Chegou a vez de Elena Garro. Nem seu nome nem seus livros podem agora ser boicotados como foram em 1968 pelo governo mexicano. Uns arbustos de sombras se desfazem e vai ressurgindo a figura dessa mulher, quase trinta anos após sua morte, no embalo das reavaliações que têm recuperado tanta gente silenciada pela história oficial.
Aqueles que mantinham Elena à sombra, calada e sentada, não estão mais no poder. Agora Elena se levanta, multiplicada em livros, e como pôde essa mulher escrever tanto, se quase tudo conspirava para o seu fracasso?
Octavio Paz era um desses conspiradores. Aí está: o poeta imenso era também o consorte tirano. Jovem projeto de Prêmio Nobel e já um articulador de intrigas sob o pano. O aliado da alta intelectualidade, senhor do meio e dos meios (aí incluídas as revistas literárias, os jornais e as editoras), e um ególatra soberbo, como a maioria dos poetas triunfantes. Mestre e monstro.
Pois então: ao grande senhor das letras não agradava uma esposa que também criasse (ou frequentasse a universidade). Elena queria escrever? Que fosse jornalista. Ou, vá lá, que escrevesse, mas não publicasse. Octavio Paz amesquinhava Elena em público, chamava-a de “minha mascotinha”, de “pequena aspirante a intelectual”. Em termos poéticos, o rebaixamento era um pouco mais sofisticado: “uma pele pendurada nuns ossos” ou “cabeça de morto”.
Em 1959, depois de vinte e dois anos de matrimônio, o grande poeta, com seu cargo diplomático em Paris assegurado pelo presidente mexicano Adolfo López Mateos, providenciou sem aviso um divórcio a jato em Ciudad Juárez, paraíso dos divórcios fraudulentos no correr do século passado, e deixou mulher e filha ao deus-dará. A razão do divórcio tinha o nome de Bona Tibertelli, com quem o poeta pretendia se casar (não fosse preterido por outro…). Mas a razão alegada, incompatibilidade, não chega a ser de todo falsa: Octavio Paz estava do lado da história oficial, do lado do governo e da intelectualidade reinante, Elena Garro estava do lado dos humilhados e oprimidos, dos camponeses de Ahuatepec, dos indígenas, das mulheres violentadas. Para essa incompatibilidade, Elena usava outras palavras: “entre ele (O. P.) e eu há uma cortina de sangue”.
Se Octavio Paz ajudou Elena a publicar (e ver premiado) seu primeiro livro, em 1963 — dizem que por vingança a Bona —, cinco anos depois colaborou com o governo de Díaz Ordaz para o descrédito e a censura de todo o trabalho da escritora. Mesmo esse primeiro livro de Elena, As lembranças do porvir, só veio à luz passados dez anos, e, durante esse tempo em estado de manuscrito, Octavio Paz o lia sem pudor para os amigos em suas tertúlias. García Márquez estaria entre esses ouvintes quando ainda não havia esboço de Cem anos de solidão.
Já tentaram colar ao nome de Elena a etiqueta de “precursora do realismo mágico”. Mas, para Elena, o que se entende por “realismo mágico” seria algo preexistente à denominação novidadeira, intrínseco à cosmovisão indígena, portanto milenar. Tampouco Elena pretendia ser precursora do que quer que fosse. Ela apenas lutava para continuar escrevendo, e essa luta envolvia exílio político, ameaça de morte, não ter casa, não ter dinheiro, tentar se hospedar em hotéis com nome falso e passar fome com uma filha pequena.
A verdade é que essa mulher incomodava muita gente. Como jornalista e ativista, denunciava a corrupção institucional, a violência de gênero, os crimes contra os camponeses, a impunidade. Como escritora, detestava a arrogância dos intelectuais. Incomodava gente de diferentes círculos, e, no meio deles, gente poderosa.
O caso de Elena Garro diz muito sobre o tempo das hegemonias, não apenas sobre o evidente machismo e autocracia do meio (social e político): também sobre a hegemonia consabida e silenciosa dos aliados, que se autobeneficiam e se protegem controlando os meios artísticos e literários. Sob tais condições, parece impreciso dizer que certas escritoras são descobertas tardiamente. Elas aparecem no tempo que lhes é propício à vida, como uma terra que só medra cinco gerações depois de envenenada.