(03/10/2020)
Começo a escrever esta crônica, a primeira na nova fase do nosso querido Rascunho. Numa daquelas zapeadas entre as diversas abas a que nos acostumamos, sou tomado de assalto pela notícia sobre o falecimento de Quino, criador da Mafalda. Obrigo-me a pressionar continuamente a tecla backspace. O parágrafo já nascia obsoleto, coitado.
Quino desenhou as tirinhas dessa menina de seis anos durante 1964 e 1973. Como é próprio das crianças, Mafalda nos desconcerta com sua sabedoria e seus questionamentos sobre o mundo, acertando em cheio na instância de mente aberta que já fomos, naquela camada mais profunda dessa cebola que nos compõe. Nossos equivalentes, como a Emília de Lobato ou a Mônica do Mauricio de Sousa, fazem lembrar: essa perspectiva que transita entre o alegórico, humorístico e profundamente social é que nos pode tirar desta lamaceira. Viva Mafalda!
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Numa das lives, que se tornaram nosso grande canal de compartilhamento de ideias, vejo o escritor pernambucano Helder Herik falando sobre seu avô: Otacílio Soares trabalhava no Sesc de Garanhuns em serviços gerais. Aposentado, não deixava de ir para a biblioteca da unidade, local onde mais tinha prazer em passar o tempo. Zelava com afeto do ambiente, ainda que fosse analfabeto e não tivesse acesso ao conteúdo específico dos volumes. Hoje o neto tem livros nas estantes daquela biblioteca. A cultura transcende.
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Rua do escritor, meu livro de crônicas, saiu poucos dias antes de começar a quarentena, de modo que os lançamentos foram suspensos, ou congelados. Tempus fugit. A crônica é, realmente, um tipo de texto escorregadio, bagre ensaboado da palavra, ora pois. Tão perecível no cotidiano quanto candidato a destaque da cronologia. Penso que o livro está no ar, como uma pipa. Melhor: um balão à deriva em 2020, como estão tantos livros de camaradas.
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Bachelard faz aquela distinção entre duração (o tempo que corre feito um rio) e instante (um peixe que a gente tira dele). A metáfora boba é minha, por preguiça de pegar o livro e situar mais corretamente a analogia. Mas a ideia geral é essa mesma. Como dar importância ao peixe se o que vemos cada vez mais é a forte correnteza?
Nos jornais impressos de antigamente, as crônicas eram publicadas nos rodapés dos jornais, como um recreio das notícias sérias e ordinárias. Com a prevalência dessa tela onde você está lendo agora, o espaço mudou, podendo estar na parede toda, na sanca ou no quartinho da bagunça. O lance não é espaço, é tempo.
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Faz calor, muito calor, um calor insuportável para início de primavera. Vejo pela internet a rapper mineira Laura Conceição versejar, entre outros assuntos de grande importância: “A única droga que eu consumo é o meu celular”. A poeta faz florescer as ideias e, só assim, entendo a primavera começa: poesia é a primavera da palavra.
Mas em quarentena, com os celulares nos dominando, é como se todos fossem diabéticos e se internassem para tratamento numa fábrica de chocolates.
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Há pouco tive reunião de trabalho sobre clubes de leitura. A pandemia acentua uma dualidade que todos conhecemos: a tensão entre aproximação e distanciamento em muitos níveis. Eis a mola da vida. E da literatura, essa solidão povoada. Ao fim da reunião, uma estagiária chora ao se despedir do grupo, pois terminou seu período na empresa. Penso que chora porque está sendo colocada uma camada de cebola, que será sucedida por outras e outras, nesse grande estágio inconcluso que é a vida.
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Vida longa ao novo Rascunho!