sem enfeites, se tornou minha fantasia: a projeção das minhas angústias; meu desejo de paz. O primeiro texto em que busquei esse “nada” teve uma recepção tão tímida quanto a personagem. Poucos leitores e (claro) nenhum pagamento. A recompensa pelo pequeno é também pequena.
Mas há algo valioso na recompensa modesta: o alívio das tormentas. Nos libertamos da fantasia. Alice acorda de seu sonho. A melhor companheira é a irmã, lendo sob a árvore.
E assim canta Tom Zé: para lá da disputa imbecil, a mulher deseja, na fronteira do Tato e do Tempo, estar nua no vazio.