(04/10/10)
Diante dos cristais me transformo em um ser de várias patas gigantes e avanço para cima do que a princípio eu deveria preservar. Sou capaz de manter intactos, sem nenhuma lasquinha, os copos de vidro, mas os de cristal não me escapam. É um mistério que me acompanha desde sempre, mas só há pouco tempo diagnostiquei, embora ainda não saiba se posso chamar de doença ou continuo chamando de mistério.
Uma história de família me vem agora à mente: uma vizinha de porta elogiou o lustre da sala da minha avó em uma visita rápida e, no dia seguinte, o “ser” espatifou-se no chão, não prestou nem para conserto. O lustre não era de cristal, claro, mas a vizinha devia achar que era e trincou com o olhar, de longe, a peça de estimação. Houve choro, ranger de dentes e exclusão da vizinha feiticeira para sempre.
Voltando a mim, capaz do mesmo feitiço da outra excluída, só que com menos sutileza, embora com mais acerto: eu sei quando é vidro e aí me poupo. Mas, ao contrário dos que conseguem estilhaçar com os olhos ou até com a voz, só consigo fazer na mão grande, obviamente guiada por um pensamento remoto, que aciona o comando mortal.
Preciso tomar cuidado para que as mãos não avancem nos cristais alheios — sim, já aconteceu, por isso pensem muito bem antes de me convidarem para suas casas. Tranquem as cristaleiras e me apresentem os vidros. Faço estragos profundos e diversos; posso espatifar em minúsculos fragmentos ou trincar veias internas.
Nenhum gesto me parece isento de significado — tive a certeza disso quando quebrei a terceira taça em menos de um mês.
Vejo um cristal brilhando, mesmo sujo, na ponta da pia, ou dentro de um armário, tento fixar o pensamento no desejo de mantê-lo intacto, de domar as mãos destrutivas — quem diz que consigo? Os cristais têm o poder misterioso de fazer com que eu deseje quebrá-los. Só pode ser. Transfiro a culpa para os objetos, tiro de mim o peso que é não ser capaz de manter na mesa uma taça de cristal do início ao fim de um jantar — as taças podem até escapar vivas da refeição, mas morrem quando chegam à cozinha; eu as destruo na hora de lavar. Sim, a culpa é dos cristais e de seu magnetismo profundo… Apenas esta explicação pode justificar o motivo pelo qual eu preservo os vidros, mas destruo cristais. Haveria outra, mas esta eu recuso: será que nos interditos eu acho que não tenho direito ao que é fino, caro, delicado, translúcido?
Seria uma bobagem simplória assumir que não me permito possuir aquilo que me faz feliz ou então que algo delicado demais não possa ser meu. Dizer que eu destruo os cristais porque inconscientemente acho que não os mereço é uma explicação tosca.
Tive que falar porque me ocorreu, mas não acredito.
Prefiro o mistério e a possibilidade absurda de que os cristais tenham na sua estrutura uma capacidade magnética de atrair os meus gestos maiores — aqueles que, infelizmente, fazem quebrar. Não é assim quando se ama demais?
Há quem não saiba amar demais.
Quando uma taça está quieta na mesa, observo a beleza que é o cristal. Mesmo que em um primeiro olhar não se note a diferença entre os vidros, quando se chega mais perto para estalar os dedos na sua pele, logo dá para ver a diferença — o cristal é uma das criações mais lindas da família dos objetos. E, no entanto, eu não consigo conter meu gigantismo inapropriado quando me aproximo de um deles. A incompatibilidade se tornou uma evidência e um incômodo.
Decidi trancar os cristais e preservá-los de mim. Estão em um armário fechado desde que doei a cristaleira — o móvel antigo cheio de fragilidades era uma ostentação impossível de ser contida. Se eu não doasse logo o móvel com boa parte do que tinha dentro nem sei o que as mãos cruéis seriam capazes de fazer. Deixei de fora do novo armário apenas os copos e as taças de vidro. Serão mantidos vivos, pelo menos por mim.
Tranquei de mim os cristais, sua fragilidade magnética e perturbadora.
Quem pode entender?