A alegria de Goliarda Sapienza

“A arte da alegria” é um estranho romance de Goliarda Sapienza, que narra os prazeres e abusos de nascer mulher
Goliarda Sapienza, autora de “A arte da alegria”
28/03/2025

Alguns anos atrás, mudando de casa, precisei me desfazer de uma centena de livros que não teriam espaço no novo endereço. Avisei amigos e conhecidos, não lembro como, talvez por e-mail ou Facebook. Era 2010, não usávamos WhatsApp ainda. Laerte, a cartunista, viu as fotos das pilhas de livros que eu oferecia em doação, e se interessou por três, de Goliarda Sapienza.

— São em italiano — avisei.

— Tudo bem, tentarei ler — ela me respondeu.

Bebemos chá na sala espaçosa que eu logo abandonaria. Conversamos sobre psicanálise — como é bom, e como é caro. Ela tinha o cabelo Chanel, grisalho, e unhas curtas pintadas de pink. As roupas eram unissex: camisa branca, calça jeans. As janelas amplas mostravam as copas das árvores e — na paisagem distante — a vegetação da USP, entre os prédios do outro lado do rio.

A arte da alegria é um estranho romance de Goliarda Sapienza. Li até o fim, sem entender muito. Uma voz ingênua e obscena, na sexualidade sem barreira das crianças, que narra os prazeres e abusos de nascer mulher no mundo que temos. Os primeiros capítulos nos chocam com essa quase mulher, ainda meio criança, sugada com avidez para o mundo adulto, onde será adorada e devassada. Inteligente e ousada, ela conseguirá saltar sobre isso tudo, sem se queimar demais.

Sobreviver com alegria, fugir do papel de vítima, é um desafio para todos e especialmente para as mulheres.

“Você já foi boa” — foi uma espécie de cantada que minha mãe recebeu, no ponto de ônibus, quando voltava do trabalho, aos quarenta e tantos anos. “A gente sente falta, quando param de mexer contigo na rua”, ela ponderou.

Revirando papéis antigos, encontro e-mails de escritores e editores que demonstraram interesse pelo que eu escrevia, no fim dos anos 1990. Nessa época descobri que a mulher tem sempre um corpo — mesmo escrevendo, quando busca a desmaterialização desse corpo. Se eu escrevia para expiar a vivência convulsiva que o corpo me trazia, a escrita me devolveu a mesma imagem refletida: meu corpo, os olhares sobre ele. O assombro se adensa como as cantadas cessam, quando envelhecemos; percebemos que o interesse por sua escrita se esfumaça quando você tenta se livrar do corpo e falar algo além. Além do quê? Ideias, o inefável? Ficamos presas nessa armadilha.

Encontrei a Laerte poucas vezes na vida. Uma sessão de autógrafos; um jantar por acaso, onde estávamos as duas como convidadas; uma reunião de trabalho, infrutífera, onde éramos as duas contratadas. Bom humor discreto, fala lenta entre silêncios, melancolia. Sua energia suave era em tudo oposta à flecha em chamas de Goliarda Sapienza. Nunca perguntei se Laerte leu os livros que levou naquela tarde, depois do chá.

Comprei as obras de Sapienza à noite, numa pequena livraria, entre bares e jovens boêmios. Foi uma viagem de aventura às avessas, uma história que se acabava. Na contracapa do livro, li o resumo da vida surpreendente dessa escritora, atriz, ladra, filha de feministas antifascistas.

Um amigo certa vez me disse: “Quando sofre uma violência, você pode assumir o papel da vítima, ou se identificar com o agressor”. Meu amigo cursava um semestre de psicologia, na Academia de Polícia Militar. A frase ficou gravada na minha memória. Penso nesses livros estranhos, como A arte da alegria, de Goliarda Sapienza, A bastarda, de Violette Leduc, ou O caderno rosa de Lori Lamby, de Hilda Hilst. Vítimas, as narradoras certamente não são. Agressoras? Do bom-mocismo literário, certamente.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

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